20/04/2024 - Edição 540

Poder

Como não pode demiti-lo, Bolsonaro cancela Mourão

Publicado em 12/02/2021 12:00 -

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Sem poder demiti-lo porque foi eleito junto com ele, sem poder fazer de conta que ele simplesmente inexiste, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cancelar o vice-presidente Hamilton Mourão.

Faz tempo que já não conversa com ele, mas, ontem, foi muito além: excluiu-o de uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Compareceram 22 ministros. O único que faltou estava viajando.

“Não fui convidado, não fui chamado. Então, acredito que o presidente julgou que era desnecessária a minha presença”, disse o general que faz parte do Conselho de Governo.

Mourão deixou passar algumas horas e deu o troco: embora convidado, não foi à cerimônia de lançamento de um programa destinado a atrair investimentos privados para a Amazônia.

A cerimônia contou com a presença de Bolsonaro e de outros ministros. Perguntando por que não foi, Mourão respondeu: “Estava trabalhando, tinha outras coisas para fazer”.

Mourão foi escolhido por Bolsonaro para ser vice na última hora. E mesmo assim porque outros nomes convidados para a função alegaram variados motivos para não ocupá-la.

Bolsonaro queria um vice que não lhe fizesse sombra. Mourão desejava ser um vice com atribuições executivas. Bolsonaro queria um vice que não falasse. Mourão não se faz de mudo.

O presidente é capaz de dizer os maiores absurdos do mundo, mesmo os que o prejudicam. Mourão tentou ser a voz da sensatez e, em alguns casos, o tradutor de Bolsonaro.

Impeachment contra Bolsonaro

Apesar dos desencontros, fingiram dar-se bem até recentemente. Nada pior do que um vice decorativo. Bolsonaro nomeou Mourão para presidir o Conselho Nacional da Amazônia. Não adiantou.

A gota d’água que entornou o copo foi uma troca de mensagens entre um assessor de Mourão e um assessor de um deputado sobre um eventual processo de impeachment contra Bolsonaro.

Mourão só soube das mensagens pela imprensa. No mesmo dia, demitiu o assessor. Com mania de perseguição, Bolsonaro acha que o vice conspira contra ele, e ninguém o convence do contrário.

Daí o cancelamento de Mourão. Que poderá não ser definitivo porque Bolsonaro não tem compromisso com o que diz e faz. Não desqualificava as vacinas? Agora, não as recomenda?

Bolsonaro se comporta na presidência como se fosse um general dentro do quartel. Ninguém pode pensar diferente dele. Ordem dada é para ser cumprida sem maiores discussões.

Há militares que o servem, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Governo) e Eduardo Pazuello (Ministério da Saúde), que batem continência e dizem “sim, senhor”.

Mourão bate continência, mas nem sempre diz “sim, senhor”. É por isso que Bolsonaro procura um novo vice para a eleição do ano que vem. O Centrão topa indicar. O Centrão topa tudo.

Bolsonaro confunde ócio de Mourão com inação

O cérebro de Jair Bolsonaro começa a funcionar no instante em que ele acorda e não para até o momento em que ele pensa em Hamilton Mourão. Passou a enxergar um inimigo no velho amigo. Em menos de uma semana, o capitão excluiu o general de duas reuniões ministeriais. Ainda não percebeu. Mas está transformando o gabinete da vice-presidência numa trincheira.

Em dezembro de 2018, dias antes de tomar posse, Mourão avisou: "Serei uma mistura de Marco Maciel e Aureliano Chaves". Referia-se aos vices de Fernando Henrique Cardoso e do general João Baptista Figueiredo.

Maciel foi um vice dos sonhos. Magro e discreto, era quase invisível. Aureliano, entretanto, foi um pesadelo na vida do último presidente da era militar. Corpulento e expansivo, ocupava todos os espaços.

"O Marco Maciel era uma pessoa extremamente discreta, um político hábil. É um bom exemplo de vice-presidente", enalteceu Mourão, antes de acrescentar: "O Aureliano era um pouquinho mais audaz. Mas é também um bom exemplo para ser seguido. Aureliano era político. Eu acabo aprendendo."

Afora as substituições rotineiras, Aureliano, o protótipo de Mourão, comandou o Planalto em duas longas interinidades. Numa, iniciada em setembro de 1981, um infarto obrigou Figueiredo a tirar licença de 60 dias. Voltou 49 dias depois. Estava incomodado com a desenvoltura do vice.

Noutra interinidade, em julho de 1983, Figueiredo ausentou-se do cargo por tempo indeterminado. Foi implantar pontes de safena no peito, numa clínica de Cleveland, nos Estados Unidos. Reassumiu em 44 dias.

Na primeira interinidade elástica, Aureliano fez até discurso de posse. Pregou a união nacional. Recusou-se a executar uma providência que todos no governo consideravam inevitável. Ele não expulsou do Brasil os padres franceses Aristides Camio e François Gouriou. Ambos haviam sido presos sob a acusação de insuflar posseiros, instando-os a pegar em armas na região do Araguaia.

Na segunda interinidade hipertrofiada, Aureliano meteu-se na seara de Delfim Netto, o Posto Ipiranga da época. Enquanto Delfim negociava um acordo com o FMI, para restabelecer o crédito do Brasil junto aos bancos internacionais, Aureliano pregava a moratória. Ecoava o PMDB, na época o maior partido da oposição. Defendia a suspensão do pagamento da dívida externa por quatro anos.

As relações entre Aureliano e Figueiredo foram ao freezer. E o vice sentiu-se à vontade para alçar seu voo solo. Abriu uma dissidência no PDS, o partido da ditadura, lançando-se candidato ao Planalto à revelia do general-presidente.

Aureliano começou a tricotar com tecelões oposicionistas. Gente do porte de Ulysses Guimarães. Passou a defender as eleições diretas. Contido pelos ministros militares, não foi aos comícios das Diretas Já. Mas converteu o Palácio do Jaburu, a residência oficial do vice, num centro de maquinações oposicionistas.

Em sua escalada, Aureliano ajudou a costurar a chamada Frente Liberal, braço dissidente do PDS. A Frente política virou partido: o PFL, depois rebatizado de DEM. O grupo do vice de Figueiredo saltou da canoa da ditadura para a caravela de Tancredo Neves, emplacando José Sarney como vice na chapa que prevaleceria no Colégio Eleitoral, em 1985.

Com a morte de Tancredo, Sarney herdou o trono. Aureliano foi premiado com o Ministério de Minas e Energia. Coisa combinada com Tancredo antes de sua morte. Aureliano disputaria a Presidência da República em 1989, com desempenho humilhante.

Morto há 15 anos, Aureliano retorna à conjuntura como "bom exemplo" de Hamilton Mourão. No afã de desligar o vice da tomada, Bolsonaro demora a perceber que ócio não significa necessariamente inatividade. Mourão apenas ganhou mais liberdade para fazer qualquer coisa. Inclusive para refletir sobre a hipótese de aceitar o convite do PRTB, seu partido, para disputar a sucessão de 2022 como cabeça de chapa.


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