18/04/2024 - Edição 540

Brasil

Acesso a mais armas não resolverá questão de segurança, diz relatora da ONU

Publicado em 25/02/2021 12:00 -

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Ampliar o acesso às armas no Brasil ou em qualquer outro país do mundo não resolverá a questão de segurança e representará uma maior ameaça à vida. O alerta é de Agnes Callamard, uma das principais relatoras da ONU dedicada ao tema de execuções sumárias e que, nos últimos anos, investigou casos como a morte do jornalista saudita Jamal Khashoghi.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro publicou na semana passada quatro novos decretos permitindo um maior acesso dos brasileiros às armas, inclusive permitindo que cada pessoa registre até seis armas. O decreto também facilita o acesso à munição.

Questionada pela coluna sobre esses atos do Planalto, Callamard indicou que não teria o direito de comentar exclusivamente a situação brasileira, já que as regras na ONU exigem que ela trate do assunto primeiro com o governo envolvido, antes de fazer declarações à imprensa. Mesmo assim, ela foi contundente sobre o que significa uma maior circulação de armas.

"É senso comum que a multiplicação de armas num território e a desregulamentação do acesso resulte em maior ameaça à vida", disse.

"Há evidências empíricas apontando para o fato que, em países onde o acesso às armas é mais liberal e desregulado, há um número bem maior de homicídios, seja de forma intencional ou por acidentes", disse.

"Extrapolando essas evidências de outros contextos, quaisquer políticas como essas que são descritas (sobre o Brasil) podem criar mais insegurança para as pessoas", alertou.

"É improvável que (tais medidas) lide com os problemas de insegurança vividos pelo Brasil ou qualquer outro país", constatou.

A relatora, desde 2018, vem negociando uma visita sua ao Brasil para avaliar a questão da violência no país. Em 25 de fevereiro de 2020, Callamard voltou a enviar uma solicitação, propondo uma missão em maio daquele ano. Oficialmente, a pandemia mudou os planos.

Se ocorrer, diplomatas acreditam que a viagem colocará uma pressão extra sobre o governo. Um informe será apresentado diante da ONU, com os resultados da missão e eventuais denúncias.

A questão, porém, é que o Brasil mantém um convite permanente para todos os relatores e, como princípio, não poderia simplesmente bloquear uma visita.

Em 2020, em outra entrevista à coluna, ela deixou claro que a busca de "uma sociedade segura é um objetivo legítimo" de um governo.

"Mas como chegamos lá que é a questão", disse. "Estou preocupada com a promessa de atalhos para se chegar a isso. E estou preocupada diante de políticos vendendo as promessas que serão extremamente difíceis de serem implementadas. Estão baseadas na construção de soluções superficiais. E que mata", completou.

Decretos agravam falta de controle sobre armas no país

A flexibilização do mercado armamentista vai aprofundar o apagão do controle desses equipamentos no Brasil, hoje nas mãos do Exército, Polícia Federal (PF) e forças de segurança estaduais. Ao passo que os últimos decretos do presidente Jair Bolsonaro permitem que cada vez mais armas entrem em circulação, travas importantes de vistorias foram retiradas da previsão legal e sistemas que deveriam facilitar o controle não são interligados e apresentam vulnerabilidades.

As mudanças ocorrem em meio à falta de investimentos em sistemas de controle, além do afrouxamento de regras que não permitem flagrantes na apuração de eventuais irregularidades. A autorização para que atiradores e caçadores registrados comprem até 60 e 30 armas, respectivamente, sem necessidade de autorização expressa do Exército, deverá pressionar ainda mais o controle desses equipamentos, na visão de especialistas.

Hoje, o país já enfrenta dificuldade de monitorar e rastrear armas, cujo histórico envolve desvios, furtos e roubos. Dados do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicam que o número de apreensões vem caindo ano a ano no país, ao passo que a quantidade de armas registradas cresce exponencialmente.

As novas regras de controle pelo Exército, que deverá avisar aos atiradores da realização de vistorias com 24 horas de antecedência, prejudicam qualquer flagrante de irregularidade, um dos principais meios de fiscalização. Em 2020, o Ministério Público em São Paulo descobriu que um homem com registro de CAC vencido era o responsável por guardar armas e munições para uma facção da capital paulista.

A exclusão de itens importantes da lista de produtos controlados pelo Exército, incluindo projéteis, máquinas e prensas para recarga de munições, carregadores e miras telescópicas, não permitirá que as autoridades saibam quem efetivamente comprou e onde estão tais produtos. A possibilidade de clubes de tiro concederem laudos de aptidão, por sua vez, retira prerrogativa da PF de avalizar essa licença, ignorando critérios técnicos da capacidade do usuário de ter uma arma.

Ferramentas em falta

Diante das mudanças, especialistas afirmam que, se o compartilhamento dos dados entre órgãos já não ocorre de forma efetiva, com mais armas em circulação, a capacidade de investigação ficará ainda mais prejudicada. PF e Ministério Público Federal (MPF) já assumiram que as ferramentas para monitorar o mercado hoje são ineficientes. Por todo o país, registros de investigação que envolvem falhas dos sistemas atuais se espalham.

“Temos um aumento de armas sem a correspondente infraestrutura necessária e estamos reduzindo a capacidade do Exército e da PF em fazer a fiscalização, que já era pequena”, diz Melina Risso, do Instituto Igarapé.

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), finalizada em 2017, já apontava fragilidades dos controles internos do Sistema de Fiscalização de Produtos Controlados (SisFPC). Um acordo para melhorias foi feito, mas avança lentamente segundo dados apresentados pelos militares ao TCU em novembro.

Há 17 anos, PF e Exército tentam realizar a integração dos dois sistemas que registram armas no país, mas sem sucesso. Uma promessa de ligação dos dois sistemas foi feita em 2019 por Bolsonaro, mas ainda não saiu do papel, apesar de constar em decreto. Desde setembro, quando o prazo venceu, o Exército alega que “os ajustes finais para a conclusão da integração digital dos sistemas em tela estão sendo realizados”. Passados quase seis meses, a situação segue a mesma. A falta de acesso aos sistemas básicos é um dos maiores empecilhos para que a PF seja favorável às medidas adotadas pelo governo.

No primeiro semestre de 2020, os registros de apreensão caíram 2,2% na comparação com o mesmo período de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em quatro anos, a queda é de 13%. Já o número de novas armas registradas praticamente dobrou em um ano. Pesquisas mostram que parte das armas do mercado legal migram para o crime organizado ao longo do tempo, o que preocupa especialistas.

Ivan Marques, do FBSP, explica que isso decorre, entre outros fatores, a da falta de incentivo às corporações para que essas operações sejam feitas. Os impactos podem ser sentidos na taxa de homicídios, cuja taxa voltou a subir em 2020 após dois anos de queda, segundo dados do Monitor da Violência do G1

Sem investimento, os gargalos vão se multiplicam. A Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército, responsável por fiscalizar os CACs e assuntos relacionados a munições e equipamentos, sequer consegue dar conta de cumprir os prazos de análise de documentação dos atiradores. Somente o número de clubes de tiros a ser fiscalizado passou de 151 para 1.345 em apenas um ano. Já o número de CACs quase quintuplicou desde 2014.

A modernização de sistemas de fiscalização também está distante. Atualmente, o Sicovem, sistema do Exército por agregar dados de venda de munições do país, é gerenciado pela CBC, principal vendedora de munições do país, que doou o sistema para a corporação, que tem como função investigá-la. Especialistas enxergam conflito de interesse. Por outro lado, a PF alega não ter acesso ao sistema, fundamental para investigações.

Para Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, o país vive o momento mais complexo nos últimos 20 anos. Segundo ela, as forças de investigação trabalham com "pilhas de papel e de olhos fechados”, diante da precariedade dos bancos de dados e das novas regras.

“Do que serve uma fiscalização com aviso prévio?”, questiona a pesquisadora, “Estamos flexibilizando muito rapidamente o processo, a estrutura de fiscalização tá andando para trás e ainda temos o fator do crime organizado, quem trafica arma não parou de evoluir. Estamos falando em dinâmicas mais complexas que estão em curso”.


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