18/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Descontrole de armas também é um risco à democracia’, afirma pesquisadora

Publicado em 22/02/2021 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro avançou a passos largos em sua agenda armamentista na última semana.

Em quatro decretos liberados no último dia 11, o presidente mudou regras que, entre outras coisas, reduziram o controle do Exército sobre autorizações para armamentos e equipamentos pesados – como máquinas para recarga de munições e projéteis -, ampliaram o limite de armas para “defesa pessoal” e fizeram com que o porte seja válido em todo o território nacional.

Apesar de os decretos passarem a valer daqui a 60 dias e serem uma prerrogativa do cargo, especialistas apontam que o presidente busca “usurpar” a função legislativa de debater e votar o limite do armamento no País. Uma dessas vozes é a de Melina Risso, diretora de projetos do Instituto Igarapé, que aponta um projeto de poder e revolta já anunciado por Bolsonaro como um dos riscos das novas mudanças.

“Além da segurança pública, o descontrole de armas também é um risco à democracia. Quando a gente olha a declaração de Bolsonaro na reunião ministerial de abril de 2019, o objetivo do presidente é externado com todas as letras: [o armamento] é para as pessoas poderem se revoltar e fazer um levante contra as regras do Estado democrático de direito. É disso que a gente está falando.”

No contexto da preocupação com a flexibilização do armamento está a invasão ao Capitólio norte-americano no começo de janeiro, quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump, armados, decidiram contestar o resultado do pleito que não reelegeu o principal aliado internacional de Bolsonaro.

No entanto, não é necessário olhar para outro país para projetar os impactos do armamento em território nacional.

Entre os casos citados por Risso está um estudo realizado em 2013 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que liga um maior número de homicídios ao aumento da circulação de armas no País.

Dados preliminares já apontam um crescimento de 5% na taxa de homicídios no primeiro ano da pandemia, em um contexto com 179.771 novas armas registradas no País em 2020, um aumento de 91% sobre o número de 2019, segundo a Polícia Federal. O exemplo prático das evidências mostra uma das consequências da fragilização do controle e rastreamento das armas no Brasil, afirma Risso.

 

Qual entre as novas mudanças é a mais perigosa? 

Algumas coisas são alarmantes. São quatro decretos que mudam muito a normativa de armas. A gente tem a legislação, que vem sendo detalhada em uma série de decretos, portarias e outros que dão o contorno do controle. O que mais preocupa é a gente já ter um controle muito frágil que, agora, vai se esfacelando completamente.

Por exemplo, a estrutura toda de armas consta na lista de produtos controlados pelo Exército, porque são produtos perigosos. Eles tiraram itens importantes dos controlados, como projéteis, máquinas para recarga de munições, miras telescópicas. Eram itens controlados por serem perigosos e destinados às forças de segurança. Quando ele tira o controle, abre o acesso para a população em geral.

Boa parte das mudanças são destinadas à categoria dos Colecionadores, Atiradores e Caçadores. Agora, toda vistoria e ação de fiscalização desses arsenais tem que ser comunicada com 20 horas de antecedência. Se a parte da vistoria é justamente o que permite identificar se as pessoas estão fazendo alguma coisa errada, não saber que o agente responsável pela fiscalização vai chegar a qualquer momento garante controlar aquele mecanismo. Se você é informado e tem algo irregular, tem até 20 horas para regularizar.

Quais impactos o Brasil enfrenta por dois anos de propostas de Bolsonaro sobre armas? É uma promessa de campanha bem-sucedida?

Uma promessa de campanha é tal se o mandante segue os ritos para isso. No caso do armamento, Bolsonaro tem flertado com o autoritarismo, passando competências das entidades e dos Poderes responsáveis por fazer essa regulamentação. As competências de legislar sobre isso continuam do Poder Legislativo.

Em 2020, a gente teve um aumento de 5% em homicídios quando comparado com 2019, segundo dados preliminares do Monitor da Violência que o G1 faz com o Fórum de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência da USP. Esse foi um ano de pandemia, em que as pessoas estavam dentro de casa, portanto os homicídios deveriam ter, seguindo a lógica, reduzido.

Certamente, quando a gente tiver acesso aos dados e olhar para esse fenômeno muito específico, eu não tenho nenhuma dúvida de que encontraremos relação com o aumento do arsenal em circulação. Um estudo do IPEA já fez essa correlação muito clara: quando você aumenta a quantidade de armas, você aumenta os homicídios. Isso já foi comprovado cientificamente em outros momentos, e agora a gente tem visto essa referência se consolidar em torno de números. 

A premissa do presidente de que a sociedade armada é benéfica para a segurança pública tem algum embasamento? Qual é a tendência mundial?

Os dados nos indicam que este não é o caminho para a segurança pública. Quando a gente faz uma comparação mundial, os países que têm maior circulação de armas têm mais homicídios e são mais violentos, considerando outros elementos. No Brasil e na América Latina, que são regiões muito violentas, com muitos conflitos, a arma tem uma participação muito importante no número de homicídios. Aqui, 70% deles têm uma arma de fogo envolvida. Ela não é a causa da violência, mas a torna muito mais letal.

O tempo todo a gente fala de regulação e controle. O governo não tem só aumentado a quantidade de armas em circulação, mas fragilizado todos esses mecanismos para saber quem é que tem arma, qual o tipo de arma, qual é o perfil do portador.

Essa migração das armas que saem do mercado legal e caem na mão da criminalidade fragiliza a sociedade como um todo.  

O Congresso faz o suficiente para barrar esses avanços? E o Supremo Tribunal Federal?

O Congresso tem a prerrogativa de derrubar decretos presidenciais e já se mobilizou para fazer isso em 2019. Temos visto uma série de declarações nas quais os deputados se atentaram para os riscos. Os partidos têm entrado com ações no STF para questionar a legalidade e a constitucionalidade do projeto, usando todos os argumentos e mostrando os impasses.

Ano passado, o Fachin deu uma liminar sobre a alíquota de importação, mas eu ainda acho que o Supremo precisa olhar com muito mais atenção o que tem acontecido. 

É um momento muito importante, inclusive entendendo o que aconteceu nos Estados Unidos este ano, em que grupos incitados pelo presidente invadiram o Capitólio com armas de fogo. Tem uma série de elementos que nos mostram um desenho do que o presidente tem feito. O risco passa a ser real, porque tem grupos muito específicos e extremistas no Brasil se armando. 

Além da segurança pública, o descontrole de armas também é um risco à democracia. Quando a gente olha a declaração de Bolsonaro na reunião ministerial de abril de 2019, o objetivo do presidente é externado com todas as letras: [o armamento] é para as pessoas poderem se revoltar e fazer um levante contra as regras do Estado democrático de direito. É disso que a gente está falando.


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