29/03/2024 - Edição 540

Poder

Após distribuir emendas e cargos, Bolsonaro cobra fatura ao Congresso

Publicado em 05/02/2021 12:00 -

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Depois de se empenhar na eleição dos novos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), prometendo liberação de verbas e negociando cargos, o presidente Jair Bolsonaro apresentou a fatura. Na lista de projetos prioritários que o governo quer ver aprovados este ano estão a flexibilização da posse e do porte de armas; o homeschooling (educação domiciliar) e a liberação de mineração em terras indígenas. Esses temas são caros à base bolsonarista e integram a chamada pauta de costumes.

A lista foi entregue por Bolsonaro a Lira e Pacheco em reunião no Palácio do Planalto. À tarde, o presidente leu a mensagem do Executivo ao Congresso na abertura do ano legislativo.

No rol de prioridades de Bolsonaro também estão transformar pedofilia em crime hediondo, incluir na lei de drogas a tipificação de corrupção de menores, e regularizar terras na Amazônia.

“Entregamos mais títulos de propriedade rural nesses dois primeiros anos do que nos 14 anos do governo anterior. Nós tratamos os homens do campo com responsabilidade”, discursou Bolsonaro, sendo aplaudido pelos presentes no plenário da Câmara.

Especialista em regularização fundiária, a pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, disse à colunista Míriam Leitão, porém, que houve na verdade um apagão fundiário em 2019: “Caiu de uma média de 3.000 títulos por ano para apenas seis. Conseguimos esses dados pela Lei de Acesso à Informação. Pedimos novamente este ano e temos apenas até maio, porque o prazo ainda não se encerrou”.

A defesa da pauta de costumes é uma forma de Bolsonaro justificar para sua base mais ideológica a aliança com o Centrão. O grupo foi criticado por ele na campanha eleitoral de 2018, retratado como símbolo do fisiologismo e exemplo de cenário que seria mudado com sua chegada à Presidência da República.

O presidente do Senado afirmou que as sugestões apresentadas serão avaliadas pelo colégio de líderes de cada Casa: “Submeteremos aos nossos respectivos colégios de líderes, senadores e deputados, para que possamos apreciar a viabilidade da inclusão em pauta de cada um desses projetos”.

Já Arthur Lira defendeu “muito diálogo” entre os Poderes para manter um clima de “normalidade”: “Vamos manter um clima harmônico, de muito trabalho, de muito diálogo e de muita responsabilidade esse ano, para minimizar todos os efeitos danosos e produzir um clima absolutamente de normalidade e progressivo trabalho no Brasil”.

Não é só Bolsonaro que está cobrando reciprocidade. O ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), fiel ao governo nos últimos dois anos, negocia a nomeação de um senador para o Ministério. Em conversas com aliados, ele manifestou a vontade de indicar Nelsinho Trad (PSD-MS), atual líder do PSD no Senado. Foram colocadas na mesa as possibilidades de que ele ocupe a pasta de Minas e Energia ou Desenvolvimento Regional.

O próprio Alcolumbre chegou a ser cotado para ministro, mas recuou porque deve presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) neste ano. Em conversa com o governo, ele expôs a insatisfação de diversos senadores com o fato de não haver um representante da Casa na Esplanada dos Ministérios.

Procurado, Nelsinho Trad disse que há “um longo oceano” até uma potencial indicação, já que o assunto deve ser debatido com seus colegas de partido. Segundo ele, não houve nenhuma sondagem do governo federal.

“Passa por uma avaliação da bancada do Senado, dos outros pares, porque eu estaria indo na cota do Senado, e também por uma discussão dentro do partido, do PSD. A gente não é dono da vontade da gente mesmo”, afirmou. Também disse que não há uma negociação sobre um ministério específico e elogiou a gestão de Rogério Marinho no Desenvolvimento Regional. “É um dos ministros mais admirados e conceituados dentro do Senado”.

Passada a eleição no Congresso, Bolsonaro planeja uma reforma ministerial para as próximas semanas. Auxiliares do governo confirmaram ao jornal O Globo que devem receber indicações de Alcolumbre e de outros parlamentares. Bolsonaro, porém, ainda não bateu o martelo sobre qual será a nova configuração de seus ministérios.

Desafinados

Se harmonia significa afinação, faltou ensaio entre o presidente Jair Bolsonaro e os novos comandantes do Congresso na abertura do ano legislativo. Malgrado o presidente ter festejado a “harmonia” entre os Poderes depois que os candidatos por ele apoiados venceram a recente eleição para as presidências da Câmara e do Senado, o fato é que as prioridades apresentadas por Bolsonaro não parecem ser exatamente as mesmas de seus apadrinhados.

Em primeiro lugar, é difícil saber quais são as prioridades do presidente da República. Bolsonaro foi pessoalmente ao Congresso entregar uma lista com nada menos que 35 itens tratados como essenciais pelo governo.

Considerando-se que restam somente 24 meses para o final do mandato tanto do presidente da República como dos novos dirigentes do Congresso, é preciso um assombroso otimismo para acreditar que um governo que mal conseguia aprovar medidas provisórias na primeira metade do mandato será capaz de emplacar mais de um projeto por mês, entre os quais complicadas reformas constitucionais, nos próximos dois anos.

Mas essa é a hipótese benevolente, porque a janela para a aprovação dos projetos, na prática, só vai até o início de 2022, por volta de março, quando então todo o mundo político se voltará para a campanha eleitoral de outubro.

O prazo, contudo, é apenas o menor dos problemas. Há um claro desencontro de agendas entre o Executivo e o Legislativo. Entre as 35 prioridades apresentadas pelo presidente Bolsonaro, por exemplo, apenas uma, que versa sobre uso de fundos públicos, diz respeito à pandemia de covid-19 – que, enquanto estiver fazendo vítimas, sobrecarregando o sistema de saúde e limitando a atividade econômica, não permitirá a recuperação do País. O presidente tampouco mencionou a possibilidade de um novo auxílio emergencial para os milhões de cidadãos destituídos de renda em razão da pandemia.

Já as prioridades apresentadas pelos novos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, são focadas basicamente no combate à pandemia, por meio da vacinação, e na retomada do auxílio emergencial. Trata-se de um objetivo bem mais realista e coerente com a urgência do momento.

É evidente que os investimentos em dinheiro e suor dos brasileiros devem estar totalmente direcionados neste momento para a luta contra o coronavírus, por meio de uma vacinação em massa, e para o socorro àqueles que de uma hora para outra foram atirados na aflição de não saber se terão condições de se alimentar – sem falar da hercúlea tarefa de adequar o Orçamento a essa situação excepcional, respeitando as leis que limitam gastos públicos. Não é hora de desperdiçar energia discutindo se a população deve ter maior acesso a armas ou se pode adotar o ensino em casa, duas das tantas “prioridades” apresentadas por Bolsonaro.

A desafinação entre Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado mostra que o arranjo governista que elegeu Arthur Lira e Rodrigo Pacheco é precário. O Centrão, grande vencedor da eleição no Congresso e fiador do governo, começou a nova coabitação tentando demonstrar independência: não passou despercebida, no discurso do senador Pacheco ao tomar posse, a advertência de que “não pode haver substituição de papéis entre os Poderes”. Em outras palavras, o presidente Bolsonaro não deve tratar o Congresso como uma extensão do Palácio do Planalto.

Ou seja, não basta ao governo elencar dezenas de prioridades e esperar que o Congresso, agora sob nova direção, supostamente governista, aprove tudo sem questionamento. Cada votação será uma batalha, e o sucesso da pauta do governo depende, sobretudo, do empenho político do presidente Bolsonaro. O regime de governo no Brasil, afinal, é presidencialista.

A esse propósito, ressalte-se o significativo gesto de Bolsonaro de comparecer à solenidade de abertura do ano legislativo – o costume é o presidente da República enviar sua mensagem por meio do ministro da Casa Civil. Trata-se de uma sinalização da importância que Bolsonaro dá à nova direção do Congresso. Mas que ninguém se engane: o Centrão não se comove com simbolismos – só o poder real lhe interessa.


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