26/04/2024 - Edição 540

Poder

A ameaça do procurador-geral

Publicado em 22/01/2021 12:00 -

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Publicada no dia 19 de janeiro, a nota da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a atuação do procurador-geral da República, Augusto Aras, durante a pandemia de covid-19 é estarrecedora. Além de revelar desconhecimento sobre os deveres do Ministério Público (MP), faz uma grave e descabida ameaça contra a Nação, ao evocar completamente fora de hora e fora de propósito o estado de defesa.

Em tempos normais, já seria impensável que a instituição cuja razão de ser é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático se prestasse a esse funesto papel. Com o País sofrendo as agruras de uma pandemia e tendo um presidente da República que não perde ocasião de flertar com modos autoritários, a atitude da PGR é clara afronta à normalidade institucional do País, a merecer cabal reprovação. É intolerável que o mais alto órgão do Ministério Público proceda com tamanha irresponsabilidade.

Em tese, a nota da PGR seria uma tentativa de mostrar que Aras não está sendo omisso durante a pandemia de covid-19. “PGR cumpre com seus deveres constitucionais em meio à pandemia”, lê-se no título. Por si só, a situação é inusitada. Quando o procurador-geral da República cumpre suas funções, sua atuação é sobejamente notada, não havendo motivo para mais explicações.

A nota menciona algumas medidas adotadas por Aras nos últimos meses, como fiscalização de verbas públicas destinadas ao enfrentamento da pandemia. Quanto ao tema que de fato tem motivado cobranças, o procurador-geral da República diz: “Eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competência do Legislativo”.

Segundo a Constituição, cabe ao Legislativo julgar os atos do presidente da República que configurem crime de responsabilidade. Mas isso não significa que o MP deva ser indiferente aos atos do chefe do Executivo federal. Uma das mais importantes atribuições da PGR é a apresentação de denúncia contra o presidente da República por crimes cometidos durante o exercício do mandato.

A nota da PGR é, pois, evasiva quanto ao aspecto que vinha esclarecer. Pelo texto, não se sabe se o Ministério Público acompanha ou não as ações e omissões do presidente da República que eventualmente possam infringir a ordem jurídica.

O mais grave, no entanto, é a ameaça contida na nota da PGR, relacionando indevida e inoportunamente o estado de calamidade pública com o estado de defesa. Após mencionar o estado de calamidade pública decretado pelo Congresso em 2020 em função da pandemia, a nota diz: “O estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa”.

A afirmação é incorreta. A decretação de estado de calamidade pública não tem relação com o estado de defesa. São duas realidades jurídicas completamente diferentes.

Prevista na Lei de Responsabilidade Fiscal, a medida relativa ao estado de calamidade pública suspende restrições e exigências orçamentárias, visando a permitir a atuação do poder público numa situação emergencial. Já o estado de defesa é uma medida de exceção prevista na Constituição, com o objetivo de preservar ou restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública e a paz social. Ele é destinado exclusivamente à defesa do Estado e das instituições democráticas.

O Estado brasileiro não sofre nenhuma forma de ataque, seja interno ou externo, que justifique a invocação do estado de defesa, medida que traz sérias restrições de direitos, como limitações ao direito de reunião e a quebra de sigilo de correspondência e de comunicação telefônica. Ou o procurador considera as provocações de Bolsonaro contra o regime representativo e democrático ameaças suficientes para impedir o presidente da República? Se for assim, a nota, além de inútil, é pueril. A menos que, ao contrário da hipótese anterior, o procurador-geral queira dar ao presidente da República um instrumento de exceção.

Em 2020, quando o estado de calamidade pública foi decretado, a radical diferença entre as duas medidas foi lembrada. É inexplicável que a PGR venha agora evocar o estado de defesa. Os tempos atuais são sabidamente estranhos, mas é inconcebível que seja o procurador-geral da República a ameaçar a normalidade institucional do País.

Ministros do STF reagem

Ministros do Supremo Tribunal Federal ouvidos pela jornalista Andréia Sadi, reagiram com preocupação e espanto à nota do procurador-geral da República, Augusto Aras, em que ele afirma que eventuais atos ilícitos cometidos por autoridades da "cúpula dos poderes da República" durante a pandemia — e que gerem responsabilidade — devem ser julgados pelo Legislativo, e em que ele acena com um possível “estado de defesa”.

Previsto na Constituição, o estado de defesa pode ser decretado pelo presidente da República quando há necessidade de restabelecer a "ordem púbica e a paz social" se estas são ameaçadas "por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza".

O ministro Marco Aurélio Mello disse “não ver com bons olhos” o movimento de quem precisa ser visto como fiscal da lei, referindo-se ao Ministério Público. Em meio à crise de saúde, lembrou uma declaração que deu em 2017. Na ocasião, ele afirmou que, se o então deputado federal Jair Bolsonaro fosse eleito, “temia” pelo Brasil.

“Onde há fumaça há fogo. Crise de saúde, crise econômica, crise social e agora crise, aparentemente, política. Não vejo com bons olhos esse movimento de quem precisa ser visto como fiscal maior da lei. Receio pelo Estado de Direito. Volto à palestra que fiz no encerramento de Curso de Verão na Universidade de Coimbrã, em julho de 2017. Disse que, ante a possível eleição, como Presidente da República, do então Deputado Federal Jair Bolsonaro, temia, esse foi o vocábulo, pelo Brasil. Premonição? Certamente não”.

Outro ministro ouvido pela jornalista, reservadamente, afirma que se surpreendeu com a nota de Aras. Ele avalia que o PGR “respondeu a uma pergunta que não foi feita”, a respeito do estado de defesa e que, ao contrário do que diz, cabe sim ao PGR a responsabilidade de uma eventual investigação criminal, tanto do presidente da República como do ministro da Saúde.

Na avaliação desse magistrado, o STF sempre trabalhou para regular e evitar situações excepcionais durante a pandemia- como o estado de sítio ou de defesa. E afirma que, no começo de 2020, havia estudos entre militares para decretar o estado de sítio. Uma das hipóteses nos bastidores é a de que Aras teria sinalizado com anuência para uma eventual medida nesse sentido por parte do Executivo- o que é rechaçado pelo STF.

“Se você autoriza, como volta depois? É uma aventura tola se for ideia para sinalizar a Bolsonaro. O STF referendou medidas restritivas sem lançar mão do estado de sítio. Isso militarizaria toda a temática e o governo começaria a operar dentro de poderes excepcionais. O que temos é o presidente fazendo uma grande confusão com as medidas de combate à pandemia”, afirmou um ministro ao blog de Sadi.

A nota da PGR não menciona diretamente a hipótese de impeachment, mas a Constituição estabelece que cabe ao Congresso julgar casos de crime de responsabilidade cometidos por autoridades.

Questionada pela TV Globo, a assessoria da PGR informou que o texto é uma resposta a cobranças por uma atuação pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro.

Esse movimento cresceu nos últimos dias nas redes sociais e em setores da oposição após o agravamento da crise da saúde pública no Amazonas, em decorrência da qual pacientes internados com Covid-19 morreram asfixiados devido à falta de oxigênio nos hospitais.

No STF, ministros não acreditam em clima para impeachment no Congresso, mas temem o crescimento da instabilidade política se a falta de coordenação na pandemia – como o atraso na vacinação – ocorrer. Um grupo na corte acredita, no entanto, que o ministro da Saúde pode ser responsabilizado em algum grau pela tragédia em Manaus, já que documentos oficias comprovam que a pasta sabia da falta de oxigênio desde o dia 8 de janeiro.

Uma análise

O procurador-geral da República Augusto Aras divulgou uma nota oficial para informar que não se sente obrigado a avaliar ilícitos atribuídos a Jair Bolsonaro na gestão da pandemia. Num instante em que ressurge o debate sobre impeachment, anotou: "Eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competência do Legislativo." No mesmo texto, Aras insinuou que o presidente pode decretar o "estado de defesa", para preservar a "estabilidade institucional".

Um dia depois de Bolsonaro ter declarado que "quem decide se um povo vai viver na democracia ou na ditadura são as suas Forças Armadas", Aras deu à crise sanitária um conteúdo militar. Sustentou que "o estado de calamidade", decretado no Brasil desde 20 de março de 2020 para facilitar o combate ao coronavírus, "é a antessala do estado de defesa."

O estado de defesa está previsto no artigo 136 da Constituição. Pode ser decretado pelo presidente, ouvidos os conselhos da República e de Defesa Nacional. A pretexto de "preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional", prevê a imposição de medidas coercitivas. Entre elas a prisão e restrições ao direito de reunião e ao sigilo de correspondências e de telefonemas. O Congresso tem dez dias para aprovar ou rejeitar o decreto.

A nota de Aras revela nas entrelinhas uma espécie de drama psíquico-jurídico. Algo quase shakespeariano. Não bastasse o dilema funcional —procurar ou não procurar?— o procurador como que se autoinvestiu na função de conselheiro-geral da República. Aconselhou comedimento: "A considerar a expectativa de agravamento da crise sanitária nos próximos dias, mesmo com a contemporânea vacinação, é tempo de temperança e prudência, em prol da estabilidade institucional."

A certa altura, Aras realçou que "segmentos políticos clamam por medidas criminais contra autoridades federais, estaduais e municipais." Munido de autocritérios disse que cumpre exemplarmente suas funções: "O procurador-geral da República, no âmbito de suas atribuições e observando as decisões do STF acerca da repartição de competências entre União, estados e municípios, já vem adotando todas as providências cabíveis desde o início da pandemia."

Foi nesse ponto que Aras acrescentou que não lhe cabe escarafunchar "eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República". Na opinião de Aras, "as instituições estão funcionando regularmente em meio a uma pandemia que assombra a comunidade planetária, sendo necessária a manutenção da ordem jurídica a fim de preservar a estabilidade do Estado Democrático." Então, tá!


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