29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Funai gasta só metade dos recursos de enfrentamento ao coronavírus

Publicado em 17/12/2020 12:00 -

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Até o início de dezembro, a Funai gastou apenas 52% dos recursos destinados ao enfrentamento do novo coronavírus entre povos indígenas. Somados os recursos próprios e os extra orçamentários, a Fundação Nacional do Índio teria pouco mais de 41 milhões à disposição. Mas, nas contas do Instituto de Estudos Socioeconômicos, só 21,3 milhões foram efetivamente pagos.

“O baixo índice de execução orçamentária é emblemático da fragilização da política indigenista que, esvaziada de pessoal, corpo técnico e prioridade política, ausenta-se de cumprir seus deveres constitucionais”, aponta a assessora política do instituto, Leila Saraiva.

Dados do monitoramento autônomo realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil em parceria com o Instituto Socioambiental do dia 8 de dezembro afirmam que há 41.698 casos confirmados em 161 povos afetados, resultando em 892 indígenas mortos em decorrência da doença.

Mortalidade por covid-19 entre indígenas é 16% maior

A pandemia da covid-19 provocou até o momento a morte de 892 indígenas e a contaminação de 41.250 membros de 161 dos 305 povos originários que vivem no Brasil. A taxa de mortalidade entre a população indígena é de 991 por milhão, 16% superior à mortalidade geral no Brasil pela doença, hoje em 852 por milhão. 

O número de mortes de indígenas é contabilizado pelo Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena, criado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). A entidade lançou um relatório sobre como a covid-19 vem afetando os povos originários.

"A pandemia teve um impacto devastador nos povos indígenas. Não são apenas vidas, são memórias, lideranças com um histórico de luta pelos direitos de seus povos e de sua existência", afirma Dinamam Tuxá, membro do povo Tuxá e da coordenação executiva da Apib.

Além do vírus, ele afirma que os povos indígenas tiveram que enfrentar neste ano ações do governo federal prejudiciais às tribos, omissão de órgãos públicos na elaboração e execução de planos para conter a pandemia nas comunidades e uma alta de 9,5% do número de invasões às suas terras, se comparado a igual período do ano passado.

A rota de contaminação

O primeiro caso de covid-19 entre os povos indígenas, confirmado em 8 de abril, foi o de uma mulher de 20 anos do povo Kokama, na região do Alto Rio Solimões, no Amazonas, que trabalhava como agente indígena de saúde.

A infecção ocorreu após um médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde responsável pelo atendimento nas terras indígenas, passar as férias em São Paulo e voltar àquela região em 25 de março para atender os indígenas, segundo o relatório da Apib.

O profissional estava com covid-19 e deu início a uma cadeia de contaminação na população local. A doença havia sido caracterizada como pandemia pela OMS em 11 de março, e em 20 de março o governo já havia confirmado a transmissão comunitária no país. Hoje, os Kokama são o segundo povo mais atingido pela covid-19, com 58 mortes e milhares de contaminados.

Também foram integrantes da Sesai que levaram o vírus a tribos que praticavam isolamento voluntário e de recente contato no Vale do Javari, no Amazonas, e no Alto Rio Puru, no Acre, segundo a Apib. Na região do Parque Tumucumaqui, na divisa entre o Amapá e o Pará, o vírus chegou aos indígenas locais por meio de equipes do Exército, afirma a entidade.

O governo como vetor

Agentes do Estado acabaram servindo como um dos principais caminhos do vírus para os povos indígenas devido à falta de uma política estruturada de prevenção, que exigisse testes PCR e quarentena das pessoas que estivessem a caminho de terras indígenas, afirma a médica Mariana Maleronka, professora da Faculdade de Ciências da Saúde Albert Einstein e consultora do Conselho Nacional dos Direitos Humanos para saúde indígena.

Ela diz que o plano da Sesai para fazer a contenção da pandemia foi divulgado com atraso e era falho. "Não tinha indicador nem meta, e nenhum tipo de organização que pudesse dar conta do desafio de enfrentar a pandemia de uma população supervulnerável que está em área remota", afirma. Um dos erros do órgão foi usar testes rápidos de sorologia, que indicam se a pessoa já teve a doença, em vez do teste PCR, que mostra quando a pessoa está infectada.

A Apib também se opôs ao envio de missões governamentais a territórios indígenas com o objetivo de fazer relações públicas. Em 30 de junho, uma comitiva com o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e o coordenador da Sesai, Robson Santos Silva, deslocou-se até a Terra Indígena Yanomami, o que "desrespeitou a decisão dos indígenas pelo autoisolamento" e atraiu cerca de 20 jornalistas. A missão entregou 33 mil comprimidos de cloroquina à unidade de saúde dos Yanomami, medicamento sem eficácia comprovada contra a covid-19.

Em alguns povos indígenas, a contaminação se deu por meio de membros dessas comunidades que trabalham em frigoríficos próximos e contraíram a doença de colegas de trabalho. Foi o caso da Terra Indígena Oco'y, no Paraná, da Terra Indígena Xapecó, em Santa Catarina, e na Reserva Indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul.

Recurso ao Supremo não resolveu

Diante da falta de um plano do governo para proteger os povos originários da contaminação, a Apib, em conjunto com seis partidos políticos (PSB, Psol, PCdoB, Rede, PT e PDT), moveu em 1º de julho uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para exigir que o governo adotasse medidas de contenção da pandemia nesses povos.

O ministro relator da ação, Luís Roberto Barroso, determinou, uma semana depois, que o governo estabelecesse barreiras sanitárias para isolar os indígenas, a criação de uma sala de situação para avaliar a evolução da pandemia nesses povos e a retirada de invasores das terras indígenas, entre outros pontos. A decisão foi depois confirmada pelo plenário da Corte.

O governo, porém, não apresentou um plano eficaz para implementar a ordem judicial. Em 29 de julho, a gestão federal entregou um plano que, segundo especialistas convidados pelo STF, tinha erros conceituais que poderiam acelerar a pandemia, em vez de contê-la, e o texto acabou rejeitado.

Em 31 de agosto, Barroso homologou parcialmente um plano do governo para erguer barreiras sanitárias. A segunda versão geral do plano, porém, foi rechaçada pelo ministro em 22 de outubro, por ser "genérico e vago", e ele determinou a realização de um novo texto até o dia 23 de novembro.

Em 1º de dezembro, Barroso proferiu uma nova decisão, novamente determinando que o governo implemente barreiras sanitárias para o enfrentamento da covid-19 em territórios indígenas onde elas ainda não haviam sido erguidas.

Tuxá, da Apib, afirma que o governo não vem cumprindo as determinações do Supremo e que algumas barreiras sanitárias que haviam sido implementadas já foram desfeitas.

"Ficamos à mercê de uma política de Estado, e essa política nunca chegou. O que houve foram algumas mobilizações dos próprios povos para amenizar o problema", afirma. Ele diz que a inércia "agravou" a pandemia nas terras indígenas e que o governo inclusive "fomentou a contaminação", ao não se opor com veemência à invasão de terras indígenas, que também acabam expondo os povos ao vírus.

Segundo Tuxá, o ritmo de contaminação entre os indígenas não teve redução significativa ao longo do ano, como ocorreu no país como um todo até o início de novembro, e os povos enfrentam neste momento alta no número de casos devido ao afrouxamento de controles.

Divergência sobre os dados

Os números de indígenas mortos e contaminados pela covid-19 são reunidos pela Apib com o apoio de povos indígenas, organizações regionais em todo o país, secretarias municipais e estaduais de Saúde.

A Apib decidiu fazer sua contabilidade própria pois os números oficiais da Sesai consideram apenas os indígenas que moram em terras indígenas homologadas, deixando de fora os que vivem em territórios tradicionais não homologados ou em áreas urbanas. A Apib também afirma que os dados da Sesai não são disponibilizados na íntegra, o que dificulta o seu uso.


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