24/04/2024 - Edição 540

Poder

Silveira não é o problema, mas o fascismo moreno da turma do Villas Bôas

Publicado em 19/02/2021 12:00 -

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O problema não é o deputado Daniel Silveira, mas a turma do general Villas Bôas. Silveira (PSL-RJ) não é apenas a expressão do bolsonarismo mais extremista. Não se trata de um bárbaro que destoa da orquestra. Ele representa o fascismo moreno que bate à porta da nossa democracia.

O discurso criminoso de Silveira é semelhante ao feito pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas. Que diferença há na fala absurda e tosca xingando ministros do STF e os tuítes de abril de 2018 pressionando o Supremo que Villas Bôas disse ter combinado com o Alto Comando do Exército? São conversas típicas dos chamados "cidadãos de bem".

Que história é essa de que não interessa mais ao presidente Jair Bolsonaro pintar o Supremo como antro de ladrões que protegendo comunistas que ameaçam o Brasil? Interessa, sim. Faz parte da narrativa de Bolsonaro para concorrer à reeleição e reagir a la Donald Trump contra eventual derrota.

Também interessa às Forças Armadas o tipo de manifestação que pinta Villas Bôas como inatingível. Silveira cobrou o Supremo a ter coragem de agir contra o ex-comandante do Exército que zombou da reação tardia do ministro do STF Edson Fachin àqueles tuítes golpistas de três anos atrás.

Villas Bôas endossou um golpe parlamentar, pressionou o STF a prender Lula e ajudou Bolsonaro a conquistar a Presidência, papel semelhante ao de Sergio Moro, figura autoritária poupada pela imprensa. Villas Bôas e Moro são a nata desse fascismo moreno, que mistura discurso anticomunista anacrônico com falso desejo de combate à corrupção. Tudo em nome de Deus e da pátria.

Voltando a Daniel Silveira, imunidade parlamentar não é escudo para proteger crimes cometidos por congressistas. O discurso de Silveira é um ataque ao STF, à Constituição e à democracia. A quebra do decoro parlamentar é evidente. Logo, ele merece a cassação. Resta saber se a Câmara resistirá à tentação de uma reação corporativa.

Prender parlamentares não é algo a ser vulgarizado, mas parecem que os elementos contra Silveira mais do que justificam a detenção. Ele está incitando agressões verbas e físicas contra ministros do STF. Isso é criminoso.

Com verbas e privilégios, Bolsonaro está enchendo a estrutura do governo com militares. A maior liberdade para compra de armas e munição atende ao projeto miliciano-político. O caminho para estruturar uma nova aventura golpista está se desenhando sob os olhos das instituições.

Punir gente como Daniel Silveira é preciso, mas há personagens mais ameaçadores e perigosos a serem enfrentados.

Deputado tentou jogar Forças Armadas contra o STF

O ponto mais grave do vídeo disseminado nas redes sociais pelo deputado federal Daniel Silveira está no seu próprio objetivo declarado. É ainda pior do que as ofensas pessoais aos ministros do STF porque aposta no caos institucional: ele usa uma figura relevante entre os militares, o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, para tentar jogar as Forças Armadas contra o STF.

Os defensores do deputado falam em liberdade de expressão, que ele fez "críticas" ao ministro Edson Fachin e a outros ministros do tribunal. Ele foi muito além – e aí está a chave para entender sua prisão. Com outras palavras, aparentemente bem estudadas, foi o que escreveu o ministro Alexandre de Moraes na ordem de prisão. Ele disse que o deputado adotou "condutas criminosas" que "atentam diretamente contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

O ministro falou ainda que o deputado manteve uma "atuação criminosa de parlamentar visando lesar ou expor a perigo de lesão a independência dos Poderes instituídos e ao Estado Democrático de Direito".

O que Alexandre de Moraes disse, sem dizer, é que Daniel Silveira semeia a discórdia dentro das Forças Armadas para escalar uma ação contra o Judiciário. Nesse momento o STF decide se mexer mais seriamente porque a mera opinião de um parlamentar, resguardada pela Constituição, se confunde com a tentativa de atentado à ordem democrática.

É importante verificar a cronologia dos eventos para entender a motivação de Daniel Silveira. Na segunda-feira (15), o ministro Edson Fachin soltou uma nota à imprensa em repúdio à revelação feita por Villas Bôas para um livro de história oral da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Segundo o general, os tuítes de 2018, pelos quais ele pressionou o STF um pouco antes da votação de um habeas corpus impetrado pelo ex-presidente Lula, foram discutidos previamente pelo Alto Comando e "comandantes militares de área".

Na terça-feira (16), a imprensa divulgou a nota de Fachin. Logo pela manhã, em resposta a um internauta, o general Villas Bôas zombou da reação de Fachin, ao escrever "três anos depois". O comentário do general foi postado às 7h42 da manhã de terça. Às 18h01, o deputado Silveira publicou seu vídeo no Facebook.

Várias vezes a intenção do parlamentar de causar um conflito entre as Forças Armadas e o STF transborda no seu vídeo. Em 19 minutos, ele cita nove vezes o nome de Villas Bôas. O próprio texto que o deputado escreveu no Facebook para descrever o vídeo não deixa dúvida: "Fachin chora a respeito da fala do General Villas Boas".

O principal objetivo do vídeo de Silveira era provocar os ministros do STF a determinarem a prisão de Villas Bôas. Além de uma boa imagem que carrega em parte das Forças Armadas, o general é portador de ELA, uma doença degenerativa do sistema nervoso que cria dificuldades para fala, respiração e locomoção. O parlamentar usa a figura de Villas Bôas, cujo estado de saúde adquire contornos dramáticos, como um biombo para seus interesses.

"Hoje você [Fachin] se sente ofendidinho. Vai lá, prende o Villas Bôas, pô. Seja homem uma vez na tua vida e vai lá e prende o Villas Bôas. Fala para o Alexandre de Moraes, o homenzão né, o fodão, vai lá e manda ele prender o Villas Bôas. Manda. Vai lá e prende o general do Exército, quero ver. Eu quero ver, Fachin, você, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello, Gilmar Mendes, o que solta os bandidos o tempo todo […]."

Em outro trecho, Silveira associa uma prisão de Villas Bôas, se decretada pelo STF, a uma resposta militar semelhante a um Ato Institucional da ditadura militar (1964-1985). Isto é, o deputado estimula um golpe de Estado em caso de prisão do militar.

"O que quero saber é quando que vocês vão lá prender o general Villas Bôas. Eu queria saber o que que você [Fachin] vai fazer com os generais? Os homenzinhos de botão dourado, lembra? Você lembra do AI-5 [Ato Institucional nº 5]. Você lembra. Para. Eu sei que você lembra. Ato Institucional número 5, de um total de 17 atos institucionais. Você lembra. Você era militante lá do PT, partido comunista. Você era da aliança comunista do Brasil."

Quase no final do vídeo, o parlamentar volta a provocar o ministro do STF: "Fachin, um conselho para você: vai lá e prende o Villas Bôas, rapidão, só pra gente ver um negocinho. Se tu não tem coragem, porque tu não tem, tu não tem culhão roxo pra isso."

As provocações do parlamentar, como sabemos, não funcionaram como ele queria porque o tribunal mandou prendê-lo, e não o general. As consequências dessas mensagens no seio da tropa, contudo, são insondáveis.

Uma instituição totalmente voltada para si mesma, avessa à transparência e ao debate, não permite entender de que forma são estabelecidos mecanismos para reforçar a disciplina e a hierarquia, os pilares de uma organização militar no mundo todo. Para a sociedade civil preocupada com os rumos da democracia brasileira, no contexto do governo civil-militar de Jair Bolsonaro, as dúvidas são enormes.

Fux revela whatsapp em que ministro da Defesa pede para não se “criar crise” com Forças Armadas por tuite de Villas Bôas

Em entrevista a Leandro Colon e Matheus Teixeira, na edição desta sexta-feira (19) da Folha de S.Paulo, Luiz Fux, presidente do Supremo Tribunal Federal, revelou o conteúdo de uma mensagem de whatsapp enviada pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, após o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, ironizar publicação de Edson Fachin no Twitter.

Na mensagem, lida por Fux aos jornalistas, o ministro de Bolsonaro afirma que “nós não queremos potencializar essa notícia porque na verdade foi declaração isolada do ministro Villas Bôas no momento de fazer sua biografia, não há nenhuma concordância das Forças Armadas em relação a pressão sobre o Supremo”.

A “pressão” se deu durante julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula em 2018. Em recente entrevista publicada no livro “General Villas Bôas, conversa com o comandante”, o militar disse que a publicação foi negociada no alto comando das Forças Armadas. Fux, no entanto, afirma que Azevedo e Silva desmentiu Villas Bôas.

“Pela mensagem que tenho no meu celular, que me foi enviada pelo ministro, após a revelação do livro, o ministro Fernando me disse para não deixar criar uma crise nisso. Ele falou que não houve nenhuma reunião de comando militar para tratar de eventual resultado de julgamento do Supremo para reagir a isso. Vou ler o que me mandou [Fux pega o telefone e começa a ler a mensagem]: ‘em todas as minhas notas como ministro da Defesa reafirmo o compromisso das Forças Armadas com a democracia e a Constituição de 1988. As Forças Armadas estão voltadas para o cumprimento das suas obrigações legais'”, disse Fux à reportagem.

A revelação da mensagem de whatsapp por Fux se deu durante entrevista em que o presidente do STF comentou a decisão unânime de manter a prisão de Daniel Silveira. Na entrevista, Fux afirmou que ameaças a ministros serão “repugnadas” de maneira coesa pelo plenário do tribunal “venham de onde vierem”, em claro recado ao governo e aos militares.

À coluna de Mônica Bergamo, na mesma edição da Folha, outros ministros do STF teriam confirmado que a prisão de Silveira foi um recado aos militares que fazem parte, assim como o deputado, de um mesmo movimento antidemocrático e de ameaça às instituições.

Prisão de deputado indica que guerra bolsonarista à democracia será longa

O ‘Caso Daniel Silveira’ foi mais um capítulo dos testes que o bolsonarismo tem feito à integridade das instituições. Há um padrão, inclusive, na vitimização que eles adotam: quando a estratégia não dá certo, apelam para um conceito distorcido do direito à liberdade de expressão.

Sempre que a sociedade e os outros poderes da República minimizaram ou pouco se importaram com ataques às instituições, o bolsonarismo avançou. Com isso, fraturas foram produzidas pelo próprio Poder Executivo na Receita Federal, no Coaf, na Polícia Federal, no Ibama, no Incra, no ICMBio, na Procuradoria-Geral da República, que se tiveram que se dobrar às necessidades da primeira-família.

Ficaram mundialmente famosos os testes dos limites da República que Bolsonaro fez ao apoiar, no ano passado, as manifestações que defendiam o fechamento do STF e do Congresso Nacional e a volta da ditadura. Ele discursou nesses atos em mais de uma ocasião, uma delas em frente ao quartel-general do Exército, enquanto seus seguidores gritavam "AI-5! AI-5! AI-5!".

As instituições (que, convenhamos, não funcionam normalmente há um bom tempo) nem sempre passam nos testes. Com isso, o naco radical da base do presidente sente-se mais à vontade para avançar na afronta às mesmas instituições e no ataque digital e físico a quem veem como seus inimigos.

O auge dos ataques institucionais foram dois protestos que usaram fogo no espaço de duas semanas no ano passado. Na noite de 13 de junho, o STF foi alvo de fogos de artifício, ação atribuída a uma milícia armada que ficou acampada na Esplanada dos Ministérios. Em um vídeo, que circulou pelas redes, as imagens são acompanhadas de ameaças a ministros da corte. Dois sábados antes, no dia 31 de maio, a mesma milícia realizou um protesto na frente do Supremo, carregando tochas acesas, usando máscaras e ameaçando ministros. A imagem ecoou a estética de atos racistas dos Estados Unidos.

Houve prisões após essas afrontas e em meio ao inquérito aberto pelo próprio STF para avaliar as manifestações antidemocráticas e as fábricas de notícias falsas contra a instituição.

Esse tipo de ação contra a cúpula de outro poder só ocorre, por sua vez, porque Jair Bolsonaro estimula, entre seus apoiadores, que testem os limites da República. Poderia tocar o berrante e chamar os seus de volta, mas não fará tal coisa porque depende desse estado de constante tensão e beligerância para se manter politicamente vivo.

Cabe às demais instituições evitarem uma escalada de ataques contra a sua integridade e punirem quem organiza e incentiva esse tipo de ação. Pois quando nem o STF está a salvo de ataques por suas decisões, imagine como está o cidadão comum, que sem a proteção de seguranças e de um cargo público, apanha por dar a "opinião errada".

Deve-se zelar pela liberdade de manifestação e garantir a liberdade de crítica, mesmo que dura, contra os poderes da República. Mas há limites, pois não há direitos absolutos. Nem o direito à vida é, caso contrário não teríamos a legítima defesa. Limite que Silveira voltou a ultrapassar nesta terça.

O deputado federal tornou-se nacionalmente conhecido ao destruir, em um comício eleitoral, uma placa de rua feita em homenagem à Marielle Franco, vereadora covardemente executada em março de 2018. A investigação apontou para a participação de milicianos, que veem no deputado um porta-voz. Desde então, tem demonstrado seu desapreço pelas instituições, atacado políticos e jornalistas e acusado de produzir e disseminar desinformação.

Dentro do projeto de país do clã Bolsonaro, as instituições que não podem ser domesticadas são consideradas inimigas. Boa parte do Congresso Nacional, que se vendeu ao presidente em troca de acesso a cargos e verbas, foi domesticado.

O STF ensaia alguma resistência, ainda que, às vezes, com três anos de atraso. O problema é que, às vezes, a corte exagera no remédio, dando margem a bolsonaristas fazerem críticas à sua lisura. Foi assim quando, em julho do ano passado, o ministro Alexandre de Moraes pediu bloqueio preventivo a contas de redes sociais usadas por apoiadores do presidente para atacar adversários.

Naquele momento, ele tinha ilegalidades de sobra para punir as contas pelo que já haviam feito, mas determinou que as redes fossem suspensas para evitar que voltassem a fazer. É sutil a diferença, mas nela repousa a Justiça.

Se a liberdade de expressão não é absoluta, também não admite censura prévia. As pessoas têm o direito de dizer o que desejam e, caso cometam calúnia, injúria ou difamação contra terceiros ou ameacem a República, serem punidas com o rigor da lei depois. E é por isso que o mesmo Alexandre de Moraes acertou neste momento, há um rosário de crimes cometidos por Silveira que devem ser processados, julgados e punidos sob risco da percepção de que isso virou a Casa do Pai Jair.

O que aconteceu não é bobagem, ainda mais se considerarmos que isso vem na esteira da polêmica entre o general Villas-Boas e o ministro Fachin, que diz respeito à separação entre poderes. 

A construção de limites democráticos é uma atividade cotidiana. Bolas de neve gigantescas começam bem pequenas e, quando você percebe, já nos soterraram. O bolsonarismo começou pequeno. Já existia antes de Bolsonaro chegar ao poder e continuará vivo depois que ele se for. Ou seja, conter seus impactos será um trabalho de Sísifo, ainda mais se for feito dentro da lei.


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