25/04/2024 - Edição 540

Poder

PEC Emergencial: fim de gasto obrigatório pode inviabilizar SUS e educação pública

Publicado em 26/02/2021 12:00 -

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A quinta-feira (25) no Senado começou com uma aguardada reunião de líderes. Lá o governo sofreu a primeira derrota do dia ao ver adiada a votação da PEC Emergencial para a semana que vem. O assunto, contudo, não foi retirado da pauta do plenário e a expectativa da base governista era conseguir dar o pontapé inicial na tramitação da proposta com a leitura do famigerado relatório de Márcio Bittar (MDB-AC). Não deu.

Na descrição do próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no plenário houve “grande reação” à desvinculação dos pisos da saúde e da educação. A oposição lançou mão de instrumentos regimentais para tentar barrar a leitura do relatório do jeito que estava. Diante de um requerimento para que a PEC seguisse uma tramitação normal e fosse enviada à Comissão de Constituição e Justiça, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), negociou um acordo com a oposição: a leitura do relatório seria adiada em troca da retirada do requerimento. Ele também afirmou que Bittar apresentaria uma nova versão do seu relatório na segunda-feira. 

Àquela altura, a equipe econômica já tentava se descolar da proposta da desvinculação. O secretário do Tesouro, Bruno Funchal, afirmou a jornalistas que a proposta se assemelhava a “dar cavalo de pau em transatlântico” e defendeu a ideia de unificação dos pisos da saúde e educação. Segundo ele, essa era a proposta original do governo quando enviou ao Congresso a PEC do Pacto Federativo em 2019. É mentira. A proposta original sempre foi a desvinculação, e a unificação só surgiu graças à grande resistência gerada pelo fim de qualquer carimbo para as áreas. 

Tudo isso irritou Márcio Bittar, que não fez questão de esconder. O senador começou o dia com bravatas, chegando a falar em “ditadura” quando perguntado sobre as críticas à desvinculação. “Há corporações que dominam as universidades, fazem campanha contra essa proposta mentindo descaradamente”, acusou, como se a resistência se concentrasse aí e não tivesse arrebanhado governadores, prefeitos, procuradores, etc. 

Diante do anúncio de Bezerra sobre uma nova versão do relatório, Bittar adotou um tom malcriado: “pergunta para o líder do governo” foi a resposta que deu a repórteres que o questionaram se, enfim, iria retirar a desvinculação do texto. No final do dia, teve que admitir: “Serei obrigado a fazer isso. O plenário não quis sequer discutir a questão da desvinculação”, disse. E completou: “Se eu insistir com o relatório, vou perder os gatilhos”, em referência às propostas de travas de despesas que o ministro Paulo Guedes gosta de chamar de “novo marco fiscal”. 

Como se sabe, os presidentes da Câmara e do Senado sinalizaram com o fatiamento da PEC Emergencial, manobra através da qual poderia se autorizar novas rodadas do auxílio emergencial primeiro e discutir o tal “novo marco fiscal” depois. Com o recuo em relação aos pisos da saúde e educação, essa possibilidade parece ter se afastado. 

Os repórteres Renato Machado e Thiago Resende dão destaque a um ponto interessante na Folha. Segundo sua apuração, “alguns senadores apontam que a inclusão da desvinculação seria parte da estratégia para não haver questionamento sobre outros pontos”. Uma espécie de boi de piranha para que a PEC Emergencial passe com os gatilhos, que de fato encontram bem menos resistência na classe política como um todo. Se o governo tem ou não capacidade para fazer esse tipo de manipulação fica ao critério de cada um. Os líderes governistas negam a estratégia, aliás.

A expectativa é de que o novo relatório seja apresentado na terça-feira e a votação comece na quarta. Pacheco está tentando um acordo para que a PEC seja votada em dois turnos neste mesmo dia. De acordo com o regimento, no entanto, por se tratar de uma mudança na Constituição, deveria haver um intervalo entre uma votação e outra de cinco dias. 

Fim de gasto obrigatório pode inviabilizar SUS e educação pública

A aprovação da PEC Emergencial como proposta pelo senador Márcio Bittar, desmonta serviços essenciais de saúde e diminui a oferta na educação, na avaliação de especialistas em financiamento dessas áreas. O dispositivo da PEC, atualmente no Senado, prevê acabar com a exigência de gastos obrigatórios com saúde e educação.

Embora a desvinculação não signifique corte de recursos, ela deixa nas mãos do Congresso a decisão sobre quanto será alocado, e os especialistas temem que isso resulte em verba menor.

A Constituição diz que estados devem destinar 12% da receita à saúde e 25% à educação. Municípios têm de gastar 15% da receita com saúde e 25% com educação. No caso do governo federal, o piso de gastos nas duas áreas não pode cair e ainda deve ser corrigido pela inflação do ano anterior.

No caso da Saúde, o orçamento proposto para 2021 é de R$ 126 bilhões, R$ 32 bilhões inferior ao de 2020 (quando recebeu créditos extras por causa da pandemia) e R$ 44,9 bilhões a menos do que o necessário, segundo o Conselho Nacional de Saúde.

“Esse é um quadro desastroso, e a PEC Emergencial consegue piorá-lo ainda mais. Do ponto de vista financeiro, essa medida tende a agravar o desfinanciamento do SUS no momento em que a sociedade mais precisa dele”, avalia Carlos Ocké, economista do Ipea especializado em saúde coletiva.

Para Ocké, este ano o orçamento da saúde deveria ficar fora do teto de gastos, devido ao recrudescimento da pandemia e à necessidade de vacinação em massa para a retomada da atividade econômica.

“Com a PEC, a tendência é piorar o gasto público, e as famílias serem ainda mais penalizadas diante do sucateamento no SUS. Cada real aplicado na saúde tem um retorno de R$ 1,70 na economia. Aumentar gastos na área significa aliviar as famílias com remédio, médico e plano de saúde”, diz Ocké.

Já a educação tem orçamento previsto de R$ 144 bilhões, 2% a menos do que em 2020. Hoje, 2.377 dos municípios vivem situação de subfinanciamento na área — problema que seria resolvido até 2026 quando a complementação da União ao Fundeb chegasse a 26%, o ponto máximo, como prevê a lei aprovada em 2020.

No entanto, segundo Lucas Hoogerbrugge, gerente de Estratégia Política da organização Todos pela Educação, essa conquista fica em risco com o fim do piso constitucional de investimento em educação. Isso porque os dispositivos que regulamentam o Fundeb ficam desregulados com essa mudança.

“A consequência disso é que o Fundeb pode ser menor, o que diminui a contribuição da União”, afirma.

Segundo Hoogerbrugge, a falta do mínimo constitucional reduz a previsibilidade do Orçamento para o ano seguinte. Isso, diz, inibe o gestor público a fazer investimentos de médio e longo prazos.

Dessa forma, fica em risco a ampliação de serviços essenciais, como oferta de creche, pelos municípios, e de ensino médio integral ou profissionalizante, pelos estados: “Essas são etapas e modalidades que se mostraram extremamente relevantes para qualidade da educação e desenvolvimento dos jovens”.

Análise

Considerando que a pandemia contaminou milhões e prejudicou a educação de outros milhões, a imensa massa de trabalhadores pobres mais do que nunca precisa de serviços públicos de qualidade. Mas a proposta à mesa é, na prática, tirar do SUS (Sistema Único de Saúde) e do recém-renovado Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) para aprovar auxílio. Não tem outro termo, é sacanagem mesmo.

O fim do piso é visto como uma das "condicionantes" para a renovação do auxílio emergencial. Em outras palavras, é como se o Estado tivesse sequestrado a dignidade dos brasileiros mais pobres prometendo libertá-la mediante a ativação de uma bomba-relógio. Tic-tac.

O governo Bolsonaro e sua base no Congresso dizem que não existem condicionantes, apenas um sinal de que o país é responsável com as contas públicas. Ah, vá! Depois da mão peluda de Jair Messias na Petrobras? A população brasileira não tem "mercado financeiro" tatuado na testa para tamanho nível de engana-que-eu-gosto.

O relator da PEC, senador Márcio Bittar, previu o fim do piso constitucional de gastos em saúde e educação para União, estados e municípios. Ou seja, se for aprovado, presidentes, governadores, prefeitos, vereadores, deputados estaduais, federais e distritais e senadores passariam a decidir o montante para essas áreas.

Citando o filósofo Fabrício Queiroz, isso é "uma pica do tamanho de um cometa" sendo jogada no colo da população. Serviços públicos de saúde e educação funcionam, mesmo com todos os problemas, porque há a obrigação do mínimo legal. Como nem sempre investimentos nessas áreas chamam a atenção em ano eleitoral, a chance de lápis e esparadrapo virarem asfalto é grande.

A porcentagem do mínimo constitucional de gastos nesses dois setores pelo governo federal foi substituída, em 2018, após a Emenda do Teto de Gastos entrar em vigor, pelo total desembolsado no ano anterior corrigido pela inflação. Já Estados e municípios precisam aplicar 25%, em educação, e 12% e 15%, em saúde, respectivamente. Seguindo o roteiro do governo, vai tudo pro vinagre.

Muito antes do ministro Paulo Guedes dizer que empregadas domésticas estavam viajando demais para a Disney, reclamar que rico poupa enquanto pobre gasta tudo e alertar que ninguém se assustasse com um novo AI-5 se rolassem manifestações contra o governo, ele já defendia a desvinculação das receitas da saúde e da educação no início de 2019.

Agora, o governo e sua base têm a oportunidade de surfar sobre o desespero e a fome, que se instalaram com desemprego e o atraso no retorno do auxílio, para aprovar sua desejada agenda. O que é algo ética e esteticamente muito feio, mesmo para os novos padrões da Era Bolsonaro.

Em meio a isso, há parlamentares responsáveis se organizando no Congresso e entidades da sociedade civil se mobilizando para tentar impedir que essa tragédia aproveite a tragédia.

Se isso passar, o presidente e seus aliados serão responsáveis por aquilo que ele disse que não faria: tirar de pobres para dar a paupérrimos.

Só que pior: vai tirar muito de pobres e paupérrimos para devolver um tiquinho na forma de um auxílio emergencial mirrado e, ainda por cima, cantar de galo como "pai dos necessitados", à espera de se vestir com glória nas eleições de 2022. Antes da bomba explodir.


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