27/04/2024 - Edição 540

Cultura e Entretenimento

Tubas graves e violinos suaves

Publicado em 11/02/2021 12:00 -

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Esta obra, assinalada por Alessandro Sputnik, seu autor, como Doce Diabo, carrega, na antítese que marca o título e na força de seu verso, o poder de fúria do Demônio que animou o espírito de obras revolucionárias da história da literatura. Alighieri, Gil Vicente, Saramago, Guimarães Rosa, Dostoiévski, Goethe, Andreiev e Machado são alguns dos mais expressivos convivas tomados pelo seu espírito. Desde tempos imemoriais, esse Demônio, que arbitra a arte, verdadeiro espírito que a anima, alimenta de ímpeto revolucionário e provocativo seus bardos eleitos, os seres humanos com que poderá contar para realizar as grandes rebeliões e os grandes feitos da humanidade. Não importa o tamanho singular, nem mesmo importam suas circunstâncias, ou o ostracismo a que uma sociedade poderá relegar um desses escolhidos. Não importa em que tempo histórico, no somatório da arte universal, sua obra ganhará destaque e será vista, porque sua força demoníaca a colocará entre as que se foram “da lei da morte libertando” (Camões), por sua força propulsora da história. Por isso, ainda que dentro do espaço-tempo da contemporaneidade, Alessandro Sputnik se emparelha com uma tradição que mostrou o que o Homem é capaz de fazer em literatura, quando alcança esse poder demoníaco.

Considero, então, uma honra, prefaciar esta obra de nosso poeta mais afiado e cortante, que atinge na jugular uma sociedade putrefata. São cem poemas

sequenciais, de temáticas variadas, amarrados em torno de um eixo central, uma coluna mestra, que vai se mostrando à medida em que o leitor os percorre, qual seja, a denúncia e a crítica social realizadas de forma poética. Desse modo, a obra se torna poderosa arma de combate. Alessandro é um Sputnik que cruza o céu da palavra com a imprecisão certeira da palavra poética, sacudindo-nos com força pelos ombros e nos chamando à luta. Não fora pela densidade ímpar da sua estética, estaríamos mortos, sucumbidos pela acidez da crítica, mas o poeta nos salva com a sua potencialidade lírica. Com ela, nos toma pela mão e nos convida a adentrar uma vereda densa, talhada de riquezas estéticas, cerrada a olhos cegos e ouvidos moucos, mas iluminada por uma chuva de ouro que desce sobre cada verso e nos coloca no cerne de um universo poético surpreendente, no interior do qual o poeta trava sua batalha contra um mundo caduco, injusto, cruel. Não são quaisquer versos, colados ao real, é a seiva que escorre para além do real, transfigurando a vida como pede a verdadeira arte. Podemos chamá-lo o poeta das contradições? O título da obra o sugere. Como sugeriu o título de uma outra obra sua: Palavra Venérea, já enaltecida pelos nossos poetas mais expressivos, Raquel Naveira, Fernando D’Andrea e Carlos Djandre Rolim, este último, o continuador mais expressivo do grande Manoel de Barros.

Doce Diabo se constitui uma antítese porque seus signos vêm de campos semânticos antagônicos e, por isso, é figura de linguagem propícia à  contradição. A contradição é o motor da história. É a categoria que nocauteia a oposição entre o bem e o mal, que torna possível um diabo doce e um deus maldito. Que funde doçura e maldição num só movimento que impulsiona a história. Nenhum texto que não expresse contradição pode ser revolucionário. É nela que viu Bakhtin a possibilidade de uma obra de arte carnavalizar o mundo, de conferir à arte poder transformador. E é com ela que Alessandro opera. Seus versos são carregados de antíteses.  Com elas, o poeta caminha na esteira do gigante Baudelaire, com sua magistral antítese, Flores do Mal. Baudelaire, o maldito, que cantou a carniça, o horrendo mais belo do que já pode o verso. Que pôs abaixo, com golpes da sua poesia insana, os alicerces da bem comportada poesia burguesa, no século XIX. Que é e sempre será o discurso-rio poético de João Cabral de Melo Neto, por onde brotaram os muitos fios de água da poesia moderna e contemporânea “para refazer o fio antigo que o fez” e dar perenidade ao verso.

Bem acompanhado, Alessandro, tomado por esse espírito diabólico, tempestuoso, caminha pelas ilhas metafóricas do mundo e do tempo estilhaçado que inauguram a obra. Uma nova segunda / A cada segundo / No meu relógio de mil horas / Milhões de ilhas / No fim do mundo. Afina suas cordas no vértice da harmonia, provocador e instigante. Demarca a possibilidade palpável e visível de um lugar, volátil que é a poesia. Ilhas mágicas no fim do mundo. Onde é o fim do mundo de Alessandro? Como alcançá-lo? O autor e a infinitude do seu ser poético. Com jogos de palavras bem concertadas, ora por uma tuba grave e solene, ora pelo som doce e agudo de um violino, segue adiante, abrindo picada na mata densa, em busca da seiva vivificadora da poesia. Não sem antes avisar o leitor da imprecisão e vastidão do tempo poético, marcado no intervalo entre cada segundo e mil horas. Tempo enigmático, inacessível.

Já no imediato, reúne duas grandes heranças culturais do ocidente, o anarquista Bakunin, tuba sonora, com o celeste serafim, doce violino. Magistral essa  filiação, para um canto tão visceral! Seria um ajuste de rimas ou uma consciência social da contradição entre tais heranças? A simbiose entre o universo estético e o social marca a grande maioria dos poemas, não só pelo significado, mas pela forma retalhada, embaraçada com que Alessandro joga com o significante, em turbilhões que revelam uma lúcida compreensão da voracidade, pânico e loucura que marcam a sociedade contemporânea. Nada falta ao poema do que sobra no real cotidiano de uma sociedade em estado pandêmico de vírus, de nazismo, de ódio e de incertezas. Ao contrário, tudo desborda e desemboca na loucura poética do autor. E o Diabo, nas frinchas de cada estrofe, a embaralhar o leitor menos avisado, pois, nas trilhas das antíteses, metáforas e inversões, pandemia se disfarça de panfleto, o afeto, de fotograma e a alegria vira drama.  Com asas de brim, com pés na cabeça e dentes de vento, o autor nos alerta, recorrendo a um surpreendente jogo paronímico, que um mundo vai se extinguindo, toda uma era vai sendo arrastada para o fundo da história: O mundo já era / Ou é / A  era / Do que já foi. Estes versos revelam uma nítida consciência do momento histórico em que vivemos: o desmoronar de uma civilização. A civilização moderna, com todo seu aparato material e cultural está ruindo sob os nossos pés. Estamos vivendo o fim de uma sociedade e o início de um mundo que se anuncia, ainda disforme, num amálgama assustador. Por isso, o verso estilhaçado, as antíteses que assinalam o velho em confronto com o novo, marcações recorrentes de Alessandro. É preciso que haja poetas capazes de expressar esse momento de um mundo caduco que rapidamente se esvai, enquanto novas formas vão surgindo de seus escombros. Esta é a sociedade que enseja elegias, cantos de morte e versos grávidos de um novo mundo e de novos seres. Os versos que seguem conjugam a expressão de um mundo em desmoronamento total. E a escolha do autor para exprimir o desmoronamento recai no fogo. Porque o fogo mata. Ele é, dos elementos da natureza, o mais devastador. Podia ser a água? O ar? Alessandro escolhe o fogo, não por acaso.  Tudo queima: A bala no coração de Lennon, A lâmina cega na costela do capitão. Tudo queima: A bomba em Beirute, Planeta Carvão.

Nessa trilha segue o poeta. Desfaz e refaz conceitos, joga com acontecimentos políticos recentes criando “efeitos de real”, à moda da prosa realista e, ao mesmo tempo, imprime o traço da universalidade artística na sua obra, invertendo ideias, subvertendo a ordem, rompendo tradições e operando o difícil parto de um mundo que sem arte será pior do que este em que vivemos. A salvação de uma nova sociedade, a garantia de sua sensibilidade, sua doçura, seu encantamento, virão do doce diabo que sempre esteve presente na arte desde os tempos em que a igreja era revolucionária e o concebeu, mas que só alguns entes privilegiados foram capazes de o compreender, serem abraçados por ele e com ele somarem forças. Lúcifer, o anjo caído, expulso do Paraíso porque com sua sagacidade superou seu criador. Esse é o espírito da arte, que faz os melhores artistas transcenderem o real com sua magia, assustarem os covardes, os pobres de espírito, os medíocres. Por essa coragem, no mais das vezes, são relegados ao ostracismo.  No entanto, nunca precisamos tanto desse espírito engenhoso, criativo e impetuoso como agora, para operar a verdadeira revolução que substituirá o mundo debilitado em que estamos vivendo, por outro, que já está batendo à nossa porta.  São os artistas os arautos desse novo mundo. Como foram arautos desta sociedade, Cervantes, com sua genial crítica à literatura medieval; Shakespeare, com a ideia do humano moderno, em suas obras magistrais; Bach, que expressou em sua grandiosa obra a síntese superadora da música medieval; Da Vinci, que concebeu o homem vitruviano, expressão da centralidade do homem na terra, lugar ocupado até então pelo Deus medieval. Junto com esses gigantes, tantos outros artistas e pensadores foram formulando as bases de uma nova sociedade, que só ganhou forma pelo trabalho nas manufaturas e pelo pensamento e arte daqueles que entenderam aquele momento e deram sua contribuição. Aqui e hoje também é preciso delinear a nova face do mundo e os artistas precisam tomar para si essa tarefa, como tem feito Alessandro.

Voltemos à obra e a esse esforço do poeta em tomar o rumo da crítica social, dos afetos e das paixões que movem o mundo, com o fito de se aliar a sua luta, por meio da sua artilharia, o poema. Nele, o amor assume as formas de um mundo decomposto. Muito lúcida e sensivelmente, o poeta desembrulha de um pacote velho, rasgado e sujo, um coração, fugindo em seguida, em busca de uma nova forma de amor apropriado para um outro mundo que vai nascendo das entranhas do velho. Guardei seu coração / num pacote velho, / rasgado e sujo. Às vezes desembrulho-o / para ver de novo / do que fujo. Essa imagem metafórica de um coração/símbolo, que precisa ser olhado de vez em quando para se confirmar que precisa ser abandonado de vez, remete ao pulsar de uma sociedade doente, de quem o autor quer se desvencilhar. Humano que é, todavia, ele revela em uma estrofe antagônica à fuga, o desesperado desejo de reter o tempo para não perder o amor, para preservar o papável, o seguro, o previsível.  Calma, amor / O tempo lá fora foge / Nós, aqui dentro, / derretemos os ponteiros e alcançamos o longe. Mas, a lucidez não lhe permite por muito tempo o devaneio. É o tempo de dois ou três versos e ele retorna ao combate. O que seria o “longe”? Um outro lugar, um outro tempo? A aguda consciência histórica de que o mundo que está aqui não comporta a vida? A marcação de um mundo de aflições o acorda para o tempo presente, um tempo de controle nazista, de bocas fechadas, de medo.  “Um grito sonha calado”. Um mundo que se tornou inviável à vida. Antigamente eu abria a porta / E escancarava o verbo / Agora / As agruras. O desejo de um novo prosaico, de um bule mágico para mitigar a dor. – Qual seu primeiro desejo? / – Um café para curar as feridas. E a aguda lucidez de que a política que propõe a democracia é falsa, pífia, curta de horizontes. Não há democracia onde não há justiça social, onde uns trabalham e outros comem, onde uns têm teto e outros vivem à luz fraca das ruas e dos becos imundos.  Definitivamente / Democracia não é coisa / de Deus.

Definitivamente, a poética de Alessandro é arma para uma revolução social. Revolução ainda subterrânea, mas… até quando? Ele tem consciência disso, pois anuncia numa espécie de premonição poética, que: A Revolução arde / em qualquer esquina / em todas as cidades / no mundo inteiro / nas bibliotecas invisíveis… Em meio à revolução sonhada, somos tomados pelo ar benfazejo da beleza, na forma da estética hegeliana e nos iludimos crendo que finalmente o autor nos concede o direito de sonhar. A rua nos espera, / Mas vamos sem pressa / Solte o sorriso da gaveta, / o horizonte / as gaivotas / os cometas. Sejamos cautelosos, porém, com versos que aparentam alegria e beleza. É tempo de revolução. Tomemos antes, com bom senso, os dois primeiros versos. A rua nos espera. Mas vamos sem pressa. Que rua é essa? Ele mesmo responde: As ruas são abrigos do medo / Os corpos em capas de chuva e cheios de luvas / As árvores solitárias e secas, / sem folhas, sem sombras. / Seres nas bolhas. Seda na boca. Na sociedade decomposta do nosso agora, a rua é altamente explosiva, perigosa. Traz no seu existir miserável, pandemia, poluição do tráfego, fome, prostituição de adolescentes, falta de seda e consciência para cobrir todas as bocas, portas fechadas para o trabalho, placas de vende-se ou aluga-se… Essa pode ser a rua que nos espera e seria talvez por isso que o poeta nos recomenda ir sem pressa? Soltar o sorriso da gaveta?  Como todo signo, soltar é polissêmico. Pode ser libertar ou livrar. Do que nos fala o poeta? Nos ordena a libertar o riso ou nos livrar dele, acorrentando-o na gaveta, para que não traia a nossa dor social?  Nos acena com um horizonte idílico ou nos alerta dos perigos de uma rua enlouquecida?

No entanto, e aqui vai uma forte contradição, com imagens estonteantemente doces e sensíveis, com que o poeta borrifa um pouco de água benta em nossas aflições, Ana rega as flores / do abrigo-jardim / Com suas águas multicores / Como se curasse as dores / desse tempo inimigo.

Que seria de nós sem esses versos? Que seria de nós sem Ana regando as flores?   Precisamos disso, poeta, para seguir em frente lutando e tendo como arma a poesia. Obrigada por esta parada nas flores. Obrigada por Ana e pelo acender de nossa consciência com cem versos, os seus versos. 

Ana Arguelho – Professora e pesquisadora aposentada da UEMS, doutora em Literatura UNESP/Assis e membro da AFLAMS (Academia Feminina de Letras e Artes de MS)


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