24/04/2024 - Edição 540

Poder

Em parecer, Moro favorece investigado por corrupção em disputa contra Vale

Publicado em 11/12/2020 12:00 -

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O ex-ministro Sergio Moro fez sua estreia no setor privado com um parecer contratado pelo magnata israelense Benjamin Steinmetz. O empresário, que já foi investigado por corrupção, quer provar que a mineradora Vale sabia dos riscos do contrato de exploração da mina em Simandou, na Guiné, quando fechou o negócio com sua empresa em 2010. O parecer diz, em tese, que a gigante brasileira teria ocultado do mercado os riscos envolvidos no negócio bilionário, no chamado “Carajás africano”. Steinmetz reuniu um rol de supostas provas na tentativa de provar que a mineradora teria mentido ao tribunal arbitral em Londres, onde conseguiu uma sentença favorável de US$ 2 bilhões contra o israelense.

O negócio em questão teve origem há uma década, em um momento de grande expansão internacional da mineradora na gestão de Roger Agnelli, morto em um acidente aéreo em 2016. Na época, a Vale comprou de Steinmetz 51% da BSG Resources (BSGR), detentora de concessões e licenças de exploração de minério de ferro de uma das maiores minas inexplorada no mundo, uma transação de US$ 2,5 bilhões. O negócio envolveu um pagamento antecipado de US$ 500 milhões ao israelense.

No ano seguinte ao acordo, em 2011, o recém-eleito presidente Alpha Condé, após a primeira eleição considerada democrática na Guiné desde a independência do país, iniciou uma política de revisão de todas as concessões minerárias realizadas em governos anteriores. A concessão em Simandou foi investigada e anos depois, após idas e vindas, o projeto foi deixado de lado pela Vale. A investigação, iniciada pelo governo da Guiné, apontou indícios de suborno na concessão das minas a Steinmetz, em 2008, quando o país era governado por Lansana Conté, um militar que subiu ao poder após um golpe de estado e conduziu a nação por 24 anos. Com o negócio indo para o buraco, a Vale foi buscar reparação e a sentença favorável foi obtida no ano passado, depois da corte arbitral acolher os argumentos da mineradora de que ela teria sido enganada por Steinmetz, ao acreditar que a concessão da mina fora obtida de forma lícita.

O empresário israelense já foi alvo de investigação por corrupção e lavagem de dinheiro em Israel, Suíça, Estados Unidos e na própria Guiné. O magnata chegou a ser preso provisoriamente e nega até hoje as acusações. No caso de Simandou, Steinmetz também nega que tenha havido corrupção, ao mesmo tempo em que afirma que a mineradora tinha conhecimento de eventuais riscos envolvidos na concessão.

Além do parecer de Moro, Beny, como é conhecido o empresário, contratou no Brasil um segundo parecer, curiosamente de um desafeto de Moro, o jurista Pedro Serrano, que advogou para a Odebrecht, um dos principais alvos da operação Lava Jato, por mais de duas décadas. O jurista tem, inclusive, artigo publicado em um livro que buscou evidenciar as “arbitrariedades das sentenças de Sergio Moro”, lançado neste ano sob o título “O Livro das Suspeições: o que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?”. Mais recentemente, criticou a ida de Moro à consultoria Alvarez & Marsal, que é a administradora judicial da Odebrecht, e definiu o movimento, em entrevista à imprensa, como algo “grave no plano ético”.

Os dois pareceres, de dois desafetos públicos, são acusatórios, ou seja, não defendem Steinmetz e têm foco nas atitudes da Vale. O parecer de Moro foi produzido antes de sua ida à consultoria, que atua em questões relacionadas à insolvência e reestruturação da BSG no Reino Unido. A Alvarez & Marsal, em nota, disse que o ex-ministro “não foi contratado para a divisão mencionada (no Reino Unido) e não está envolvido em nenhuma parte desta área”.

A estratégia de colocar pela primeira vez duas personalidades que sempre estiveram em posição de conflito no mesmo lado do balcão, para realizar os pareceres contra a Vale, mostra que Steinmetz não vai medir esforços e recursos para colocar sua ex-sócia na Guiné contra a parede. O bilionário quer provar que a Vale sabia dos riscos envolvidos quando fechou negócio com sua empresa, a BSG. Alega, ainda, que a mineradora mentiu ao comunicar o mercado e seus acionistas sobre Simandou, assim como teria mentido à Corte em Londres, quando afirmou ser vítima nessa transação.

Os dois pareceres foram feitos a partir de informações públicas sobre o negócio, documentos disponíveis, o testemunho de Steinmetz e ainda de novos relatos, coletados pela firma israelense de investigação Black Cube, que, por meio de ferramentas nada ortodoxas, conseguiu gravações de ex-executivos da Vale relatando que a mineradora tinha suspeitas, mas as ignorou para poder seguir com o negócio. A Black Cube, para conseguir os relatos, criou organizações fictícias e atraiu os ex-executivos da mineradora ao oferecer a eles oportunidades profissionais.

Segundo um dos advogados próximos à mineradora, que falou na condição de anonimato, Beny está fazendo barulho depois de ter perdido em duas cortes no exterior e que, internamente, o caso é visto com tranquilidade e não existe a possibilidade de reabertura do processo. Segundo essa fonte, o israelense "quis pegar a credibilidade de Moro para dar robustez à sua história e depois buscou o Serrano, para fazer um contraponto".

Em seu parecer de 54 páginas com a data de 4 de novembro, Moro afirma que “caso a investigação confirme os fatos apresentados pelo Consulente e não sejam apresentadas escusas idôneas pelos investigados, os executivos da Vale S/A teriam, em tese, prestado afirmações falsas e ocultado fraudulentamente do mercado e de seus acionistas as reais condições do negócio celebrado com a BSGR acerca dos direitos de exploração sobre Simandou e sobre os motivos da rescisão posterior”.

O parecer, assinado por Moro, tem o papel timbrado do escritório Wolff Moro, de sua esposa Rosangela Wolff Moro. Tanto o parecer de Moro, quanto o de Serrano, têm ressalvas, visto que foram elaboradas por informações passadas pelo contratante e que precisam ser comprovadas.

O parecer de Moro destaca que é preciso que a investigação “confirme os fatos apresentados pelo Consulente e não sejam apresentadas escusas idôneas pelos investigados”. Mas frisa que “considerando a magnitude do negócio envolvendo a mina de Simandou, de cerca de 2,5 bilhão de dólares, e também qualificada como o maior depósito inexplorado de minério de ferro do mundo, e que as afirmações falsas e ocultações fraudulentas expuseram e expõe a Vale S/A a riscos de processos internos e estrangeiros, inclusive a anulação da arbitragem, as fraudes verificadas são aptas a caracterizar, em tese, o tipo penal do art. 177, §1.o, I, do Código Penal”. A data do parecer é anterior à contratação de Moro pela Alvarez & Marsal, administradora judicial da Odebrecht.

A Alvarez & Marsal frisa que não tem qualquer relação com o parecer produzido por Moro em benefício de Steinmetz ou outro beneficiário e que o documento foi elaborado e entregue antes de sua admissão na consultoria. “Também é importante deixar claro que a Alvarez & Marsal atua em questões relacionadas à insolvência e reestruturação da BSGR no Reino Unido. Sergio Moro não foi contratado para a divisão mencionada e não está envolvido em nenhuma parte desta área no Reino Unido”, informa.

Procurados, Steinmetz, Moro e Serrano não comentaram. A Vale disse que "ambos os pareceres se baseiam em alegações e declarações trazidas pela Black Cube. Todas as declarações já foram objeto de desmentido público pelo próprio declarante, que foi vítima de uma armação clandestina. Portanto, são opiniões que se assentam sobre fatos e premissas improcedentes."

Enquanto a briga promete ter outros capítulos, um consórcio liderado pela Guiné e financiado pela China, conseguiu a concessão de Simandou no final do ano passado, depois que Steinmetz encerrou uma disputa de sete anos com o governo do país.

Mentiras e vantagens

Mesmo com tantas possibilidades de conseguir um bom trabalho na iniciativa privada, Sergio Moro decidiu virar sócio-diretor da Alvarez & Marsal, uma consultoria americana que presta serviços no Brasil para as empreiteiras Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão e Sete Brasil. Todas essas empresas foram arrasadas financeiramente por decisões do ex-juiz da Lava Jato. Agora, como se fosse a coisa mais normal do mundo, Sergio Moro pula para o outro lado do balcão para atuar como um empresário que ajudará empresas que ele ajudou a quebrar com sua atuação nos tribunais.

Enquanto juiz, Moro não se preocupou em poupar a engenharia nacional e os empregos do setor. Mas aliviou a barra dos empresários com generosas delações premiadas. A Odebrecht foi atropelada pelas decisões do ex-juiz, que agora é sócio-diretor da empresa que comanda a recuperação judicial da construtora. A nova empresa de Moro já faturou R$ 17,6 milhões com esse serviço prestado para a Odebrecht. O mesmo acontece com a OAS, que pagará R$ 15 milhões no total para a empresa americana. Outras empresas como Queiroz Galvão e Sete Brasil, também devassadas pela Lava Jato, contrataram a consultoria para se reestruturarem financeiramente. Ou seja, o agora empresário Sergio Moro vai faturar alto com a desgraça financeira de construtoras que foram atingidas pela caneta do ex-juiz Sergio Moro.

Como observou Reinaldo Azevedo, um dos raros jornalistas da grande imprensa sem rabo preso com o lavajatismo, em 2017 a defesa de Lula apresentou ao então juiz dois documentos que atestavam que o triplex não pertencia a Lula, mas à OAS. Essas certificações foram produzidas pela Alvarez & Marsal. Moro ignorou essas informações produzidas pela empresa da qual hoje, três anos depois, ele virou sócio.

O fato é que as sentenças do então juiz impuseram graves impactos políticos e econômicos ao país, mas não para ele em particular. Pelo contrário, Moro agora vai faturar com esses impactos. Politicamente já faturou ao se tornar ministro da Justiça e, agora, faturará economicamente.

O repórter Rafael Neves, do Intercept, foi atrás da Alvarez & Marsal para perguntar sobre a remuneração do ex-juiz da Lava Jato. Nos disseram que “Moro não terá nenhum benefício financeiro, direto ou indireto, sobre projetos de outros setores da consultoria”. Mas nós só vamos acreditar nisso se olharmos o contrato de Moro com a empresa. Pedimos uma cópia. A resposta: “Por se tratar de documento particular, firmado entre empresa privada e pessoa física em esfera privada, a divulgação de palavra por palavra escrita nas cláusulas do contrato fere o direito à privacidade das informações de ambas as partes”. Conveniente, não?

Neves fez o mesmo pedido a Moro, que já disse acreditar no valor da transparência. O ex-ministro fez que não era com ele. E aí? Então quer dizer que o novo sócio-diretor da Alvarez & Marsal não vai atuar nos casos mais lucrativos da empresa? Não vai colocar à disposição todo seu conhecimento adquirido no serviço público em casos de interesse da empresa? Qual é a garantia disso? A palavra de Moro? Aquela que jurou jamais entrar na política pouco tempo antes de virar ministro da Justiça do governo Bolsonaro?

Parece óbvio que, no período em que atuou como juiz da Lava Jato, Moro teve acesso a documentos e provas envolvendo os réus que agora são seus clientes.

O Intercept já mostrou que ele mentiu sobre não ter estratégia de investigação na Lava Jato – esta reportagem deixou claro que ele coordenava e orientava o trabalho do Ministério Público, e esta outra, o da Polícia Federal.

Moro também mentiu quando disse, várias vezes, que não entraria para a política. Não só entrou como já fazia política quando ainda era juiz, inclusive se encontrando em segredo com um pré-candidato à presidência em 2018. Assim, a palavra dele – e de seu empregador – sobre sua remuneração não valem nada.

E a recusa em entregar o contrato ou mostrar a cláusula em que está expresso que ele não será remunerado pelos contratos da Alvarez & Marsal com Odebrecht, OAS, Sete Brasil e Queiroz Galvão só levanta a suspeita de que ele e a empregadora estão mentindo.

Muitos desses documentos ainda estão sob sigilo e podem resultar em novas investigações. O novo sócio-diretor da empresa, trazido a peso de ouro, não usará essas informações privilegiadas em benefício dos seus clientes? Estamos diante de, no mínimo, um flagrante caso de falta de ética. A imoralidade está dada, resta saber agora se há ilegalidades.

O Tribunal de Ética da OAB-SP parece não ter acreditado na conversa de Moro e o notificou para que não exerça advocacia na sua atual empresa de consultoria. O deputado petista Paulo Teixeira pediu à Procuradoria-Geral da República que investigue a possibilidade de crime de corrupção passiva na contratação do ex-juiz.

A nova empresa de Moro não tem as melhores credenciais éticas do mercado. Segundo Diogo Schelp, outro raro jornalista da mídia corporativa a dar o peso devido ao caso, os consultores da Alvarez & Marsal são conhecidos no mercado pelas técnicas de vale-tudo com que buscam atingir seus objetivos. Atuar no limite da legalidade, mas não da moralidade, é uma cultura da empresa. Para o jornalista, a empresa “age dentro das regras legais, mas com muito dedo no olho, puxão de cabelo e golpes pelas costas”. Esse é o perfil dos novos colegas de trabalho do homem alçado à condição de paladino da moralidade da nação.

Um exemplo de imoralidade da Alvarez & Marsal foi a estratégia elaborada por ela para a recuperação judicial da Editora Abril. Um mês após ter contratado a consultoria para fazer uma reestruturação operacional, a editora promoveu uma demissão em massa. Mais de 800 funcionários foram para rua. Dez dias depois, a Editora Abril entrou com pedido de recuperação judicial. Isso foi feito estrategicamente antes do término do prazo para pagar as indenizações trabalhistas.

A estratégia da consultoria americana foi um sucesso: demitiu em massa e depois deu calote em massa nos demitidos — tudo dentro da lei. Segundo Schelp, que também foi uma das vítimas do calote, “executivos e diretores de redação eram recebidos com escárnio e arrogância pelos representantes da consultoria, que comemoravam abrindo garrafas de espumante quando alguém pedia demissão ou quando uma das etapas do seu plano para espremer os centavos dos funcionários demitidos era cumprida conforme o previsto”. Se levarmos em contas as credenciais éticas do então juiz Moro, que “sempre violou o sistema acusatório”, podemos dizer com tranquilidade que ele se sentirá confortável nesse novo trampo.

Era para ser um escândalo de grandes proporções, afinal de contas, o herói do combate à corrupção do país abandonou a toga para faturar alto em uma consultoria cujos principais clientes foram seus réus. Mas, para o espanto de ninguém, o lavajatismo que assola a grande imprensa fez o assunto passar apenas de forma lateral no noticiário, quase sempre de maneira acrítica. Se por enquanto não há nada que indique uma ilegalidade, a imoralidade é flagrante e inegável. Isso deveria ser o suficiente para indignar os sempre indignados colunistões da Globo, mas não.

Houve os que silenciaram e os que trataram o caso como se fosse algo corriqueiro. A irrelevância dada ao episódio é tanta que nem parece que estamos falando de alguém que colocou um ex-presidente na cadeia ignorando a Constituição, foi ministro da Justiça e é um potencial candidato à presidência da República.

Há quem acredite que a entrada de Moro na iniciativa privada enterrou de vez a possibilidade dele vir ser candidato em 2022. Eu não a descartaria tão cedo. Pelo histórico do juiz, a possibilidade dele enriquecer por um ano na iniciativa privada e de repente surgir como candidato são enormes. Moro troca de lado no balcão como quem troca de cuecas. E, mais uma vez, ele contará com a benevolência do grosso da grande mídia para escamotear seus absurdos.


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