29/03/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro vai se firmando entre lideranças antidemocráticas mundiais

Publicado em 08/01/2021 12:00 -

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Chocados diante das imagens no Capitólio, diplomatas ocidentais rapidamente se organizaram para que houvesse uma condenação de praticamente todos os países democráticos contra os atos em Washington. O entendimento era de que o que estava em jogo não era apenas a democracia nos Estados Unidos (EUA), mas a sobrevivência da credibilidade de um sistema.

A surpresa diante do que ocorria nos EUA logo ganhou um novo capítulo nos bastidores da diplomacia: a hesitação do maior país da América Latina, o Brasil, de também condenar de forma inequívoca os atos na capital americana.

O tom do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, de praticamente justificar a invasão deixou negociadores ocidentais preocupados com o posicionamento do governo brasileiro.

Horas depois de Bolsonaro alertar que o mesmo poderia ocorrer no Brasil, foi o chanceler Ernesto Araújo que reagiu nas redes sociais. Ainda que ele tenha condenado o ato, ele fez ponderações em defesa da base de Trump e das teses promovidas pela extrema-direita americana.

"Há que lamentar e condenar a invasão da sede do Congresso ocorrida nos EUA ontem", escreveu o ministro. "Há que investigar se houve participação de elementos infiltrados na invasão. Há que deplorar e investigar a morte de 4 pessoas incluindo uma manifestante atingida por um tiro dentro do Congresso", disse.

"Nada justifica uma invasão como a ocorrida ontem. Mas ao mesmo tempo nada justifica, numa democracia, o desrespeito ao povo por parte das instituições ou daqueles que as controlam", ponderou.

"O direito do povo de exigir o bom funcionamento de suas instituições é sagrado. Que os fatos de ontem em Washington não sirvam de pretexto, nos EUA ou em qualquer país, para colocar qualquer instituição acima do escrutínio popular", arriscou o chanceler.

Dentro do Itamaraty, o comportamento criou um mal-estar. O temor é de que, ao voltar a questionar a vitória de Joe Biden e legitimar a ação dos manifestantes, Bolsonaro tenha colocado de vez a diplomacia brasileira numa situação incômoda e sem uma saída real.

"Temos de nos perguntar o que significa quando um país da dimensão do Brasil opta por hesitar em condenar a violência e não qualificar os acontecimentos como um ataque contra a democracia", afirmou um membro da Comissão Europeia, que pediu anonimato.

Para negociadores, a nova postura de Bolsonaro o afasta ainda mais do grupo de países democráticos, num gesto que poderia ter até mesmo consequência para sua sonhada adesão à OCDE.

Diplomatas brasileiros ainda temem que a reação do governo brasileiro gere uma resistência ainda maior por parte de Parlamentos europeus sobre a possibilidade de assinar um acordo comercial entre o Mercosul e a UE. Hoje, o impasse é acima de tudo ambiental. Mas a exigência de uma postura democrática também poderá pesar.

Embaixadores experientes relataram à coluna como a postura escolhida pelo governo diante da mais recente crise causada por Trump coloca o país numa situação ainda mais distante da principal obra que Biden prepara para 2021 em seu campo externo: a organização de uma Cúpula pela Democracia.

"Ficará registrado entre os membros do novo governo a atitude de Bolsonaro e isso vai pesar quando for debatido um eventual convite ao brasileiro para sentar à mesa das grandes democracias do mundo", afirmou um ex-ministro brasileiro, na condição de anonimato.

Lugar de destaque…

O fim do governo de Donald Trump não significará o fim da agenda ultraconservadora no mundo. Alimentado por recursos milionários e uma vasta rede de entidades, o chamado lobby cristão mantém sua agenda nos fóruns internacionais e tem um aliado: o governo brasileiro sinaliza que não vai abandonar orientações que marcaram os dois primeiros anos da diplomacia de Jair Bolsonaro representado o Brasil. É o que apontam diplomatas, funcionários do Planalto e especialistas consultados pela coluna.

Uma das formas de fazer avançar essa pauta, num momento em que Argentina aprova o aborto e que o maior parceiro muda de governo, é reforçar a ideia de que temas religiosos têm seu espaço nos fóruns internacionais. Não apenas como uma questão de promoção da tolerância entre diferentes religiões. Mas também como uma forma de justificar políticas sociais e de saúde.

Para 2021, o Itamaraty chegou a propor sediar a reunião de uma coalizão de países que lutam pela liberdade religiosa. A Aliança Internacional sobre Liberdade Religiosa foi criada pelo governo americano, em fevereiro de 2020, apoiada por uma sólida base republicana e de grupos cristãos.

Em discurso em novembro, o chanceler Ernesto Araújo indicou que o Brasil daria início a programas para ajudar refugiados vítimas de perseguição religiosa.

"O governo brasileiro está atualmente instalando um centro de reassentamento específico para receber refugiados e requerentes de asilo que tenham sofrido perseguição por suas crenças religiosas", disse.

A reportagem apurou que o governo brasileiro está criando um mecanismo específico para o reassentamento ou a concessão de status de refugiados por motivo de perseguição ou discriminação por razões religiosas. A iniciativa está em fase avançada de discussão entre as pastas competentes e, uma vez estabelecida, serão entidades sociais quem implementarão as medidas de reassentamento, com a ajuda do governo.

Em Brasília, diplomatas indicaram que diversas entidades, inclusive religiosas, manifestaram interesse preliminar em participar do programa.

Diálogo com Hungria no Oriente Médio

Ainda no final de 2019, o governo de extrema-direita da Hungria de Viktor Orbán já propôs uma parceria com Bolsonaro para financiar a ajuda comunidades de cristãos no Oriente Médio. Até aquele momento, 70 mil cristãos já tinham sido atendidos pelos programas do governo Orbán desde 2016. A ideia era de que o Brasil pudesse escolher entre apoiar comunidades cristãs na Síria, Iraque ou Líbano.

Os projetos incluem a reconstrução de casas, escolas, hospitais e infraestrutura, justamente para permitir que as pessoas possam voltar para suas comunidades.

Já no final de 2020, uma nova reunião bilateral entre Brasil e Hungria voltou a tratar do tema religioso. Desta vez, a cooperação ia além e envolvia troca de favores.

O chanceler húngaro, Péter Szijjártó, indicou que a aproximação envolveria uma postura conjunta nos órgãos internacionais. O Brasil apoiaria a Hungria para presidir a Assembleia-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) em 2022 e 2023 e, como contrapartida, Budapeste apoiaria a candidatura do Brasil no Conselho de Segurança da ONU e para uma vaga de juiz no Tribunal Penal Internacional. Nessa última eleição, o nome proposto por Bolsonaro foi derrotado.

"Forças antinacionais, antirreligiosas e antifamília estão ampliando seus ataques no nível internacional contra governos em busca de políticas patrióticas, pró-família e cristãs", disse o chefe da diplomacia húngara. "É por isso que é importante que governos como do Brasil e Hungria, fortaleçam sua cooperação", defendeu Szijjártó. O Brasil não se manifestou oficialmente sobre a proposta.

A aliança conservadora mundial

Em novembro, uma reunião ministerial foi organizada pelo governo da Polônia, apontado na Europa como um dos principais líderes da agenda ultraconservadora. No total, 32 países fazem parte da iniciativa, cujo objetivo é o de colocar a questões religiosas e de liberdade de religião na agenda internacional. Além de Brasil e Polônia, fazem parte da iniciativa governos como o da Albânia, Armênia, Austrália, Bulgária, Israel, Hungria e Ucrânia.

Em novembro, o chanceler Ernesto Araújo acenou a intenção do Brasil de realizar a terceira reunião ministerial da aliança, reforçando sua posição dentro do movimento ultraconservador.

Não existe ainda uma data para o encontro. Por conta da pandemia e da dificuldade em viajar ao país, uma segunda opção debatida entre os estrangeiros seria o de levar o evento para a Ásia. O governo brasileiro mantém a aposta no território nacional, em encontro a ser realizado no segundo semestre de 2021.

O oferecimento do Itamaraty foi recebido por diplomatas de outros países da aliança como um sinal de que o governo de Jair Bolsonaro irá trabalhar para manter vivo o debate e seu protagonismo.

"A manutenção dessa pauta não é exatamente surpreendente", disse Sonia Correa, pesquisadora da ABIA – Associação Brasileira Interdisciolinar de AIDS e co-coordena o Observatório de Sexualidade e Política (SPW).

"Primeiro, por que como observou Benjamin Teitelbaum, em entrevista ao Globo nesse domingo, nenhum governo no mundo abriga tantas figuras solidamente alinhadas com o tradicionalismo do que o Brasil. Além disso, o lugar e peso geopolítico do país oferecem as forças do neoconservadorismo global uma plataforma de acesso e, eventual influência, a países e regiões as quais a diplomacia dos outros estados deste campo, como Hungria, Polônia ou mesmo Rússia não chegam", estima.

"Não estou me referindo apenas a América Latina, onde isso é mais que flagrante, mas também a África subsaariana, sem esquecer os BRICS. Esse tecido sedimentado durante décadas de diplomacia multilateral e democrática está sendo vampirizado pelas forças de direita", completou.

Clássicos do Ocidente de volta à formação dos diplomatas

Junto com a pauta ultraconservadora, o Brasil também passou a lidar com a preservação do que a chancelaria tem chamado de "valores ocidentais". Antes mesmo de assumir o cargo de ministro, Ernesto Araújo escreveu um longo texto sobre como tal preservação deveria fazer parte das considerações políticas dos países e chegou a colocar Donald Trump como a figura que iria "salvar o Ocidente".

No Instituto Rio Branco, o currículo dos futuros diplomatas foi modificado em 2019 para incluir uma disciplina que resgatasse o pensamento ocidental. Para isso, clássicos foram reintroduzidos no programa com os principais autores que forjaram a cultura do Ocidente.

No final de 2020, Araújo citou ainda como a disciplina resultou na publicação de um livro pela Funag (Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty) incluindo ensaios sobre Aristóteles, Santo Agostinho, Dante, Locke, Kant e Tocqueville.

A presença do discurso religioso e ultraconservador também ficou clara nos últimos textos publicados por Araújo. Num deles, no final de dezembro, o chanceler aponta para o "anticristianismo e a cristofobia" como ameaças.

Posição clara contra o aborto legal argentino

Ao fazer recomendações, sugeriu que sociedades "parem de demonizar a religião, pois a religião é um veículo privilegiado para a espiritualidade". "Parem de achar que o ateísmo é mais "evoluído" do que a fé. A perda da faculdade de conduzir uma vida espiritual não representa nenhuma evolução. Rejeitar o espírito humano é o oposto de qualquer coisa que se possa chamar honestamente de humanismo", escreveu.

Dias antes, diante a aprovação do aborto na Argentina, ele mandou um recado nas redes sociais de que o Brasil "permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de "saúde reprodutiva" ou "direitos sociais" ou como quer que seja".

Dentro do Itamaraty, a investida contra uma decisão soberana do Legislativo argentino foi recebida como um sinal claro que o governo continuará a fortalecer seu posicionamento internacional contra qualquer referência à ampliação de direitos para as mulheres.

Na sociedade civil, a movimentação é acompanhada de perto. "O Brasil seguirá se firmando como um país pária e, agora sem Trump, cada vez mais isolado", alerta Gustavo Huppes, Assessor de Advocacy Internacional da Conectas Direitos Humanos.

"O risco é que, junto com o isolamento global, venha mais radicalização. A política externa de Bolsonaro é marcada pela contradição seletiva, como na pauta dos refugiados", destaca.

"O chanceler anunciou a promoção dos direitos de cristãos perseguidos e que precisam de refúgio em outro país ao mesmo tempo que o governo federal fecha a fronteira em Roraima impedindo a entrada de venezuelanos. Sem falar na perseguição às religiões de matriz africana no Brasil que seguem sem resposta do Estado."


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