19/04/2024 - Edição 540

Poder

Daniel Silveira na cadeia é freio para a extrema direita, afirmam analistas

Publicado em 20/02/2021 12:00 -

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A manutenção da prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) pela Câmara dos Deputados na sexta-feira (19) terá o efeito de conter ataques à democracia, avaliam analistas políticos.

O parlamentar foi preso por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) após divulgar um vídeo com exaltações à ditadura militar (1964-1985) e fortes críticas e ameaças a ministros da Corte.

Sua gravação repete discursos antidemocráticos que têm reverberado entre autoridades nos últimos anos, como a defesa do fechamento do STF e a exaltação do AI-5 (ato institucional de 1968 que aprofundou o autoritarismo da ditadura), sem que tenham gerado punições tão graves — o próprio presidente Jair Bolsonaro quando era deputado federal exaltou em 2016 um dos principais torturadores do regime militar, Carlos Ustra, durante votação do impeachment de Dilma Rousseff, mas o processo aberto contra ele por isso foi depois arquivado no Conselho de Ética da Câmara.

Já Silveira deve enfrentar um processo criminal no STF e uma representação no Conselho de Ética da Câmara, correndo o risco de perder seu mandato.

O parlamentar não recebeu nos últimos dias uma palavra sequer de apoio de Bolsonaro, que preferiu não se desgastar com os demais Poderes para defender o parlamentar de sua base.

Para o cientista político Antonio Lavareda, presidente do conselho científico do Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas (Ipespe), o abandono do deputado bolsonarista pelo presidente e a confirmação de sua prisão na Câmara refletem o novo momento do governo de aliança com o Centrão no Congresso, em que o Palácio do Planalto "busca governabilidade, não ruptura".

"Esse episódio (a prisão de Silveira) vai ter um importante efeito dissuasório sobre esses remanescentes do bolsonarismo radical antissistema. Esse bolsonarismo que se tornou obsoleto a partir da aliança com o Centrão", analisa.

"As pessoas (parlamentares com discurso radical) vão olhar a prisão de Silveira e vão pensar: 'primeiro, se eu exagerar, não vou ter o respaldo do Congresso, dos meus pares, e, segundo, não vou ter o apoio sequer do meu líder, o presidente'. É um efeito dissuasório poderoso", reforça Lavareda.

Eleito presidente da Câmara no início de fevereiro com forte apoio do Palácio do Planalto, o líder do Centrão Arthur Lira (PP-AL) disse nesta sexta-feira que o episódio envolvendo Silveira é um "ponto de inflexão".

"Sou ferrenhamente defensor da inviolabilidade do exercício da atividade parlamentar. Mas, acima de todas as inviolabilidades, está a inviolabilidade da Democracia. Nenhuma inviolabilidade pode ser usada para violar a mais sagrada das inviolabilidades, a do regime democrático", discursou Lira na abertura da sessão que manteve a prisão.

"Esse episódio servirá também como um ponto de inflexão para o modo de comportamento e de convivência internos, que trarão de volta maior urbanidade, respeito e empoderamento do Conselho de Ética para que o ambiente da democracia nunca se contamine a ponto de se tornar tóxico", disse ainda o presidente da Câmara, em outro trecho de seu discurso.

Já Silveira, que teve direito a falar por transmissão online, adotou um tom bem mais comedido do que o habitual ao tentar convencer seus pares a derrubar a prisão. Ele se disse arrependido pela gravação e atribuiu sua fala a "um momento de emoção" e "muita raiva".

"Já disse desculpas ao povo brasileiro, pedi (desculpas) a todo Parlamento. Me equivoquei, me arrependi, portanto jamais gostaria de fazê-lo dessa maneira novamente. Serviu de amadurecimento", disse ainda.

'Manutenção da prisão é primeiro passo contra ameaças democráticas'

O cientista político e sócio da Tendências Rafael Cortez também vê na manutenção da prisão de Silveira um novo momento do governo Bolsonaro, menos conflituoso com os demais Poderes, a partir da aliança com o Centrão.

Ele ressalta que o momento é de queda da popularidade do presidente, em meio a problemas como falta de vacinas para conter a pandemia e a continuidade da crise econômica.

"Esse ambiente polarizado dificulta a construção de acordos. E se tem uma característica do chamado Centrão é a vocação para acordos. Até por conta da maleabilidade política dessas siglas, não são legendas que têm uma reputação consolidada junto ao eleitorado", nota Cortez.

"O próprio Arthur Lira quando publicamente se colocou como um nome do Centrão (para presidir a Câmara) fez a defesa dessa maleabilidade, dessa capacidade de adaptação desse grupo político para minimizar conflitos. E para quem opera com consensos, esse comportamento de atores associados à nova política (como Silveira), que é de ruptura institucional, ele se choca com o modus operandi desses atores políticos (do Centrão)", acrescenta.

Cortez considera a prisão de Silveira é "um primeiro passo importante" na contenção de discursos autoritários no país. Para ele, no entanto, não é algo suficiente para conter uma série de movimentos que estão fragilizando a democracia brasileira.

Nesse sentido, ele destaca a redução da confiabilidade no sistema eleitoral, que pode abrir espaços para questionamentos infundados do resultado da eleição de 2022 — algo que tem sido alimentado por falas do próprio presidente Bolsonaro, que, sem apresentar provas, diz que a urna eletrônica pode ser fraudada.

Outros pontos que despertam preocupação, segundo Cortez, é o aumento do acesso a armas promovido pelo governo Bolsonaro, assim como manifestações vindas de integrantes das Forças Armadas pressionando o Supremo Tribunal Federal, como ocorreu no julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2018.

"A prisão de um deputado, nas condições que foram desenhadas, referendada de forma unânime na Corte Suprema e respeitada pelos pares (mantida na Câmara), é por si só um sinal de contraposição a um discurso que corrói o jogo democrático", afirma.

"O problema é que não pode ser só uma decisão isolada. Tem que de fato ter um sistema de redução do risco, inclusive para evitar questionamentos do resultado eleitoral em 2022", defende.

Vídeo de Daniel Silveira é aula de como o bolsonarismo manipula a violência

O vídeo em que Daniel Silveira ameaçou ministros do Supremo Tribunal Federal e defendeu a ditadura militar, e que o levou à cadeia, surpreendeu pela agressividade, a miríade de termos chulos e o uso de expressões que demonstram imaturidade. É bizarro mesmo para uma pessoa que ficou nacionalmente conhecida ao depredar uma homenagem à Marielle Franco, vereadora que havia sido recém-executada no Rio de Janeiro.

Para além de apresentar um deputado federal desqualificado e superficial, o vídeo demonstra a estratégia bolsonarista de usar a violência para excitar e mobilizar o naco de extrema direita que acredita que o principal conteúdo está na forma. Ao ouvi-lo, esse grupo avalia que Silveira é honesto por "falar o que pensa", corajoso por "dizer umas verdades para os poderosos" e necessário por "passar por cima dos direitos humanos e do politicamente correto".

O fato de ele cometer uma série de crimes no meio disso é apenas um detalhe. Até porque muitos de seus seguidores se importam com o cumprimento da lei apenas se ela corroborar seus pontos de vista, caso contrário a lei está errada.

Se não fosse assim, ficariam indignados com o fato dele ter sido pego, na quinta (18), pela Polícia Federal, com dois celulares no local onde estava preso. Afinal, manter celular ilegalmente em uma cela é coisa de bandidão mais rastaquela, que burla o sistema na cadeia para ganhar uns trocados aplicando golpe.

Ele poderia ter criticado o Supremo Tribunal Federal usando argumentos, de forma decente. Teria gasto um quinto do tempo. Mas isso não faria com que o vídeo viralizasse, nem que fosse elogiado por outras figuras do seu círculo, como o ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, muito menos que o caso chegasse em Jair. Pelo contrário, seria chamado de "frouxo" pelo naco de seus seguidores que se acostumaram com um ex-policial youtuber que atira primeiro, depois pergunta.

Abaixo, alguns trechos do vídeo:

"Fachin, seu moleque, seu menino mimado, mau caráter, marginal da lei, esse menininho aí, militante da esquerda, lecionava em uma faculdade, sempre militando pelo PT, pelos partidos narcoditadores, nações narcoditadoras. (…)Você integra, tipo assim, a nata da bosta do STF, certo? (…) Agora, que você tem que tomar vergonha na sua cara, olhar, quando você for tomar banho, olhar o bilauzinho que você tem e falar: 'Pô, eu acho que sou um homenzinho. Eu vou parar com as minhas bobeirinhas'. (…) O que acontece, Fachin, é que todo mundo já está cansado dessa sua cara de filho da puta que tu tem. Essa cara de vagabundo."

"Por várias e várias vezes já te imaginei tomando uma surra. Ô! Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você, na rua, levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não. Eu só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime. (…) Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada nessa sua cara com um gato morto até ele miar, de preferência, após cada refeição, não é crime."

"Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião, vocês já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de 11 novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. (…) Eu acho que vocês não mereciam estar aí. E, por mim, claro, claro, que se vocês forem retirados daí, seja por nova nomeação, seja pela aposentadoria, seja por pressão popular, ou seja lá o que for. Claro que vocês serão presos, porque vocês serão investigados."

Claro que Daniel Silveira pensa tudo o que disse e, provavelmente, coisas muito piores. A questão é que também sabe que a espetacularização da violência garante reputação e, futuramente, reeleição.

Principalmente quando é feita contra autoridades constituídas, ou seja, contra o sistema – mesmo que agentes de segurança violentos sejam a coisa mais sistêmica que poderíamos ter.

Políticos, magistrados, religiosos fundamentalistas, comunicadores, humoristas dizem que não incitam a violência contra outras pessoas, como Silveira disse que não estava fazendo enquanto efetivamente fazia. Podem não ser suas mãos que seguram a arma, a faca e o porrete, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce a visão de mundo das pessoas comuns e torna o ato de atirar, esfaquear e espancar banal.

Suas ações e regras redefinem, lentamente, o que é moralmente aceitável, visão que depois será consumida e praticada por seus seguidores. Estes acreditarão estarem fazendo o certo, quase em uma missão civilizatória. Ou divina.

Aliás, se Cristo vivesse hoje, seria morto novamente em nome de Deus. E morreria com duplo desgosto ao ver pastores, que dizem serem seus servos, exigirem a deputados da bancada religiosa no Congresso Nacional que votassem a favor da libertação de Daniel Silveira sob pena de não serem reeleitos.

Bolsonaro (ou alguém por ele autorizado) postou o, hoje, icônico vídeo de um casal de leões e de hienas que os cercavam em 2019. O presidente se desculpou posteriormente por ter comparado o STF a um mamífero selvagem, carniceiro e que come cocô, mas o vídeo já havia cumprido sua dupla função: cortina de fumaça sobre os Queiroz Hits – áudios que foram um sucesso tão grande quanto uma pica do tamanho de um cometa – e alimento para seus seguidores mais fanáticos, excitando-os para a guerra política.

No dia 30 de outubro de 2019, o vídeo dos leões e hienas começou a fazer efeito. Após dar uma palestra em um evento do jornal O Estado de S.Paulo, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, teve o carro cercado por 15 manifestantes, que chegaram a bater em sua lataria. Vestidos de verde e amarelo, gritando palavras de apoio a Bolsonaro e ao então ministro Sergio Moro e reclamando do julgamento da prisão após condenação de segunda instância, estenderam uma faixa com os dizeres "Hienas do STF". Causa e efeito.

Jair Bolsonaro e seu entorno estimulam, entre seus apoiadores, que testem os limites da democracia e, se puder, avancem sobre ela sob a justificativa de que estão moralizando a coisa pública – quando, de fato, estão destruindo-a.

Ele poderia tocar o berrante e chamar os seus de volta, como poderia o deputado hoje preso, mas ambos não farão tal coisa porque dependem desse estado de constante tensão e beligerância para se manterem politicamente vivos.

E de pessoas que buscam explicações simples para reduzir sua ansiedade diante da complexidade do mundo. E que procuram raiva enlatada na internet para, consumindo-a, desopilar suas frustrações e justificar sua própria ignorância.

Futuro

Quando alguém reivindica liberdade, precisa saber o que fará com ela. Imaginando-se protegido pelo escudo da imunidade parlamentar, o deputado Daniel Silveira achou que seria uma boa ideia usar a liberdade de expressão que o regime democrático lhe proporciona para atacar a democracia. Tornou-se um parlamentar sui generis. Exerceu com máxima liberdade a prerrogativa de escolher o seu próprio caminho para o inferno.

Definida a situação prisional de Daniel Silveira, o deputado passará por dois fornos. Num, responderá no Conselho de Ética da Câmara a um pedido de cassação por falta de decoro parlamentar. Noutro, será julgado como réu em ação penal a ser aberta pelo Supremo Tribunal Federal a pedido da Procuradoria-Geral da República. O deputado falastrão logo perceberá que se meteu num enrosco que faz com que o seu pesadelo seja melhor do que o despertar.

No momento, a cassação do mandato na Câmara seria um grande negócio para Daniel Silveira, pois a denúncia formulada contra ele pela Procuradoria desceria para a primeira instância, sujeitando-se ao manancial de recursos protelatórios que o ordenamento jurídico brasileiro coloca à disposição dos réus. Conservando o título de deputado federal, o personagem será julgado no Supremo pelos ministros que ele disse em vídeo que gostaria de ver surrados nas ruas. Condenado na última instância do Judiciário, em decisão irrecorrível, o deputado se converterá automaticamente num político ficha suja. E será banido das urnas.

Ocorreu com Daniel Silveira algo muito comum em política. No início da semana, o deputado achava que era uma coisa. Descobriu em poucos dias que sua reputação já o havia transformado em outra coisa. Imaginava ser amigo de Jair Bolsonaro. E achava que o corporativismo do Congresso não permitiria que nada lhe acontecesse. Bolsonaro fingiu-se de morto. E os sacerdotes da corporação legislativa concluíram que não faria sentido acionar o espírito de corpo para defender um corpo estranho. De repente, nada tornou-se para Daniel Silveira uma palavra que ultrapassa tudo.

Silveira não é o problema, mas o fascismo moreno da turma do Villas Bôas

O problema não é o deputado Daniel Silveira, mas a turma do general Villas Bôas. Silveira não é apenas a expressão do bolsonarismo mais extremista. Não se trata de um bárbaro que destoa da orquestra. Ele representa o fascismo moreno que bate à porta da nossa democracia.

O discurso criminoso de Silveira é semelhante ao feito pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas. Que diferença há na fala absurda e tosca xingando ministros do STF e os tuítes de abril de 2018 pressionando o Supremo que Villas Bôas disse ter combinado com o Alto Comando do Exército? São conversas típicas dos chamados "cidadãos de bem".

Que história é essa de que não interessa mais ao presidente Jair Bolsonaro pintar o Supremo como antro de ladrões que protegendo comunistas que ameaçam o Brasil? Interessa, sim. Faz parte da narrativa de Bolsonaro para concorrer à reeleição e reagir a la Donald Trump contra eventual derrota.

Também interessa às Forças Armadas o tipo de manifestação que pinta Villas Bôas como inatingível. Silveira cobrou o Supremo a ter coragem de agir contra o ex-comandante do Exército que zombou da reação tardia do ministro do STF Edson Fachin àqueles tuítes golpistas de três anos atrás.

Villas Bôas endossou um golpe parlamentar, pressionou o STF a prender Lula e ajudou Bolsonaro a conquistar a Presidência, papel semelhante ao de Sergio Moro, figura autoritária poupada pela imprensa. Villas Bôas e Moro são a nata desse fascismo moreno, que mistura discurso anticomunista anacrônico com falso desejo de combate à corrupção. Tudo em nome de Deus e da pátria.

Voltando a Daniel Silveira, imunidade parlamentar não é escudo para proteger crimes cometidos por congressistas. O discurso de Silveira foi um ataque ao STF, à Constituição e à democracia. A quebra do decoro parlamentar é evidente. Logo, ele merece a cassação. Resta saber se a Câmara resistirá à tentação de uma reação corporativa no Conselho de Ética.


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