20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Apesar do recorde de desmatamento em 2020, cada vez menos fiscais atuam na Amazônia

Publicado em 07/01/2021 12:00 -

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Entre os fatores que impulsionam o desmatamento da Amazônia há os clássicos e os menos óbvios, como a taxa de câmbio. Um dólar alto (a 5 reais), como agora, incentiva o corte ilegal de árvores, seja pela febre do ouro ou para limpar espaços que sirvam depois para pastos e cultivos. A maior floresta tropical do mundo perdeu no último ano 11.088 quilômetros quadrados de área florestal, o recorde em 12 anos. Perseguir os crimes ambientais na Amazônia brasileira sempre foi um desafio descomunal, porque é mais extensa que a soma dos 27 países da União Europeia, mas com o presidente Jair Bolsonaro isso fica ainda mais difícil. Quando as nuvens permitem, os satélites exercem há anos um papel valioso no combate ao desmatamento, mas antes ou depois dele são necessários inspetores ambientais que atuem no terreno. Sempre foram poucos, e agora estão prestes a se tornar mais uma espécie em extinção.

Isso significa um punhado de homens com alguns barcos e helicópteros em um território hostil, com poucos aeroportos e estradas, e onde explorar ilegalmente as riquezas da terra é um dos raros negócios realmente lucrativos. Um veterano fiscal do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) fazia a este jornal, em plena pandemia, as seguintes contas sobre sua equipe: descontados os que por idade ou doença pré-existentes foram afastados pelo coronavírus, os aptos a participar das operações de fiscalização são pouco mais de 20 no Estado do Amazonas, o maior do Brasil. A eles se soma um punhado de investigadores de polícia e algumas dezenas de soldados do batalhão ambiental da PM. Isso para cobrir uma área equivalente a três vezes a Espanha.

Sobretudo na última década, os dados dos satélites “ajudam o Ibama a priorizar as áreas de atuação, porque a mão de obra é limitada”, diz o professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, cujo doutorado abordou justamente o papel da tecnologia neste âmbito. Mas o acadêmico acrescenta que esses funcionários “dependem muito do trabalho de campo, sobretudo nas áreas indígenas, em unidades de conservação, onde existe um desmatamento muito agressivo”. É preciso chegar até lá porque o satélite é capaz de detectar indícios de crime, mas não de neutralizá-lo. Isso implica se apresentar no local para confiscar e destruir os instrumentos usados para cometer o crime ambiental (escavadoras, caminhões, motosserras…).

Segundo Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais, são cada vez mais raras as operações que reúnem na Amazônia fiscais do Ibama vindos de todo o Brasil para perseguir suspeitos importantes em momentos críticos, como secas ou picos de desmatamento.

Quando no começo do século o Brasil tomou consciência da gravidade do desmatamento, agiu contra ele e conseguiu reduzi-lo até atingir um mínimo histórico em 2012. Mas desde então voltou a crescer, acompanhando a grave crise política que culminou na destituição de Dilma Rousseff. E depois veio a recessão.

O problema mais urgente já não é a cuidadosa logística necessária para combater o desmatamento, ou o seu custo. É a falta de vontade política. Ao chegar ao poder, dois anos atrás, Bolsonaro tentou criminalizar as ONGs ambientalistas, nomeou como ministro do Meio Ambiente um defensor do lobby pecuarista e sojicultor, Ricardo Salles, e, como se não bastasse, substituiu ambientalistas veteranos da direção do Ibama por comandantes da PM que pouco ou nada sabem de mudança climática ou biodiversidade.

O professor Rajão observa que uma das consequências disso é que a destruição de equipamentos dos criminosos, “um processo muito importante na luta contra o desmatamento, passou a ser um tabu dentro da instituição. E isso é nefasto porque priva os fiscais do Ibama de um instrumento muito importante”.

Um dos motivos para a falta de fiscais é que desde 2012 não há concurso para o cargo; outro é que a rígida burocracia brasileira impede contratações extraordinárias. O resultado é que, se o Ibama teve em seus melhores anos, por volta de 2009, até 1.600 pessoas zelando pelo cumprimento da ambiciosa legislação ambiental brasileira, agora não chegam a 700, segundo a informação obtida pela Fiquem Sabendo, uma agência especializada em transparência. Sua distribuição territorial é um mistério.

Um veterano da luta contra o desmatamento, que pede para ficar no anonimato por medo de represálias, argumenta que viver longe das zonas mais quentes dos crimes ecológicos reduz os riscos aos quais os fiscais estão expostos —muito maiores se estivessem nas regiões onde agem os madeireiros ilegais. Por isso, não acha ruim que residam em Estados distantes da Amazônia e viajem para lá quando há operações.

Mas não cabe mais ao Ibama dirigir a luta contra os crimes ambientais. Transformado em vilão ambiental do planeta com os incêndios na Amazônia no inverno de 2019, Bolsonaro recorreu às Forças Armadas. Agora são elas que decidem onde e quando os fiscais do Ibama agirão. Também fornecem soldados e aeronaves que, segundo os críticos, na verdade atrapalham operações que exigem o sigilo e a discrição que um batalhão ou um comboio de caminhões dificilmente oferecem.

Outro dos efeitos da chegada de Bolsonaro à presidência é que as multas por crimes ecológicos batem recordes negativos. Se antes o problema era recebê-las, agora não são nem emitidas. O Ibama proibiu todos os seus funcionários de falarem com a imprensa. Os indígenas se queixam de que é cada vez mais frequente que as autoridades façam ouvidos surdos às denúncias de invasão de suas terras e corte das suas árvores. É verdade que denunciar, na Amazônia, nunca foi tarefa simples. Para isso é preciso se dirigir a um lugar que tenha linha telefônica ou Internet, ou fazer uma viagem que pode durar dias.

Não foi surpresa a notícia, no começo de dezembro, de que o desmatamento bateu um novo recorde, segundo a medição oficial do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A União Europeia e o próximo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pressionam o Brasil para que atue com firmeza contra a destruição da Amazônia, num momento em que a mudança climática vai recuperando o protagonismo que a pandemia lhe roubou.

Obstáculo para o acordo comercial UE-Mercosul

O desmatamento agrava o aquecimento climático e, em termos político-econômicos, é o grande obstáculo para que se materialize o tratado comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Vários países, com a França à cabeça, não querem nem ouvir falar de ratificá-lo enquanto a destruição da Amazônia persistir neste ritmo.

Para o embaixador da UE em Brasília, Ignacio Ybañez, os 11.088 quilômetros quadrados destruídos no último ano são “cifras ruins”. Para salvar este acordo, negociado durante duas décadas e selado há um ano e meio, a UE exige do Governo do Brasil “um compromisso político que permita restabelecer a confiança, que garanta que as cifras não vão se repetir e que haverá uma mudança de tendência”. A União, que já decidiu não tocar nos termos do acordo, pretende obter garantias do Brasil para dissipar as dúvidas dos sócios reticentes, e que a Comissão Europeia possa apresentar o acordo ao Conselho e ao Parlamento Europeu para avançar no processo de ratificação.

Demanda global por carne impulsiona desmatamento no Brasil

O crescente consumo de carne no mundo e as ações do atual governo brasileiro são ingredientes de uma receita que está levando à destruição florestal no Brasil. Esta é uma das conclusões do relatório a Fleischatlas 2021 ("Atlas da carne 2021"), apresentado no ´[ultimo dia 6 em Berlim.

"A carne bovina é hoje um dos principais impulsionadores de desmatamento. Isso leva à destruição dos meios de subsistência de comunidades indígenas e de pequenos proprietários. Na Amazônia, o gado pasta em 63% de todas as áreas desmatadas. Entre 70% e 80% de todas as importações de carne bovina da UE vêm dos países do Mercosul. E 50% dos produtos agrícolas enviados à União Europeia (UE) vindos do Brasil são produto do desmatamento, especialmente soja, carne bovina e café", diz o texto.

"A produção industrial de carne não é apenas responsável pela precariedade das condições de trabalho, mas também afasta as pessoas de suas terras, provoca o desmatamento, o uso de pesticidas e a perda de biodiversidade – e é uma das principais causas da crise climática", afirma Barbara Unmüssig, presidente da Fundação Heinrich Böll,

Produzido pela Fundação Heinrich-Böll – ligada ao Partido Verde alemão –, pela organização ambientalista Bund e pela edição alemã do jornal francês Le Monde Diplomatique, o relatório apresenta soluções com o objetivo de reduzir o consumo de carne, aumentar a conscientização das pessoas para que desfrutem de produtos de maior qualidade e também fazer com que elas valorizem mais os animais e os produtos que originam.

Destruição florestal

A demanda global por carne está aumentando devido ao crescimento populacional e econômico – um grande problema para o clima e o meio ambiente. Em 1960, havia 3 bilhões de pessoas na Terra e, de acordo com o relatório, o consumo de carne era de cerca de 70 milhões de toneladas, o que é uma média global de 23 quilos por pessoa por ano.

Em 2018, já havia mais do que o dobro de pessoas na Terra: 7,6 bilhões. Com cerca de 350 milhões de toneladas, o consumo de carne era sete vezes maior, e a média global era de 46 quilos por pessoa por ano.

Um problema central é a imensa necessidade de terras para a produção de carne. De acordo com dados do governo alemão, 71% da terra arável global é usada atualmente para produção de ração animal, quatro vezes mais do que a parcela utilizada diretamente para a produção de alimentos (18%) e muito mais do que para outras matérias-primas, como algodão (7%) ou culturas energéticas, como milho para produção de biogás ou cana-de-açúcar para fabricação de etanol (4%).

A pressão sobre as terras aráveis ​​disponíveis globalmente está crescendo com o aumento da demanda global por carne, e assim enormes áreas de floresta estão sendo desmatadas, especialmente para o cultivo de soja para produção de ração animal, como é o caso do Brasil. "Hoje 90% da soja são destinados à alimentação animal", diz Unmüssig.

Soja como vilão

O relatório alerta que o aumento do consumo mundial de carne faz com que a procura por ração dispare no mercado, apontando a soja como o grande vilão.

"Os maiores produtores de soja são Brasil, com 133 milhões de toneladas anuais; os EUA, com 117 milhões; e a Argentina, com 53 milhões de toneladas", destaca o texto. O Brasil também é o maior exportador de soja, com 74 milhões de toneladas anuais, de acordo com o texto, seguido pelos EUA.

Os especialistas pedem uma mudança para uma dieta com menos carne e mais alimentos vegetais, o que requer muito menos terras aráveis, com intuito de alimentar bem a população mundial, parar de derrubar florestas tropicais para produção de ração animal e criação de gado e, ao mesmo tempo, ter áreas para reflorestamento novamente.

Amazônia e Cerrado sob ameaça

O relatório aponta que entre 2006 e 2017, 220 mil quilômetros quadrados de floresta foram destruídos na Amazônia e no Cerrado brasileiros, o que corresponde a mais de 60% do tamanho da Alemanha. Desse território, cerca de 10% foram utilizados para plantação de soja.

O texto afirma também que o Cerrado vem sendo desmatado de forma massiva devido à moratória da soja na Amazônia, que "proíbe o comércio da soja que venha área florestal desmatada após 2008, mas só na Amazônia". "E a produção da soja foi transferida para o Cerrado".

Provas de que houve retrocessos em relação à proteção ambiental seriam os incêndios florestais de 2019 e 2020, "que foram sobretudo resultado de queimadas – entre outras, para plantações de soja". O texto afirma que imagens de satélite mostram que muitas queimadas ocorreram na proximidade imediata de fábricas de carne e armazéns de soja. "Isso é apoiado pela política do presidente Jair Bolsonaro, que está continuamente relaxando as regras para proteção ambiental", ressalta o texto.

De acordo com um estudo da prestigiada revista Science publicado em 2020, 20% das exportações de soja para a UE da Amazônia e do Cerrado são originadas de terras desmatadas ilegalmente. Assim, o consumo de carne na Europa está diretamente relacionado ao desmatamento no Brasil.

Novo cardápio para o mundo

Cientistas de renome mundial como Johan Rockström, Diretor do Instituto Potsdam para Pesquisa do Impacto Climático (PIK) recomendam no Relatório de Vida Saudável em um Planeta Saudável uma mudança na dieta para uma média de 16 quilos de carne e 33 quilos de laticínios por pessoa por ano. A Índia e muitos países africanos mostram, com sua dieta tradicional, que isso é possível. Na América do Norte e do Sul e na Europa, por outro lado, atualmente são consumidas até sete vezes mais carne.

Os autores do relatório Fleischatlas 2021 não apenas mostram o poder e a força da indústria internacional de carne e seus efeitos globais, mas também expõem suas conexões com a indústria química global.

Por um lado, os grandes grupos produtores de carnes e alimentos (a gigante da carne brasileira JBS é um destaque citado) estão cada vez mais dominando o mercado de cultivo, transporte, abate e comercialização de rações, colocando assim em risco a existência de pecuaristas e matadouros de menor porte.

Também é demonstrado como, por outro lado, agrotóxicos altamente perigosos e às vezes proibidos para a alimentação animal são exportados pelas grandes empresas químicas e pulverizados em muitas regiões. Entre os produtores e exportadores de tais produtos químicos estão Bayer Crop Science, Basf e Syngenta da Europa, assim como Corteva e FMS, dos EUA.

Milhares de mortes por agrotóxico

A utilização de agrotóxicos gera milhares de mortos, segundo Unmüssig. "O governo alemão deve fazer tudo para que os conglomerados alemães não mais exportem esses venenos proibidos na UE", ressalta Olaf Bandt, presidente da organização ambientalista Bund, alertando que esse tipo de comércio deve aumentar com o acordo entre Mercosul e UE.

O Brasil está entre os maiores consumidores mundiais de pesticidas, com quase 230 mil toneladas anuais, atrás apenas dos EUA, com mais de 250 mil toneladas. Junto com Argentina (161 mil toneladas), os três países são responsáveis por 70% do consumo mundial de herbicidas. Hoje, são utilizadas nove vezes mais pesticidas no Brasil do que há 30 anos. Só o plantio de soja é responsável, de acordo com o relatório, por cerca de 52% da venda total de pesticidas no país.

Antibióticos

Além disso, a adição permanente de antibióticos na criação de animais para abate leva a germes cada vez mais resistentes. Isso ameaça a eficácia dos antibióticos na medicina humana e, portanto, põe em perigo vidas humanas – incluindo as de vegetarianos e veganos, aponta o relatório.

O desmatamento de florestas para produção de ração animal também é uma ameaça à saúde humana. Animais selvagens estão perdendo seus habitats, o contato deles com humanos está cada vez mais próximo, o que favorece a transmissão de vírus e o surgimento de novas pandemias.


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