28/03/2024 - Edição 540

Brasil

A guerra é contra as drogas, mas quem morre são meninas negras como Emilly e Rebeca

Publicado em 10/12/2020 12:00 -

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A ONU retirou a maconha da lista de drogas consideradas “mais perigosas”. Pelos últimos 60 anos, a maconha esteve ao lado de opioides fortes e extremamente viciantes, como a heroína. Mesmo mantendo a cannabis e a resina derivada dela no grupo das substâncias para as quais há recomendação de algum controle, o Brasil votou contra a medida.

Quirino Cordeiro Júnior, secretário de Cuidados e Prevenção às Drogas, já havia adiantado que o Brasil votaria contra a decisão da flexibilização do uso da substância, com a justificativa de que era “uma estratégia comunista de poder”. Isso não é só ridículo como flagrantemente mentiroso.

Quando você analisa a lista dos votos, percebe que o Brasil está exatamente ao lado dos “inimigos comunistas” China e Cuba nesta decisão equivocada. Estão também no mesmo grupo nações com governos autoritários, como Hungria e Turquia. Do outro lado, estão o ex-amigo EUA, Canadá e a maioria dos países europeus. A decisão da ONU não interfere no poder dos países em estabelecerem suas próprias regras e leis.

Ao observar o perfil de muitos dos países que votaram contra a remoção da maconha da lista de substâncias perigosas – especialmente na América Latina e continente africano – vemos nações que foram colonizadas e sofrem com o racismo.

Racismo é um ponto central desta discussão, pois o proibicionismo do uso de drogas nasceu como uma estratégia do presidente norte-americano Richard Nixon para controlar pessoas e populações “indesejáveis”, como a esquerda anti-guerra e pessoas negras, no fim da década de 60.

Essa intenção foi confirmada em 1994 pelo então chefe de política doméstica de Nixon, John Ehrlichman, que escancarou o mecanismo de criminalização atrelado à política de drogas. “Podíamos criminalizar quem era anti-guerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois”, disse Ehrlichman. E finalizou que assim “poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos”.

Similar a alguma abordagem que conhecemos?

É impossível falar de política de drogas sem mencionar o controle de pessoas e a construção de inimigos. Essa política faz parte de um sistema racista complexo que, no Brasil, tem vitimado civis e agentes de segurança negros, encarcerado e confinado pessoas negras em bairros pobres. É um sistema bem-sucedido para o que pretende.

Na prática isso funciona assim: duas crianças negras, Emilly e Rebeca, brincando na porta de casa são mortas durante ação policial num bairro pobre da Baixada Fluminense. PMs tentavam abordar dois caras numa moto. A Polícia disse que não disparou. As armas dos PMs foram apreendidas. Desculpas genéricas do tipo “nós daremos uma resposta à sociedade” não mudam o fato que este ano 22 crianças foram baleadas no Grande Rio – oito delas morreram. Os dados do Fogo Cruzado revelam a barbárie em forma de política pública.

Mas essas mudanças de agora não são um ato de bondade. Afinal, esta decisão não foi tomada quando o secretário de Nixon assumiu o objetivo da política. É uma decisão econômica aliada a novas pesquisas que mostram os efeitos medicinais da maconha em doenças para as quais a indústria farmacêutica ainda não apresentou soluções. Em 2007, a maconha já era considerada o “maior produto agrícola” dos EUA. Pouco mais de uma década, a maconha é uma indústria bilionária. Só neste ano, quatro estados legalizaram o uso da planta por lá.

Agora, nos mesmos EUA, berço da repressão contra o tráfico e uso de drogas, veteranos de guerra usam maconha para tratar doenças relacionadas a traumas de guerra. A planta também tem sido usada no tratamento de enfermidades cujas soluções tradicionais não apresentavam sucesso como dores crônicas, esclerose múltipla, epilepsia etc. No Brasil, mães religiosas, como Rosineide da Silva, venceram o preconceito e hoje lutam para ter acesso legal ao THC, óleo extraído da planta proibida, para tratar seus filhos.

Mas para manter pessoas como Rosineide no cabresto da mentira, governos mentem. Muito. Deliberadamente. Não importa a que custo. Em abril de 2019, o Intercept revelou que Secretaria Nacional de Política de Drogas, a Senad, órgão do Ministério da Justiça, escondeu uma pesquisa feita pela Fiocruz que mostrava que não há uma “epidemia de drogas” no Brasil. A pesquisa revelava o oposto do que governos sustentaram por anos.

Até governos progressistas, como os do PT, reforçaram tais visões. Em 2006, quando foi aprovada a nova Lei de Drogas, o Brasil era o quarto país que mais prendia gente no mundo. Hoje, o número de presos dobrou, e pulamos para o terceiro lugar. Um em cada três responde por tráfico de drogas – a maioria, negros. O estado policial foi incrementado com a criação da Força Nacional e o uso do exército em favelas.

Desde o início da “guerra às drogas” até agora, esta política continua resumida à frase dita pelo ex-secretário de Nixon décadas atrás: “Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim.”

Mortes de negros pela polícia ultrapassam 60% em 5 Estados do País

Um estudo divulgado no último dia 9 pela Rede de Observatórios da Segurança comprova que a letalidade policial é muito maior entre os negros. Dados levantados em cinco Estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará e Pernambuco – apontam que a população negra é a que mais morre pela polícia, seja em números absolutos ou proporcionalmente. Chamou a atenção dos pesquisadores a diferença gritante em alguns casos, o que para eles deixa claro que há racismo institucionalizado.

O número que mais impressionou foi o da Bahia, onde 97% dos 650 mortos pela polícia no ano passado eram negros. Em Pernambuco, esse dado também foi alarmante, chegando a 93%. "Hoje não dá mais para dizer que tem viés racial. A gente tem que dizer o nome exato que isso tem. Tem que dizer que existe racismo por parte do Estado", afirma Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania.

A pesquisadora ressalta que os números dizem respeito apenas a mortes ocorridas em intervenções da polícia. "Esse tipo de problema de violência é muito específico. Não estamos falando de crimes contra patrimônio, de homicídios ocorridos em brigas de facções. Estamos falando de um agente da lei que produziu uma morte, sem considerar se depois foi julgado como legítima defesa ou não", pontua Silvia. "Estamos olhando a cor dessas mortes, patrocinadas pelo Estado, seja contra um criminoso ou uma vítima inocente."

No Rio de Janeiro, apesar de 51% da população ser negra, os mortos por policiais nesse grupo de pessoas chegou a 86% em 2019 – em números gerais, o total de mortes em intervenções da polícia foi o maior em três décadas. Em São Paulo, por sua vez, 64% dos mortos pela polícia no ano passado eram negros.

Outro dado que alarmou os pesquisadores foi encontrado no Ceará: segundo a pesquisa, em 77% dos casos as vítimas não tiveram sequer sua cor notificada. Entre as que tiveram, 87% eram negras.

"Quando um agente público não preenche um dado, como sexo da vítima, idade ou grau de escolaridade, por exemplo, você até entende que isso pode demandar algum tipo de trabalho, de levantamento. Mas não informar a cor da vítima? É uma combinação de indiferença, de desleixo e, muito mais grave, de racismo por parte de agentes do Estado", afirma Silvia.

Todos os dados que embasaram a pesquisa foram obtidos através da Lei de Acesso à Informação, e comparados com o censo do IBGE. Sobre isso, a Rede de Observatórios da Segurança lamenta a dificuldade em conseguir os números oficiais.

"É quase que uma batalha que temos que travar com cada secretaria de Segurança. Apesar de a gente ter Lei da Transparência, as Leis de Acesso à Informação, está mais dificil agora do que há dois ou três anos. É muito mais fácil conseguir dados de outros crimes do que os da violência policial. Parece que há uma orientação para não divulgarem", comenta Silvia Ramos.

O governo do Rio disse à reportagem que a política de segurança é baseada em inteligência e tecnologia das polícias. "A atuação das polícias tem sempre, como princípio, a preservação das vidas. Os números do Instituto de Segurança Pública (ISP) comprovam isso: de janeiro a outubro de 2020 houve uma queda de 30,8% nas mortes por intervenção de agentes do estado em relação ao mesmo período de 2019", informou o governo, que acrescentou que todas as mortes praticadas ou não por agentes do Estadão são apuradas com rigor. 

A Secretaria da Segurança de São Paulo disse não conhecer a metodologia da pesquisa e esclareceu que o compromisso das forças de segurança do Estado é "com a vida, razão pela qual medidas para a redução de mortes são permanentemente estudadas e implementadas pela pasta". "A quantidade de pessoas mortas em confronto com policiais militares em serviço vem caindo de maneira consistente no Estado de São Paulo", acrescentou a pasta, que detalhou que outubro foi o quinto mês de queda consecutiva do indicador. As mortes cometidas por policiais são "rigorosamente investigadas", apontou a secretaria. 

"A Secretaria da Segurança Pública da Bahia ressalta que as ações policiais são realizadas após levantamentos de inteligência e observação da mancha criminal. A SSP destaca ainda que todos casos que resultam em mortes são apurados pela Corregedoria e, existindo indício de ausência de confronto, os policiais são afastados, investigados e punidos, caso se comprove a atuação delituosa."

A Secretaria de Segurança de Pernambuco informou que as ocorrências são investigadas com rigor, de modo que haja responsabilização em caso de crime ou infração disciplinar. "É importante esclarecer que as mortes por intervenção policial englobam confrontos com criminosos em operações policiais de repressão ao narcotráfico, legitima defesa e também situações em que houve imprudência, imperícia ou até dolo por parte do servidor público", diz em nota. A pasta ainda afirma que Pernambuco foi o quarto estado do Brasil que mais reduziu as mortes decorrentes de intervenção policial no ano de 2019, em comparação com 2018.

Já a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Ceará informou que o levantamento de dados estatísticos são gerados a partir da tipificação criminal, registrada no Sistema de Informação Policial (SIP3W), utilizado para registro de ocorrências nas delegacias. "A pasta informa ainda que os agentes de segurança pública participam de cursos de formação inicial e continuada, realizados na Academia Estadual de Segurança Pública (Aesp), baseados na matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (SENASP/MJ), que prevê uma formação humanizada e de intervenções técnicas, propiciando a formação de profissionais de segurança pública, preocupados com as questões sociais e a resolução de conflitos", afirmou em nota.


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