19/03/2024 - Edição 540

Especial

Os novos pobres

Publicado em 24/02/2021 12:00 -

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A perda da convivência, de abraços e, até mesmo, da vida de um ente querido não são as únicas consequências devastadoras da pandemia para diversas famílias brasileiras.

A crise gerada pelo novo coronavírus leva embora conquistas que, em sua maioria, demoraram a ser obtidas: um bom emprego, um negócio próprio, a casa.

No ano passado, o auxílio emergencial, que chegou a 67,8 milhões de pessoas, tirou 14 milhões de cidadãos da linha da pobreza e evitou que outros 14 milhões entrassem nessa condição.

Mas agora, sem o benefício, um forte retrocesso alcança até quem já estava na classe média e se viu, de repente, sem renda.

Cálculo do economista e pesquisador da FGV Daniel Duque, feito a pedido do Jornal o Globo, mostra que cerca de 60 milhões de pessoas hoje estão na pobreza: vivem em lares com renda inferior a R$ 450 por pessoa.

Desse total, pouco mais de um terço, cerca de 22 milhões, não eram vulneráveis em 2019.

Sonho de empreender interrompido

Em 2017, após anos em três clínicas de estética diferentes, a esteticista e terapeuta Adria Rodrigues, de 42 anos, conseguiu finalmente abrir o próprio espaço.

Com o fechamento das atividades no Rio e em várias cidades do país no início da pandemia, ficou inviável arcar com o aluguel do estabelecimento, em torno de R$ 2.500.

Para continuar a trabalhar, ela desocupou o quarto do filho para instalar seus equipamentos e atender em casa, onde vivem também o marido e a sogra.

Menos de um mês depois, um novo obstáculo: os pais, que moram em Manaus, precisaram de uma cirurgia, e ela teve de viajar para cuidar deles. Com a crise sanitária e o risco de a irmã, enfermeira, contaminar os pais, ela os trouxe para o Rio.

Estão no quarto do filho, e seu espaço de atendimento foi desmontado mais uma vez. Com marido desempregado desde 2016, a renda familiar agora é composta pelas aposentadorias dos três idosos da casa.

'É como se eu estivesse dando vários passos para trás', define Adria, ao contar como se sentiu ao ver seu sonho de empreendedora desmoronar.

— Uma parte importante da população que não era pobre e estava trabalhando de modo informal na área de serviços foi muito afetada pela pandemia. Muitas dessas pessoas não estavam no cadastro único. Ganharam o auxílio emergencial mas, com o fim do benefício, sem possibilidade de ter o Bolsa Família e com uma segunda onda do vírus, são empurradas para a insuficiência de renda — analisa o economista Daniel Duque.

Medo de perder a casa própria

Adria revela o temor de perder o que já conquistou com muito trabalho duro, como a casa própria:

— Tive que largar tudo duas vezes. O mercado de trabalho está cruel. Meu marido é administrador, tem pós-graduação, mas sempre dão preferência para pessoas mais novas. Estou tentando, de alguma forma, trabalhar por conta própria, mas, se não conseguir, vou ter que voltar a trabalhar para outros, até porque nosso imóvel é financiado e não estamos com as parcelas em dia.

Com o estado natal no sobrenome, os pais de Adria, Walter e Maria Luiza Amazonas, de 71 e 72 anos, respectivamente, não saem por conta do risco da pandemia.

A família teme o futuro, mas, como se para ter de volta sorrisos perdidos, não deixou faltar um bolo de chocolate para comemorar o aniversário da esteticista, na última quinta-feira.

Do salão do restaurante à rua

Sommelier, garçom, habilidoso no preparo de drinques, Iran Santos Araújo, de 38 anos, já teve renda de quase R$ 3 mil e tinha carteira assinada até o ano passado.

Desempregado, recebeu o auxílio emergencial até dezembro. Resolveu deixar São Paulo com o pouco dinheiro que restou na esperança de encontrar um emprego no Rio.

Combinou de morar na casa de um amigo, que não cumpriu a promessa. Não teve escolha. No dia em que conversou com a reportagem, estava há cinco dias dormindo na rua, uma experiência que nunca pensou viver.

— Tenho 22 anos de profissão. Nunca precisei de um currículo. Tenho que encontrar um emprego — diz, esforçando-se para manter essa esperança em seus olhos, mas, realista, mostrando-se preocupado como o fato de não ter residência fixa e não poder pagar a pensão dos quatro filhos, que moram com a mãe. — Que ninguém passe o que tenho passado.

Impacto maior no Nordeste

Segundo o pesquisador Daniel Duque, a geração de novos pobres é mais forte no Norte e no Nordeste, onde 20% dos que estavam no que se pode considerar classe média no Brasil tiveram perda aguda e abrupta na renda.

No Centro-Oeste e Sudeste, cerca de 13%. No Sul, 8%. Ele estima que 16% dos que já eram pobres em 2019 passaram para a extrema pobreza, com renda per capita inferior a R$ 157. São 6,2 milhões.

— Sem dúvida, estamos em uma situação em que a retomada da renda depende de políticas públicas. A plena atividade econômica depende muito da capacidade do governo de fazer a vacinação — observa o economista.

Duque avalia que só em 2023 haverá condições de uma recuperação forte da economia e do mercado de trabalho:

— Os empregos não voltam rapidamente. Considerando, no mínimo, um ano para que a população inteira seja vacinada, demoraria mais um para acontecer a retomada, até porque o nível de renda dos consumidores está menor. Numa previsão bem otimista, apenas em 2023 aqueles que desceram à pobreza conseguiriam restabelecer sua posição anterior.

Sem auxílio emergencial, a nova pobreza: 'Aqui, a pandemia que a gente vive é a da fome'

Há dias neste 2021 em que Simone Souza Bernardes, de 49 anos, deixa de comer para alimentar os filhos pequenos. Tem quinze. Mora com nove. Já estava enquadrada na linha de extrema pobreza antes da pandemia. Mas vive agora o medo maior: o de que um de seus filhos ou ela própria morra de fome. Quando come, é uma vez por dia.

A família viveu um período menos dramático com o auxílio emergencial. No quintal com dez galinhas, sem água encanada, Simone conta com um poço artesiano e um fogão a lenha para cozinhar a exígua comida, quando surge.

A pandemia a levou à miséria, salvo no período em que recebeu o auxílio mensal de R$ 1.200 pago pelo governo a mulheres que criam filhos sozinhas entre maio e setembro e de R$ 600 entre outubro e dezembro do ano passado. Ela sempre fez bicos para sobreviver, mas viu os serviços diminuírem.

'Já comi fubá com água muitas vezes este mês', diz Simone

A despensa em que Simone costuma armazenar alimentos fica no quarto em que dorme com os filhos. Nunca esteve tão vazia. Guarda seis pacotes de feijão e um de sal. Sua única renda hoje é o Bolsa Família. Não dá para muita coisa.

O feijão é herança do tempo, no ano passado, quando a igreja evangélica ao lado de seu casebre de madeira distribuía cestas básicas aos moradores do bairro de Campo Alegre, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, onde ela mora.

Aquela quinta-feira era um dia de alívio, porque um vizinho trouxera abóbora, cenoura, batata e quiabo. Mesmo sem tempero, tinha no olhar a alegria de ter algo na panela para dar aos filhos.

Aline, a mais nova, 6 anos, repetia todo o tempo que tinha fome. Não sossegou até encontrar uma forma com farelos de um bolo consumido há dias. Tratou de comer cada grão. Aquela mistura de legumes que a mãe preparava, já fora da hora do almoço, seria a única refeição do dia.

Cerca de 22 milhões são novos pobres

O economista e pesquisador da FGV Daniel Duque, estudioso da desigualdade, calcula que cerca de 14% dos brasileiros que não eram pobres em 2019, antes da chegada do coronavírus, passaram a integrar as faixas da pobreza e da pobreza extrema no início de 2021 com o alto desemprego, a redução de atividades e o fim do auxílio emergencial. São 22 milhões de novos pobres.

A nova pobreza também afeta quem já era pobre. Mesmo já na base da pirâmide social do país, Simone vive uma decadência econômica, que a leva agora à miséria. É um retrato de muitos que a reportagem encontrou nas duas últimas semanas em áreas carentes do Rio e da Baixada Fluminense.

Segundo Duque, 16% dos que já eram pobres em 2019 passaram para a extrema pobreza, com renda per capita inferior a R$ 157. São 6,2 milhões de pessoas.

Daniel Souza, presidente do Conselho da ONG Ação da Cidadania, diz que os dirigentes da ONG em todos os estados têm ouvido relatos parecidos com os de Simone, mostrando como o brusco e repentino achatamento da renda provocado pela pandemia foi forte a ponto de trazer de volta a fome como rotina.

Enquanto auxílio não volta, 10,3 milhões têm fome

Enquanto governo e Congresso não chegam a uma solução fiscal para viabilizar a volta do auxílio emergencial, o número de brasileiros em insegurança alimentar, sem ingerir o mínimo de calorias necessárias por dia, chega a 10,3 milhões nos cálculos da ONG.

— Tenho certeza de que, em 2022, quando o Mapa da Fome for reeditado, o Brasil estará lá. É o que estamos vendo país afora. Tínhamos saído em 2014 — lembra Souza

'Com o fim do auxílio, a escala dessa insegurança aumenta. Mesmo que volte, reverter isso será muito difícil', diz o coordenador

— A fome voltou — corrobora Gonzalo Vecina, professor de Saúde Pública da USP.

A lenha de Simone é um jeito de evitar o botijão de gás, que chega a custar de R$ 100 a R$ 150 na vizinhança. Ela ganhou de presente um fogão a gás, mas não usa. Antes da pandemia, com os bicos que fazia, a dona de casa, que já trabalhou num lixão próximo dali, conseguia até R$ 600 por mês.

No quadro de medo em que vive, as galinhas no quintal se tornaram fonte de renda. Em vez de alimentar a família com elas, vende cada uma a R$ 30 para comprar pescoço e pé no açougue. Com isso, consegue comprar comida em maior quantidade, explica.

'O maior medo da minha vida é a fome. Nunca foi fácil, mas agora ficou bem ruim. Tinha melhorado com o auxílio. Comi três vezes por dia. Hoje, como o que aparece. Fubá, arroz, o que for', diz Simone, que chora, num olhar distante

Eliane Moreira Ribeiro, de 64 anos, abandonou o fogão e improvisa um a lenha. Ela mora no Vale dos Eucaliptos, uma comunidade em Campo Grande, na Zona Oeste do Rio, que tem sinais do agravamento da pobreza por todos os lados, assim como tantas outras da segunda maior cidade do país.

O que salva a família é o benefício que o filho, Elias Moura, de 23 anos, com síndrome de Down, recebe do governo — pouco mais de um salário mínimo. Ao lado da casa dela, em um quarto, vive o filho mais velho, Gustavo Moura, de 30 anos.

Ele já chegou a ganhar R$ 1.400 por mês como operário em obras. Agora, com a mulher, Naomi Silva, de 18 anos, grávida de três meses, vê a procura por serviços como os que sabe fazer cair.

Múltiplas carências

A família se alimenta com cestas básicas que eventualmente aparecem e até mesmo com restos de carne que um açougue descarta. Antes, só os cachorros da vizinhança comiam, conta Eliane. Naquela sexta-feira, ela estava feliz. Tinha conseguido comprar salsicha para alimentar a família.

É raro encontrar moradores com máscara no Vale dos Eucaliptos. Ao ouvir uma pergunta sobre sobre a pandemia, Eliane diz que nem clínica da família existe por perto, muito menos exame. O medo de adoecer e morrer ali é outro:

'A pandemia aqui é a da fome. O sofrimento aumentou muito. Mas, sabe, o dia em que como meu angu é um dia feliz', diz Eliane

O Vale dos Eucaliptos é um microcosmo exemplar do quanto a pandemia agravou a pobreza no país. À carência de esgoto, à água precária, à ausência de calçamento e ao alagamento diante das chuvas fortes se somou a falta de renda e, por consequência imediata, de uma rotina alimentar.

Vitória dos Santos ganhava R$ 100 a cada dia em que saía para vender picolé na Praia de Guaratiba. Aos 21 anos, diabética, não pode mais ir para não se expor ao coronavírus. Ela mora em uma das casas mais altas do Vale com o marido, desempregado.

A perda da carteira de identidade a levou ao pesadelo de não conseguir se habilitar para o auxílio emergencial. Faz uma refeição por dia. Muitas vezes, nenhuma.

— Tem dia que é só um prato de arroz. Tem dia que é uma mistura de arroz com feijão. A gente tinha pouco. Agora, não tem nada — conta.

Como é o dia a dia em favelas de quem não recebe mais auxílio emergencial

Eram 12h35 de ontem quando a dona de casa Maria Edileide da Silva, 47, serviu o almoço para ela e sua filha de 13 anos em uma apertada cozinha. No prato de ambas, apenas feijão e arroz.

"Carne só compro quando sobra dinheiro. É raro agora", conta a moradora de uma pequena casa localizada em um beco estreito do Vale do Reginaldo, área da periferia de Maceió.

Ela é uma das "órfãs" do auxílio emergencial pago pelo governo em 2020.

Em meio à pandemia, moradores de bairros pobres na capital alagoana relatam que temem mais a fome do que serem contaminados na segunda onda de covid-19.

"Com o dinheiro que recebia [do auxílio], conseguia comer bem todo dia! Mas hoje, com o preço da carne, está difícil. Compro, de vez em quando, R$ 15, R$ 20 de carne com osso. Dá só para passar uns dias", cita ela, que vive apenas com o valor da pensão do pai de sua filha e está com Bolsa Família bloqueado.

Bolsa Família tem de sustentar

Com o fim do pagamento do auxílio emergencial, pessoas de baixa renda voltaram a viver do valor Bolsa Família —que em fevereiro foi de R$ 186,83 em média, bem abaixo do valor de R$ 600 e R$ 1.200 das primeiras parcelas do benefício emergencial.

Segundo dados do Cadastro Único, do Ministério da Cidadania, o país tinha em dezembro 13.923.660 famílias em situação de extrema pobreza (maior número desde 2014) e 2.764.930 em pobreza. Dessas, apenas 14.264.964 receberam Bolsa Família em fevereiro.

O Ministério da Cidadania não informa, desde 2019, o número da fila de espera para ingresso no programa.

Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em julho, 30,2 milhões de domicílios (ou 44,1% do total) foram beneficiados com o auxílio emergencial e foi a única renda para 4,4 milhões de famílias.

Ajuda para sobreviver

No mesmo beco do Vale do Reginaldo, Maria de Lourdes Morais, 62, mora com o filho de 22 anos e conta que hoje sobrevive com ajuda dos outros quatro filhos. "O gás foi eles que me deram", diz.

Na comunidade, um botijão custa em torno de R$ 90, um real a mais do que o valor que recebe do Bolsa Família. "Com o auxílio, eu admito que comi bem; como nunca, aliás. Não gastei com coisas para a casa, apenas comprei muita comida para ficar forte e não ter problema com esse vírus. Já pensou se ele me pega sem eu estar alimentada? Melhor saúde que um bem novo", conta.

Eu adoro essa TV [de tubo] da sala. Não ia gastar R$ 1.000 com uma televisão nova para comer mal, ficar fraca e doente”, afirma Maria de Lourdes Morais, que gastou dinheiro para se alimentar bem.

'Bife de olho' no fogão a lenha

Na parte norte de Maceió, a favela Vila Emater 2 também tem um cenário de dificuldade extrema em um momento em que a pandemia dá sinais de crescimento em Alagoas.

"Hoje o almoço é feijão, arroz e bife de olho [ovo]", brinca José Orlando dos Santos, 60. No barraco em que mora com a mulher, Maria Margarida da Silva, 55, a cozinha é preparada em um fogão a lenha.

“O preço do ovo está subindo demais. Comprava a bandeja [com 30] por R$ 10 no ano passado. Agora está R$ 16. Daqui a pouco nem ovo mais”, diz José Orlando dos Santos, que cozinha a lenha.

Ele conta que, na primeira onda da doença, conseguiu se isolar com o auxílio emergencial recebido. Evitou ir até o Mercado da Produção, no centro da cidade, onde atua com carreteiro.

"Agora, estou tendo de ir todo dia com meu carro de mão, mas quase nunca consigo nada, ninguém contrata. Hoje mesmo não rendeu nem um real. O mercado está vazio, as pessoas estão com medo dessa doença. Eu também tenho [medo], mas não tenho opção, preciso tentar ganhar mais algo [que os R$ 89 do Bolsa Família] para não passar fome", afirma ele, que gasta R$ 6,70 diariamente de ônibus.

Sem renda, fim do isolamento

Sem auxílio, todos os entrevistados da Vila Emater contaram que precisaram voltar a trabalhar e tentam melhorar a renda do Bolsa Família.

Maria Aparecida dos Santos, 50, cata material reciclável nas ruas de Maceió e diz que não pode parar neste momento. Ontem, quando a reportagem a encontrou na porta de seu barraco, ela chegava em casa com a sacola cheia —cerca de 3 kg de material reciclável.

"Eu junto tudo e, quando tem muito, eu vendo. O caminhão vem aqui e paga 80 centavos [por quilo]. Vendo quando tenho uns 100 kg, ganho R$ 80. Ajuda muito", explica a mulher, que recebe R$ 89 por mês do Bolsa Família.

“Hoje vou almoçar feijão, arroz e macarrão”, disse Maria Aparecida dos Santos.

Com seis filhos morando em um mesmo barraco, Maria Rosineide dos Santos, 35, também faz malabarismo para sobreviver com os R$ 422 que recebe mensalmente do Bolsa Família. O valor, diz, é insuficiente para segurança alimentar da casa —onde moram oito pessoas, uma delas que precisa de remédio controlado.

“É muito pouco o que ganho para o preço caro das coisas hoje. Subiu demais. Tenho de me virar para dar um peixe, ou ovo, ou salame para os meninos não ficarem sem a mistura”, lamentou Maria Rosineide dos Santos, mãe que se preocupa com a alimentação dos seis filhos.

Ela conta que aguarda a aprovação de um novo auxílio para conseguir terminar de colocar as telhas da casa, feita de madeira.

"Eu ainda tenho um retroativo para receber porque demorei a ter o auxílio aprovado. Se sair, e tiver de novo o auxílio, eu vou comprar as telhas que faltam porque já já vem o período de chuva", afirma.

Comércio em baixa, inflação alta

Sem auxílio, o comércio na favela sentiu o impacto. "Caíram demais as vendas, bote aí uns 40% a menos neste mês", revela José Terto, dono de uma pequena mercearia no local. Assim como os moradores do entorno, ele também reclama do aumento no preço dos produtos que revende.

“Hoje um cliente que vem aqui com R$ 10 só mela a bolsa, não leva quase nada. Está tudo muito caro”, diz José Terto, dono de mercearia.

O principal item de que ele reclama da alta é a carne. "Há uma semana, comprei um pacote de 5 kg de charque por R$ 155. No sábado passado, comprei esse mesmo pacote por R$ 174. Como pode aumentar R$ 19 em uma semana? Não tem como! Carne aqui, pelo visto, vai ser só quando morder a língua".

Um dos pontos citados pelo vendedor encontra respaldo nos números.

Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que publica o índice de inflação por faixa de renda, entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2021, a inflação das famílias mais pobres (cujo rendimento mensal é menor que R$ 1.650,50) ficou em 6,2% —enquanto que entre as mais ricas (com rendimento domiciliar superior a R$ 16.509,66) foi de apenas 2,9%. Isso pode ser explicado por conta das altas em preços de valores do gás de cozinha, carne e aluguel.

Terto trabalha na mercearia com o filho, não tem funcionários. Ele afirma que, sem um novo auxílio ou reajuste do Bolsa Família, será difícil reverter a queda nas vendas.

"Quando tinha o auxílio, minhas vendas foram pelo menos 20% maiores que a média. As pessoas aqui compravam muito mais carne, mas hoje é raro."

Falta do essencial

Na Vila Emater, não há atendimento médico por um programa de saúde da família. O posto de saúde que funcionava em uma casa alugada foi fechado no início do ano passado.

Os moradores contam que uma equipe médica enviada por um vereador foi a única com quem se consultaram durante a pandemia. A creche que existia no local também foi fechada por conta do difícil acesso ao local. Uma nova, mais distante, foi erguida numa área abaixo da comunidade.

A líder comunitária Vânia Gomes diz que a situação só não está pior no local por conta da Cooperativa dos Catadores da Vila Emater, que tem 33 pessoas e é responsável pela coleta de lixo reciclável em Maceió.

"São 33 famílias sustentadas por esse serviço. Com ela, não passamos fome, mas no entorno há uma dificuldade maior —embora muitos atuem indiretamente e tendo alguma renda da cooperativa. Precisamos demais do retorno do auxílio", diz.

Ela afirma que, graças ao auxílio, muitos moradores da comunidade puderam ficar em casa e se protegeram da pandemia sem passarem fome.

“Mas hoje está um cenário de muita dificuldade sem o auxílio, porque o covid-19 chegou com força e muitos precisam da renda para sobreviver. Só o Bolsa Família não dá”, diz Vânia Gomes, líder comunitária.

Pobreza da pandemia tira até o teto: ‘Sem renda, não tive opção’, diz morador de rua

J.C., de 38 anos, estava, no último dia 12 de fevereiro, em seu terceiro dia dormindo na rua. Pintor e lanterneiro, perdeu o emprego porque a empresa em que trabalhava não sustentou o baque que a pandemia trouxe: perdeu muitos clientes. 

Ele morava no Méier, na Zona Norte do Rio, quando perdeu o emprego.

Buscou o auxílio emergencial, mas ficou sem acesso ao benefícios quando perdeu a carteira de identidade. Ele reclama da burocracia para conseguir tirar o documento e do reflexo mais duro: ficou sem qualquer renda. Não conseguiu mais pagar o aluguel e foi para a rua.

Paradoxalmente, muita gente sem renda tem na rua mais oportunidades de comer do que em casa.

'Não tive opção. Estou sem renda alguma. É um jeito de não passar fome', conta J.C.

J.C. ainda mantém a esperança de refazer seus documentos e encontrar um emprego. Ele não quer que amigos e parentes saibam, por isso pede para não se identificar. Tenta se manter vestido como se estivesse indo trabalhar.

Gosta de camisas pólo, compatíveis com alguém que há pouco tempo ganhava até R$ 2,3 mil por mês, quando a comissão era boa.

Crise leva mais gente para as ruas

As ruas do Rio e de várias cidades do país estão cheias de novos moradores de rua. Gente que perdeu emprego na pandemia e também não pode mais contar com o auxílio emergencial, cujo pagamento o governo encerrou em dezembro.

Enquanto Executivo e Legislativo não encontram uma saída orçamentária para a volta do benefício, muita gente não consegue pagar aluguel e fica sem teto.

Feito entre 26 e 29 de outubro do ano passado no Rio, um censo indicava uma reflexo da pandemia nas ruas: 7.272 pessoas identificadas como moradores de rua. Dessas, 752 disseram terem ido para praças no Centro e nas zonas Sul, Norte e Oeste por causa da perda de renda provocada pela pandemia.

O número certamente aumentou muito, avaliam técnicos da Secretaria Municipal de Assistência Social, porque naquela ocasião ainda não havia o impacto social que agora abate os mais pobres: a suspensão do auxílio emergencial. 

A pesquisa de outubro indicou a presença de apenas 30 mulheres e de 112 crianças na rua. Segundo a pasta, a maioria tem casa em comunidades, vende balas nas ruas e no final de semana volta para suas casas. Também porque perderam meios de ganhar dinheiro para a passagem de ônibus.

Sol de Assis, uma entidade filantrópica católica que vive de doações, abriu há quinze dias uma espaço para oferecer almoço a quem vive na rua. Na linha de frente, a coordenadora Aurelina Cavalcanti, de 67 anos, vê o que a estatística ainda não consegue mensurar.

— Nos sinais de trânsito, diminuiu muito o número de doações. No começo da pandemia, servíamos o café da manhã. Vinham poucas pessoas, às vezes cinco. O número foi aumentando, e decidimos oferecer quentinhas. Mas os vizinhos reclamavam da sujeira na rua. Aí abri um espaço que, das 12h às 14h, oferece às vezes a única refeição dessas pessoas. Ontem, vieram 63. Muitos acabaram de chegar à rua – conta Aurelina, que vê a fome rondando a população em pobreza extrema.

Efeito colateral

O efeito colateral mais preocupante é que muitos estão chegando à rua por falta de opção, mas as “ofertas” vão muito além de comida. 

Uma cachaça pode ser vendida a R$ 1. Uma pedra de crack pelo mesmo valor. A rua parece uma porta de saída, mas é, na verdade uma porta de entrada para vícios difíceis de contornar.

'Temos aqui também um lar em que abrigamos jovens em situação de rua que caíram nas drogas. E isso vem se agravando', diz Aurelina

Em ruas da Zona Norte do Rio, muitos não quiseram se identificar à reportagem. Boa parte deles têm casa, onde não há comida. Paradoxalmente, para quem não tem renda alguma, viver na rua pode ser uma forma de escapar da fome que ronda muitos lares brasileiros.

Cálculo do economista Daniel Duque feito estima que 6,2 milhões de pessoas que já eram pobres antes da pandemia mergulharam agora, sem o auxílio emergencial, na pobreza extrema. Vivem em famílias com renda inferior a R$ 157 por pessoa. Com pandemia e fim do auxílio emergencial, pobreza aumenta

Celso Rodrigues Nascimento, de 37 anos, trocou São Paulo pelo Rio há dois meses na esperança de achar um emprego. Veio de carona e a pé. Já foi pizzaiolo e motorista de van, mas, sem oportunidade, vive na rua.

Conseguiu receber o auxílio emergencial no ano passado e comprou uma bicicleta usada, que usa para catar entulhos para reciclagem. Mas viver do “garimpo” está ainda mais difícil. 

'Todo morador de rua acaba se tornando garimpeiro. A concorrência só cresce', diz Celso Nascimento

De fato, a reclamação procede. Acostumados a viver de catar latas, caixas de papelão, eletrodomésticos quebrados e da busca de itens no lixo, muitos moradores em situação de rua reclamam que não estão conseguindo mais viver do “garimpo” porque a cada dia chega mais gente para viver do que a rua oferece e falta em casa.

— Eu catava lata, lavava carro, acabou tudo. Tenho casa em Manguinhos, mas não tenho dinheiro para pagar a passagem. Fico a semana inteira aqui, e vou para casa no final de semana — diz um morador da Praça Jardim do Méier, na Zona Norte do Rio.


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