20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Deveríamos ter vergonha de estar falando em comercialização de vacinas’, afirma Deisy Ventura

Publicado em 13/01/2021 12:00 -

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Não há “bala mágica” contra a covid-19, e a descoberta de um imunizante não vai resolver imediatamente a pandemia – certamente não no Brasil de Bolsonaro. A visão de Deisy Ventura, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a FSP-USP, pode jogar um balde de água fria sobre os ânimos mais exaltados com a chegada da vacina no país. Apesar dos bons resultados da vacina do Instituto Butantan e de a corrida pelo imunizante já ter batido na porta da Anvisa, um plano nacional de imunização ainda tem um poderoso entrave: o governo federal.

“As vacinas são fruto do extraordinário mérito da ciência, que o governo federal brasileiro nega, difama e boicota”, me disse Ventura. Por exemplo: apesar do acelerado desenvolvimento de vacinas por diferentes laboratórios, uma delas do Instituto Butantan, o governo federal dissemina desinformação, desencoraja a vacinação e já chamou de “ansiedade” a pressa para a imunização. A Coronavac, transformada em bandeira política na disputa entre o governo federal e o tucano João Doria, também já se transformou em mais uma ferramenta de polarização no discurso dos extremistas apoiadores de Bolsonaro, que têm desencorajado a vacinação. Tudo isso no país de 200 mil mortos por covid-19, marca ultrapassada no dia 7 de janeiro. Assim, a descoberta de imunizantes é apenas o primeiro passo de um longo caminho.

“O sucesso da imunização depende da adesão dos destinatários de cada etapa. Requer capacidade de planejamento e articulação com estados e municípios e gestão de procedimentos complexos”, me disse Ventura, advogada e autora de 15 livros sobre relações internacionais e educação jurídica, especialista em ética e saúde global. “Nada disso combina com a forma de fazer política dos grupos extremistas que aparelharam a dimensão federal do estado brasileiro”.

Além das pedras presidenciais no caminho, a jabuticaba é que, mal foram aprovadas as vacinas, já se discute a possibilidade de negociá-las na rede privada – e não priorizar a rede pública, como o resto do mundo. Segundo Ventura, cogitar a comercialização de doses do imunizante durante uma pandemia é inconstitucional por violar princípios da isonomia e impessoalidade. “É imoral, infame, e deveríamos ter vergonha de estar falando nesse assunto no momento em que todos os brasileiros devem lutar pelo programa nacional de imunização, que só nos dará efetiva segurança quando atingir de forma criteriosa cerca de 80% da população”, diz.

A acadêmica é pessimista, mas cobra a conta: “espero que um dia os responsáveis por esta triste situação do Brasil sejam julgados e punidos”.

 

Em tempos em que um presidente se posiciona publicamente contra a imunização (‘Não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu’, nas palavras de Jair Bolsonaro), o básico primeiro: por que uma vacina contra covid-19 importa? 

As vacinas contra a covid-19 são importantes para que se possa, em conjunto com outras medidas de saúde pública, e dentro de um prazo que ainda não sabemos qual será, reduzir a propagação do vírus no seio da população, além de buscar a minimização dos efeitos perniciosos da doença, na perspectiva de um controle da pandemia em nosso território, algo que até então jamais tivemos.

Não cabe agora discutir a obrigatoriedade das vacinas, pois nem sequer existem doses suficientes para todos. Mas é importante, de imediato, questionar qual seria o objetivo dos agitadores extremistas que procuram desencorajar a vacinação. No caso do Brasil, falar em vacina leva a um oximoro: as vacinas são fruto do extraordinário mérito da ciência, que o governo federal brasileiro nega, difama e boicota.

[As vacinas] são destinadas à contenção de um vírus que o governo tem buscado disseminar o mais rápido possível, por meio de propaganda contra as medidas de saúde pública, da obstrução ao trabalho dos governos locais e de ações normativas, tais como a edição de leis que favorecem a propagação do vírus e vetos àquelas que buscam impedi-la [a propagação]. [O governo federal] acredita que a multiplicação das mortes é dano colateral aceitável para que a economia logo retome seu curso – crença, diga-se de passagem, já largamente desmentida por economistas de renome.

As vacinas ainda deverão ser distribuídas por meio do programa nacional de imunizações brasileiro, referência internacional, que demonstra a crucial importância do SUS para a segurança da população. Exige uma estratégia de comunicação séria, responsável e coerente, promovendo a união e o engajamento da população em um processo coletivo. Por isso, o sucesso da imunização depende da adesão dos destinatários de cada etapa. Requer capacidade de planejamento e articulação com estados e municípios e gestão de procedimentos complexos. Enfim, nada disso combina com a forma de fazer política dos grupos extremistas que aparelharam a dimensão federal do estado brasileiro.

Em artigo publicado na Folha no fim de setembro, você e Danielle Rached destacam a importância da aliança Covax e da cooperação internacional no enfrentamento à pandemia. Mas uma vez aprovadas as vacinas, há mecanismos para garantir acesso e distribuí-las de modo minimamente justo? Rompendo, por exemplo, a lógica criticada por autoras como Tatiana Prazeres e Maria Augusta Arruda de que quem tem condições terá acesso e ‘quem não tem irá para o final da fila’? 

Ruim com a Covax, pior sem ela. Para dezenas de países, a cooperação internacional é, de fato, a única possibilidade de acesso a vacinas e outros insumos. Isso está longe de ser novidade. A promoção de grandes programas de imunização faz parte da história da cooperação internacional em saúde, e o combate a doenças infecciosas como a malária e a tuberculose, por exemplo, catalisa milhões de dólares de diferentes doadores a cada ano. Um dos exemplos mais conhecidos é a GAVI Alliance, iniciativa da Fundação Gates iniciada em 2000, que envolve indústria farmacêutica, organizações internacionais como a OMS e o Banco Mundial, além de numerosos atores sociais.

Quem, como eu, possui uma visão crítica da saúde global, questiona diversos aspectos dessas iniciativas: a pouca transparência sobre procedimentos e dados, inclusive os relativos à eficiência dos programas; o caráter das “parcerias público-privadas”, que por vezes implica no predomínio de interesses dos doadores sobre os dos potenciais beneficiários; a insistência na ideia que chamamos de “bala mágica”, ou seja, de que um medicamento ou uma vacina resolverá os problemas de saúde de uma população, que são sempre muito mais complexos, gerando a recorrência dos problemas em razão da persistência de suas causas etc. Temos estudado um fenômeno que chamamos de “filantrocapitalismo”, constatando que o slogan “salvar vidas” pode ser instrumentalizado em prol de interesses econômicos.

Tudo isso para dizer que a covid-19 e seus dilemas são algo novo apenas para quem não conhece a saúde global, pois mesmo quando a cooperação internacional promove a redistribuição de bens relacionados à saúde, ela é palco da disputa entre diferentes lógicas. Isso não significa que deva ser refutada. Ao contrário, ela precisa ser repensada e isso só ocorrerá pelo empenho de novas lideranças. Durante muito tempo, o Brasil cumpriu seu papel como uma importante voz do Sul Global nas arenas internacionais de saúde, propondo e promovendo novas formas de cooperação internacional. Hoje, não é mais.

Uma pena, porque com a qualidade de seus institutos de pesquisa e de seus cientistas, e com sua grande capacidade de produção de vacinas, com os investimentos e a liderança adequada, poderia viver um momento glorioso de sua ação internacional, com grande proveito para os interesses nacionais.

Qual é o papel de organizações internacionais nesse contexto?

A atitude dos estados diante das vacinas é bem representativa do momento político que vivemos. Poucos se dão conta do quanto o setor saúde depende de dinâmicas internacionais, como bem revelou a dependência de numerosos países em relação a insumos produzidos na China. Mas o papel das organizações internacionais, a geopolítica e as relações internacionais vão muito além da questão do acesso à vacina.

É preocupante que o advento das vacinas, uma notícia tão boa para a humanidade, tenha desviado o debate público sobre a própria pandemia. Há pelo menos duas décadas, a OMS previne os estados sobre a iminência de uma pandemia como essa. Há centenas de documentos que buscaram, ao longo dos anos, preparar os países para esse tipo de evento, inclusive um Regulamento Sanitário Internacional vigente em 196 estados. Durante a pandemia, a OMS tem cumprido seu papel de coordenadora da ação do sistema das Nações Unidas na resposta internacional, sobretudo por meio da coleta e distribuição de informações fidedignas, além da formulação de recomendações e da liderança em algumas iniciativas. Tem feito isso em momento de grave declínio do multilateralismo, sob o intenso ataque de governos nacionalistas e populistas. Mas nada disso é novidade para a OMS, cuja história é marcada por crises e reformas que se eternizam.

Em artigo publicado na Revista de Direito Internacional, você e Jameson Martins definem o governo do Brasil como populista e negacionista na resposta à pandemia. Onde o governo acertou e onde errou? 

Não há acerto a apontar, eis que devemos o auxílio emergencial ao Congresso Nacional, e não ao governo federal, que o atrasou o máximo possível e o implementou com inúmeros defeitos, entre eles longas filas que submeteram a população ao risco de infecção. Temos discutido com afinco a configuração de crimes contra a saúde pública, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade nas condutas e omissões que nos levaram à deplorável cifra de 200 mil mortes que poderiam ter sido evitadas.

No mundo, cerca de um a cada dez mortos é brasileiro. Diferentemente da quase totalidade do planeta, no Brasil não havia um governo empenhado em lutar contra a doença, promover a união nacional para seu enfrentamento, apoiar o sistema de saúde e conscientizar a população sobre os riscos que estava correndo, bem ao contrário.

A comunidade global está ainda mais chocada, porque o Brasil era considerado por rankings internacionais como o país em desenvolvimento com maior capacidade de resposta a uma emergência de saúde pública, sobretudo por ter um sistema de acesso universal e gratuito com capilaridade em todo o território nacional, além de cientistas e profissionais de saúde de excelência. Mas o governo federal voluntariamente desperdiçou os vastos recursos institucionais dos quais dispunha, especialmente a partir de abril, em particular a atenção primária à saúde, um dos grandes trunfos do sistema brasileiro, e obviamente o sistema de vigilância em saúde, cuja potencialidade foi ignorada.

Há, ainda, o vexatório comportamento individual de membros do governo. Um exemplo simples da ilicitude de numerosas condutas encontra-se no Código Penal, no artigo 268, pelo qual “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” é punível com detenção, de um mês a um ano, e multa. A pena é aumentada de um terço se o agente é funcionário da saúde pública. Infelizmente, o governo segue disseminando a falsa ideia de que existe “tratamento precoce” para a covid-19, buscando iludir a população para que ela tenha coragem de se expor. Além disso, promove a falsa contradição entre proteção da saúde pública e proteção da economia, voltando uma parcela do setor privado contra as autoridades sanitárias.

Quanto aos crimes de responsabilidade, os pedidos de impeachment se avolumam, parte deles relacionada à pandemia. Quanto aos crimes contra a humanidade, já foram feitas diversas comunicações ao Tribunal Penal Internacional que apontam o comportamento intencional do presidente no sentido de disseminar a doença no Brasil e obstaculizar o trabalho daqueles que a combatem. Muitas vezes, [esse comportamento é] corrigido pela atuação do Congresso Nacional, que chegou a derrubar alguns de seus vetos, e do Supremo Tribunal Federal, que, por meio de inúmeras ações, tem evitado uma situação ainda mais grave, com destaque para o reconhecimento da competência de estados e municípios para adotar medidas de combate à doença.

Uma vacina VIP (privatizada, isto é, a priori ofertada por clínicas particulares, e não por instituições públicas e via SUS) seria mais uma jabuticaba do Brasil?

Existe no Brasil um mercado privado de vacinas que convive em harmonia com o programa nacional de imunizações, e isso não deve mudar. Porém, no intuito de obter lucro, há quem semeie a confusão entre essa realidade e a estratégia de combate à vigente emergência de saúde pública, declarada nacional e internacionalmente e, no caso do Brasil, em pleno aumento do número de casos e óbitos.

Atenção para a singularidade das vacinas contra a covid-19, que se diferenciam de outras por surgirem durante uma emergência global de escala inédita na contemporaneidade. Ao falar sobre elas, é preciso levar em conta seu contexto: são vacinas autorizadas em caráter emergencial ou por procedimento sumário, que circularão em grande escala, durante uma pandemia, com o intuito de contê-la. E eis que o Brasil vê surgir mais um falso debate, buscando iludir as pessoas que têm renda suficiente para pagar uma vacina. O canto da sereia é a mentira de que, quanto mais gente imunizada, mais se “desafogaria” o SUS. Que tristeza ver circular impunemente uma barbaridade dessas!

É muito importante esclarecer que vacinas não funcionam como um tratamento individual ou remédio. Mas especialmente as vacinas contra a covid-19 não são vacinas iguais às outras, e nem o momento é ordinário. Vacinas contra a covid-19 são bens escassos, disputados com afinco no plano internacional, que só estão circulando prematuramente em razão da gravidade da situação. Não há segurança sobre o grau e a duração da proteção das diferentes vacinas, e ainda pouco sabemos sobre os efeitos adversos, que precisam ser monitorados por um controle público e nacional.

Isto para não falar no que ainda não sabemos sobre o número e o intervalo entre doses, mutações virais etc. Logo, distribuir vacina individualmente, segundo a renda, em plena pandemia, não garante de fato a saúde de quem a recebeu. Sem uma estratégia de prioridades e controles, a vacina ilude o indivíduo, que pode baixar a guarda em relação a outras medidas de proteção, ser infectado e transmitir a infecção; enriquecer quem a vende e ainda atrapalhar a imunização coletiva.

Importante saber: ao contrário do que muitos pensam, o programa nacional de imunizações do SUS funciona muito bem e tem total capacidade para implementar essa estratégia. Além de ineficiente, a comercialização de vacinas durante uma pandemia é inconstitucional por violar explicitamente os princípios da isonomia e da impessoalidade; é imoral, infame, e deveríamos ter vergonha de estar falando nesse assunto no momento em que todos os brasileiros devem lutar pelo programa nacional de imunização, que só nos dará efetiva segurança quando atingir de forma criteriosa cerca de 80% da população. Parcerias com o setor privado seriam possíveis no âmbito do programa nacional de imunizações e em seu apoio, jamais fora dele.

O que está em jogo quando se discute ética e saúde global diante de um mundo desigual? 

A desigualdade entre os países em matéria de acesso a medicamentos e vacinas é uma realidade inquestionável, muito anterior à pandemia. Dentro de cada país, também se multiplicam essas desigualdades, assim como diversas outras que impactam a saúde. No mercado mundial, os estados são os maiores compradores de medicamentos. A pressão da indústria farmacêutica sobre os governantes e sobre o conjunto do setor da saúde é avassaladora, gerando conflitos de interesse, regulamentação nem sempre orientada ao interesse público e distorções de prioridades na destinação de recursos.

Mas é importante lembrar que saúde é muito mais do que remédio e vacina. Grosso modo, na arena da saúde global enfrentam-se duas grandes percepções. Uma que privilegia a abordagem do que chamamos de determinantes sociais da saúde, tais como moradia, alimentação, escolaridade, renda e emprego. E outra que percebe a saúde como um grande mercado, que tende a apostar na persistência de problemas rentáveis em lugar de gerar efetivas soluções.

Entre a cooperação internacional e o discurso de líderes nacionalistas, como o mundo se saiu no combate ao coronavírus em 2020? E o que esperar em 2021?

A recente ascensão da extrema direita em países importantes, tais como Estados Unidos, Reino Unido e Brasil, fez com que a pandemia encontrasse o mundo em um de seus mais infames momentos. Embora desprovida de autonomia e de poder de sanção a estados faltosos, a OMS conseguiu oferecer uma referência comum de resposta à pandemia; objetivamente, os estados que não seguiram suas recomendações são hoje os que apresentam os piores resultados.

Caso não ocorra uma radical mudança de atitude do governo federal, creio que 2021 será um ano ainda mais difícil para o Brasil, com a sobrecarga do sistema de saúde e de seus profissionais, a persistência de mobilização de extremistas contra as medidas de saúde pública para fins de propaganda ideológica, a escassez crescente de recursos e uma enorme crise de comunicação sobre as vacinas. Isso além de dificuldades objetivas de implementação do programa de imunização decorrentes da inoperância governamental, enquanto outros países bem governados conquistarão, enfim, o controle da pandemia em seus territórios e a verdadeira retomada econômica. Espero que um dia os responsáveis por essa triste situação do Brasil sejam julgados e punidos.


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