19/04/2024 - Edição 540

Poder

A miséria da diplomacia brasileira

Publicado em 15/01/2021 12:00 -

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Joe Biden, eleito novo presidente dos Estados Unidos, toma posse no próximo dia 20. Com ele, chega a incerteza de como o Brasil comandará a sua política externa nos próximos anos. O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, é o expoente de uma política alinhada a Donald Trump. Com a saída do aliado do poder no país vizinho, o ministro pode não sobreviver ao cargo.

Após os frequentes ataques de Jair Bolsonaro (sem partido) ao novo presidente americano, será preciso um sinal de paz se o país quiser continuar com uma relação amigável com os EUA. Um grande sinal de mudança de tom na política externa seria a demissão do atual ministro de Relações Exteriores, indicam especialistas.

"A gente nunca tinha tido um chanceler declaradamente fã de um presidente americano dessa forma, a ponto de chamá-lo de a 'última esperança' do mundo ocidental e coisas do tipo. Então a situação do Ernesto é muito complicada", explica o professor da FGV (Fundação Getúlio Varga), Guilherme Casarões. Chanceleres já caíram por muito menos na história do Brasil", afirma

Araújo se tornou chanceler com a promessa de trazer uma "nova política externa" ao Itamaraty — uma política de alinhamento automático aos Estados Unidos e contra o globalismo. Porém, para analistas em relações internacionais, o alinhamento na verdade foi ao presidente Trump, o que se provou problemático especialmente após suas ações nos últimos dias no cargo.

Para Ernesto e a ala chamada ideológica do governo Bolsonaro, Biden é um globalista, já que defende as instituições internacionais como a ONU (Organização das Nações Unidas). Portanto, seria um "inimigo" desse grupo. Com Biden agora no poder, será necessário repensar essa política externa proposta pelo chanceler.

“Caso haja a vontade do governo de corrigir essa rota e manter o que o próprio governo traçou que é um alinhamento aos Estados Unidos, a troca de ministros certamente terá um impacto positivo rápido. Seria uma forma bastante viável de resolver a questão", afirma Pedro Feliú, professor de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo).

A dúvida, no entanto, é qual sinal Bolsonaro pretende passar para o novo governo americano. Os setores não ideológicos do governo, como agronegócio, indústria e demais elites econômicas devem pressionar o presidente para manter uma boa relação com os EUA e até pela troca de chanceler. Não se sabe se ele atenderá.

Pressões no passado já funcionaram para derrubar ministros inclusive ideologicamente alinhados a Bolsonaro. O principal exemplo neste caso é o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub.

"Eu esperava que o presidente tivesse já a essa altura sinalizando uma troca de chanceler para fortalecer uma ala mais pragmática", diz o coordenador do curso de Relações Internacionais da FGV, Eduardo Mello. "Mas o presidente não fez isso, pelo menos não até agora e não deu sinais de que está pronto para fazer isso. É espantoso e vai ter um custo enorme para o Brasil."

As críticas a Araújo também abordam sua atuação como chanceler, que não tem sido de protagonismo nas relações exteriores do Brasil. "Como chefe da diplomacia, ele deveria ter feito um trabalho minimamente diplomático para garantir que o governo brasileiro não entrasse no novo governo americano com o pé esquerdo. E não foi isso que ele fez", lembra Casarões.

Na posse do dia 20, Ernesto Araújo estará de férias. Um despacho publicado nno último dia 12 no Diário Oficial da União informou que ele se ausentará do dia 16 ao dia 22 da semana que vem.

Mourão a frente da diplomacia

Outra possibilidade levantada pelos especialistas é de que Ernesto não seja removido do cargo, mas perca ainda mais a sua relevância nos assuntos internacionais. Nesse sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão seria um candidato a assumir a tarefa.

“O Mourão tentou ocupar espaço, foi vetado pelo Bolsonaro. Mas numa lógica de correção de rota é muito mais provável que a vice-presidência tenha um papel mais relevante que o ministro", diz Pedro Feliú.

Porém, segundo o professor da USP, um ponto a favor de Araújo em comparação com Mourão é a baixa possibilidade de o atual chanceler representar uma ameaça eleitoral a Bolsonaro.

O Itamaraty é utilizado pelo governo como plataforma eleitoral e Araújo não rouba o protagonismo do presidente. Mourão, por outro lado, já foi advertido por Bolsonaro outras vezes por ganhar destaque demais. Ministros como Sérgio Moro e Luiz Henrique Mandetta caíram justamente por ameaçar politicamente o presidente.

Ricardo Salles também na corda-bamba

Outro ministro do governo que ficaria por um fio durante o governo de Joe Biden seria Ricardo Salles, líder da pasta de Meio Ambiente. Segundo especialistas, a questão ambiental será central no novo governo americano e é onde ele bate de frente com o Brasil.

"Assim como o Araújo, o Salles representa a ala mais ideológica e que tem que ser trocado se o Brasil quiser fazer controle de danos e administrar essa situação", diz Eduardo Mello. "Se quiser abrir canais com os democratas, facilitaria muito tirar o Salles e colocar uma pessoa que tem algum trânsito com a questão ambiental".

Já nos debates presidenciais o então candidato democrata chegou a citar o Brasil como má exemplo de gestão da Amazônia devido às queimadas. Salles, por outro lado, é visto como um ministro negacionista das mudanças climáticas e que vai contra as políticas ambientais democratas.

“O Ricardo Salles é a cara da área mais sensível hoje do governo brasileiro, que é justamente a questão ambiental. E essa é a prioridade absoluta do governo americano. Ou Ricardo Salles modera o seu discurso, o que eu pessoalmente acho improvável a essa altura do campeonato, ou ele é demitido também", diz Guilherme Casarões.

Assim como Araújo, o que pode contar a favor do ministro é a baixa ameaça eleitoral para Bolsonaro em 2022, além da forte proximidade ideológica com o presidente. Isso garantia a permanência do cargo, mas ainda poderia jogá-los na irrelevância.

"No caso dos ministros, o Ricardo Salles [Meio Ambiente] e o Araújo cumprem bem esse papel. Eles, politicamente, não ameaçam o Bolsonaro. Eu acho que eles têm esses dois fatores favoráveis: a proximidade ideológica e não ameaça política. Então isso pode garantir ainda um pouco a sustentabilidade deles", diz Pedro Feliú.

A miséria da diplomacia: uma análise

Imaginem qual será o nível da boa vontade de Joe Biden com o governo brasileiro. Bolsonaro foi uma dos poucos chefes de Estado a não condenar a tentativa de golpe nos Estados Unidos. Seu governo não pronunciou uma mísera palavra sobre o atentado ao Capitólio. Em vez disso, reafirmou sua devoção a Donald Trump – a quem disse continuar ligado – e se apropriou do discurso trumpista, com a cantilena de que a eleição americana foi fraudada. Sem o menor respeito às normas que devem reger as relações entre países, entre as quais princípio da não ingerência – amplificou: “teve pessoas que votaram até quatro vezes e até morto votou”

A miséria da diplomacia brasileira ficou estampada no twitter de Ernesto Araújo. Em vez de se manifestar oficialmente e de condenar, sem meias palavras, o auto-golpe de Trump, o ministro das Relações Exteriores foi às redes sociais para fazer um comentário sibilino que, na verdade, passa o pano nos golpistas insinuando que o atentado foi coisa de infiltrado democrata. E protestou porque os terroristas invasores do Capitólio estão sendo chamados de fascistas.

Dá bem para se ter uma ideia das dificuldades estando o diálogo entre os dois países nas mãos do ministro que diz tais sandices ou do embaixador Nestor Foster, que, em seus informes ao presidente, espalhou desinformações e, para agradar a Bolsonaro, deu argumentos à teoria fajuta de que houve roubo na eleição americana.

Bolsonaro e Ernesto completam assim o ciclo da insensatez. Já tinham criado indisposição com a China e os países da União Europeia. Agora colocam o Brasil em desgaste com o governo do novo presidente dos Estados Unidos, cuja posse acontecerá no próximo dia 20. Uma agressão à boa tradição da política externa brasileira.

O Itamaraty sempre foi um centro de excelência, reconhecido mundialmente por seu alto nível de profissionalismo, pela formulação de uma doutrina diplomática pautada na defesa dos interesses do Brasil e no exercício do soft power. É assim desde os tempos de Juca Paranhos, o Barão de Rio Branco, quando, pela via da negociação, nosso país incorporou o Acre, ampliou seu território no oeste de Santa Catarina e assegurou a soberania sobre o Amapá.

Mesmo no período da ditadura militar, o Brasil construiu uma política externa altiva, sendo o primeiro país a reconhecer a independência das colônias portuguesas da África. O pragmatismo responsável da era Geisel.

Nomes de envergadura como Santiago Dantas, Fernando Henrique Cardoso, Osvaldo Aranha, Azeredo da Silveira, Saraiva Guerreiro, Afonso Arinos, Afrânio Melo Franco estiveram à frente da política externa brasileira. Celeiro de quadros, o Itamaraty produziu diplomatas da qualidade de um Rubem Ricúpero, Rubens Barbosa, Roberto Abednur e Celso Amorim. Assim, projetou o Brasil no cenário internacional, tendo como sua grande marca a formulação de uma política de Estado que não mudava conforme o governo de plantão.

O verbo vai no passado porque sob o comando de Ernesto Araújo, a quem seus próprios pares do Itamaraty apelidaram de Beato Salu, o personagem da novela Roque Santeiro que perambulava pela cidade anunciando o fim do mundo, a política externa virou política de governo, ditada pelos valores ideológicos do bolsonarismo. A própria ascensão de seus quadros deixou de se dar pela meritocracia. O critério passou a ser o da “identidade ideológica” ou da bajulação.

O produto da política externa de Araújo foi a redução do Brasil à uma péssima condição no cenário internacional, da qual o ministro se jacta. Ela conseguiu a proeza de levar o país a se indispor com o principal parceiro comercial, a China, e de ficar mal na fita com o presidente eleito dos Estados Unidos, nosso segundo parceiro comercial.

Nossa imagem no exterior é de um país destruidor do meio-ambiente, enquanto éramos uma referência mundial desde a Eco 92.

Nada de bom poderia sair de um ministro que se guia pela lógica do conspiratório, que via em Donald Trump a salvação da civilização judaico-cristã; que crê e alimenta uma guerra permanente contra o “globalismo maoísta”.

O Brasil ficou de fora da reunião de 80 chefes de Estado e de governo promovida pela ONU para preparar a Conferência sobre os cinco anos do Acordo Paris. Até a undécima hora Araújo fez de tudo para Bolsonaro participar do evento. Foi inútil. Infelizmente considera-se que o Brasil não tem nada a acrescentar em relação à questão climática.

O vexame maior veio no Senado, onde a indicação do embaixador Fábio Marzano para chefiar a missão brasileira na ONU foi rejeitada por goleada. É um episódio inédito que só tem precedente no governo Dilma Rousseff já na sua fase terminal, quando uma indicação sua foi rejeitada. Marzano é aquele diplomata que em uma conferência na Polônia defendeu a incorporação da religião na política externa brasileira.

A derrota humilhante do indicado pelo ministro do Exterior vem sendo chamada por diplomatas de o “7 a 1 do Beato Salu”.

Não há a menor condição de ele continuar à frente do Ministério do Exterior. Os militares querem sua cabeça, o agronegócio endossa o coro e os senadores mandaram um recado claro. Mas Bolsonaro resiste às pressões. Ernesto Araújo é inabalável porque sua cabeça é a do presidente. Mais do que isso: caiu nas graças do clã presidencial. Toda vez que Eduardo Bolsonaro diz uma enormidade e nos atrita com a China, o ministro sai a campo para respaldá-lo.

Na novela Roque Santeiro o Beato Salu entrou em coma por trinta e três capítulos, ressuscitou dizendo “mais forte são os poderes de Deus”. Já o Itamaraty está em coma há 24 meses e não sairá dele enquanto o seu Beato Salu sobreviver.


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