24/04/2024 - Edição 540

Brasil

Brasil entrou em 2021 com cerca de 40 milhões de pessoas na miséria

Publicado em 14/01/2021 12:00 -

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Com o carrinho de supermercado ainda quase vazio, o professor aposentado David Garbi, de 90 anos, não tira os olhos da lista de compras do mês. Pouco a pouco, vai refazendo com a caneta as contas ao checar os preços da prateleira. “Toda semana os produtos estão mais caros e vou tendo que diminuir a minha lista. Já compro o frango mais barato, mas, se o valor continuar subindo, vou ter que substituí-lo pelo ovo. Parece que a minha aposentadoria só diminui”, diz o aposentado que ganha pouco mais de um salário mínimo, que atualmente é de 1.100 reais. A percepção de Garbi é real. Em 2021, o salário terá, como no ano passado, o menor poder de compra em relação aos produtos da cesta básica desde 2005, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Atualmente, com um salário mínimo é possível comprar cerca de 1,58 cestas básicas, que custam, em média, 696,70 reais. De 2010 a 2019 esse indicador ficou sempre acima de duas cestas, com exceção de 2016, quando diminuiu para 1,93. A cesta básica é composta por 13 itens alimentícios e é base para o cálculo do valor do salário mínimo necessário para a sobrevivência de um trabalhador e de sua família.

A atual queda no poder de consumo pode ser explicada pela combinação de dois fatores: o aumento elevado de preços dos alimentos durante a pandemia do coronavírus, bem acima da inflação oficial, e o fim da política de valorização do salário mínimo, que vigorou entre 2011 e 2019, de reajuste pelo índice de preços e também pela variação do Produto Interno Bruto (PIB). Era uma forma de repassar aos trabalhadores o percentual equivalente ao aumento da riqueza nacional. Hoje, o compromisso do Governo é apenas com a reposição da inflação, sem promessa de aumento real na remuneração dos trabalhadores.

Dados divulgados pelo IBGE mostram que a inflação oficial do Brasil, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), fechou 2020 com alta de 4,52%, acima do centro da meta para o ano, que era de 4%, enquanto os preços dos alimentos acumularam aumento de 14,09% no ano. Já o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) utilizado para reajustar o mínimo fechou com alta de 5,45%. O reajuste aplicado ao mínimo pelo Governo foi menor, de 5,26%. Em outras palavras: o reajuste do salário mínimo anunciado para 2021 não cobre a alta da inflação. O mesmo ocorreu no ano passado, quando inicialmente o reajuste para 2020 também não acompanhou a alta dos preços. Entretanto, após a divulgação dos dados pelo IBGE na ocasião, o Governo determinou uma nova correção.

A alta dos preços atingiu todos os setores da alimentação e a desvalorização do real frente ao dólar desde o início da crise sanitária foi um dos motivos que mais pressionou o indicador. “O Brasil é um grande exportador de alimentos e o fato de ter uma moeda norte-americana muito valorizada, que acumulou um avanço de 35%, faz com que o produtor queira exportar, diminuindo a oferta local, o que causa uma forte variação no preço. Já o que importamos, com dólar alto, também fica mais caro”, afirma George Sales, professor da Fipecafi. Além disso, fatores climáticos, em decorrência de longos períodos de estiagem ou de chuvas intensas, também impactaram nos preços dos alimentos ao longo dos meses.

Um levantamento divulgado pelo Dieese, nesta semana, mostrou que houve aumento do valor da cesta básica em 17 capitais pesquisadas no país. Um dos grandes vilões da inflação desse ano foi o arroz, que foi pressionado pela alta do dólar, o que aumentou o custo de produção e elevou o volume de grão exportado. A elevada exportação de soja, o carro-chefe da agricultura no país, também impactou no preço do grão e elevou o preço interno de derivados como o óleo de soja. Carne, leite, batata, açúcar e farinha foram outros produtos que pesaram no bolso do consumidor no ano que passou. Entre os alimentos que mais aumentaram os preços, o óleo de soja (103,79%) e o arroz (76,01%) foram dois que dispararam, assim como o leite longa vida (26,93%), as frutas (25,40%), as carnes (17,97%), a batata-inglesa (67,27%) e o tomate (52,76%).

Os efeitos da inflação não são iguais para toda a população e os gastos com alimentação acabam pesando mais para as classes de renda mais baixa, já que grande parte do orçamento é gasta com alimentos. “A inflação é de cada um. E foi muito mais forte para os mais pobres, já que grande parte do salário deles é gasto com comida e bebida. O salário mínimo teria que aumentar mais de 22% para acompanhar a cesta básica”, diz Sales.

Na avaliação de José Silvestre, diretor adjunto do Dieese, é preciso se discutir uma política de valorização do salário mínimo a longo prazo, já que a remuneração está defasada. “Hoje 50 milhões de pessoas têm rendimento referenciado no salário mínimo. Muitos críticos dizem que um aumento do salário impacta nas contas públicas já muito debilitadas, mas é preciso também ver o impacto positivo, de injeção de dinheiro na economia, de arrecadação de tributos e do poder de compra das pessoas”, explica. Considerando o valor da cesta básica de São Paulo, o Dieese estima que o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a 5.304,90 reais, o que corresponde a 5,08 vezes o vigente. O cálculo é feito levando-se em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças.

O professor George Sales avalia que atualmente o Governo de Jair Bolsonaro não tem espaço de manobra, com as contas há mais de seis anos no vermelho, para subir em excesso o salário. “E o próprio setor privado também é prejudicado, em um momento que as empresas tenta sobreviver diante de um choque tão grande como o da pandemia. Hoje, o que o presidente deveria fazer era continuar com o auxílio emergencial para quem precisa por alguns meses, é algo mais focado e não altera o salário de todos”, afirma. Para o professor, o país tem espaço para assumir uma dívida para atender a população mais vulnerável, já que é um momento de exceção.

Se já está difícil fazer compras para quem ganha um salário mínimo, que é reajustado pela inflação anual, o desafio é ainda maior para os trabalhadores informais. A faxineira Gislaine de Jesus, de 43 anos, tem se assustado com os preços no mercado e já substitui o arroz diário do almoço pela macarrão. Mãe de 3 filhos, ela precisa de muito malabarismo para manter a alimentação da família. O valor da diária de limpeza que cobra 130 reais não aumenta há anos. “No início da pandemia, a ajuda do auxílio emergencial ajudou bastante já que perdi quase todos os clientes. Agora estou conseguindo mais trabalho, mas a compra do mês está pesada”, afirma a diarista enquanto decidia, em um supermercado da região oeste de São Paulo, qual carne levar para casa.

O mercado financeiro projeta que a inflação no próximo ano deve ser um pouco menor. De acordo com o último Boletim Focus, a variação de preços deve chegar ao patamar de 3,34%. Com o avanço da vacinação contra a covid-19 no Brasil e no mundo, a moeda americana deve ficar menos pressionada, diminuindo o preço dos alimentos. Por outro lado, alguns ajustes de preços previstos não ocorreram no setor educacional, de planos de saúde e algumas tarifas públicas – como de transporte e água. Esses itens devem subir. “Há algumas variáveis que podem segurar a inflação de preços em 2021. Ainda enfrentamos nível alto de desemprego e há o encerramento do auxílio emergencial, fatores que reduzem o poder de compra dos brasileiros, de forma geral. Alterações na balança comercial, variações na taxa de câmbio e possíveis movimentos da taxa de juros básica (Selic) também poderão impactar o IPCA ao longo do ano de 2021″, diz Luciana Machado, doutora em Finanças pela FGV.

Ano novo com mais pobres

O Brasil entrou em 2021 com cerca de 40 milhões de pessoas na miséria, indisfarçável legado de quase um ano de pandemia e de dois anos de desgoverno. O último balanço oficial, relativo a outubro, apontou 14,06 milhões de famílias em extrema pobreza, isto é, com renda de até R$ 89 por pessoa. Esse contingente, o maior desde 2014, correspondia a 39,99 milhões de pessoas. Os dados são do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), elaborado pelo Ministério da Cidadania. As famílias nessa condição eram 13,50 milhões no começo de 2020, antes da pandemia, e 13,07 milhões em janeiro de 2019, início do mandato do presidente Jair Bolsonaro. A covid-19 agravou um quadro já em deterioração.

As condições de emprego já eram muito ruins quando os primeiros casos de covid-19 foram identificados no Brasil. No trimestre encerrado em fevereiro de 2020 estavam desocupados 12,3 milhões de trabalhadores, número correspondente a 11,6% da força de trabalho. A taxa foi pouco inferior à de um ano antes, de 12,4%.

Em 12 meses o novo governo havia sido incapaz de movimentar a economia e de expandir as oportunidades de ocupação, apesar do apoio manifestado pelo setor empresarial. O primeiro ano se encerrou com crescimento econômico de apenas 1,6%, inferior ao de 2018, embora o presidente Michel Temer tivesse encontrado enormes dificuldades no final de seu mandato.

As famílias em extrema pobreza identificadas em outubro eram 47% do total. Na faixa seguinte, com renda per capita de R$ 89,01 a R$ 178, havia 2,9 milhões, ou 10% das famílias. Na faixa seguinte, com renda de R$ 178,01 a meio salário mínimo, estavam 21%, ou 6,3 milhões. Na faixa seguinte, com ganho pessoal acima de meio salário mínimo, ainda se poderia encontrar um grande número em condições muito modestas.

O desastre econômico de 2020 e seus efeitos sociais foram atenuados pelo auxílio emergencial pago até o fim do ano. A partir de setembro esse auxílio foi reduzido de R$ 600 para R$ 300 por mês. Mas a ajuda, embora severamente diminuída, ainda foi preciosa para as famílias em pior situação.

Além da redução do auxílio emergencial, as famílias tiveram de enfrentar, no segundo semestre, um forte aumento da inflação, puxado principalmente pelos preços da comida, o item de maior peso no orçamento dos mais pobres. A disparada do custo dos alimentos foi mostrada claramente por todas as pesquisas.

Exemplo: uma alta de 12,69% acumulada em 12 meses foi reportada em dezembro pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em seu Índice de Preços ao Consumidor (IPC). Esse indicador é parte do Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M). A alta poderia ter sido bem maior se tivesse ocorrido um repasse mais amplo dos aumentos ocorridos no atacado. No caso dos produtos agropecuários, o encarecimento em 12 meses chegou a 49,43%.

Esse tipo de pressão poderá ser menor em 2021, mas os preços da comida, segundo especialistas, devem continuar elevados. Além disso, pressões do mercado externo, reforçadas pelo câmbio, ainda poderão ocorrer. Poderão ser menos fortes que as verificadas em 2020, mas, se surgirem, poderão agravar seriamente as condições dos mais pobres.

A demanda internacional continuará aquecendo os preços da soja e de outros produtos, com a recuperação mais veloz dos grandes mercados. O governo deveria dar atenção a isso e examinar as previsões do Ministério da Agricultura (quanto à produção de arroz, especialmente). É hora de pensar mais seriamente, por exemplo, numa estratégia de formação de estoques.

Sem o auxílio emergencial e com desemprego ainda muito alto, as famílias pobres – e muito pobres – poderão ter um ano muito penoso. Ministros discutem formas de substituir o auxílio emergencial. Tem-se falado sobre reformulação do Bolsa Família, com a possível aprovação de novas formas de benefícios. Podem ser ideias boas, mas ninguém deveria menosprezar um dado simples e muito importante: uma fila de 1,3 milhão de famílias espera ingresso no programa. Não seria melhor, por enquanto, buscar uma forma de incorporar essas famílias?


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