23/04/2024 - Edição 540

Brasil

O que vem por aí?

Publicado em 07/12/2020 12:00 -

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A máscara esconde o sorriso, mas a simpatia está toda lá. E é com ela que Anely Rodrigues dos Santos, de 48 anos e moradora do Guará I, cidade-satélite de Brasília (DF), apresenta para a câmera do celular o cardápio do dia.

"Minha dobradinha está pronta aqui, feita no fogão à lenha. Meu arroz também está prontinho. E a salada: brócolis, tomate e batata com tomatinho cereja", diz Santos no vídeo, postado em um grupo de moradores do Guará no Facebook.

A alegria no registro esconde a história de dificuldades que levou a ex-doméstica a passar a cozinhar marmitas para fora, como forma de conseguir alguma renda, após perder o emprego na pandemia.

"Antes, eu trabalhava numa casa de família, como mensalista. Mas, sem escola e creche, e sem nenhum lugar que eu pudesse pagar, meu filho não tinha onde ficar, então tive que sair", conta Santos.

"Você está acostumada a receber todo mês seu salário, aí fica sem dinheiro, você fica apavorada. Aí comecei a fazer as marmitas de fim de semana", diz a cozinheira, que contou ainda com a renda do auxílio emergencial, agora reduzido a R$ 300.

"Faço dobradinha, feijoada, sarapatel, essas comidas assim grosseironas. Fiz um fogareiro e estou cozinhando no carvão, que é mais rápido e mais barato do que o gás."

Com o fogareiro a carvão, a moradora do Distrito Federal dribla o desemprego e a alta de preços do gás.

Mas a perspectiva para 2021 é de que os preços controlados pelo governo, que foram um fator de alívio para a inflação na maior parte deste ano, voltem a pesar no bolso dos brasileiros, num momento em que a alta de preços dos alimentos deve perder força.

Rodada de reajustes

No último dia 3, a Petrobras anunciou mais um reajuste de 5% do botijão de gás às distribuidoras.

No ano, o combustível de maior peso na renda das famílias mais pobres já acumula alta de 21,9% no atacado, acompanhando o aumento da cotação internacional e a variação do dólar.

Ainda nesse fim de ano, a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) surpreendeu a todos, ao antecipar para dezembro a reativação da bandeira vermelha nas contas de luz, gerando uma cobrança adicional de R$ 6,24 para cada 100 KWh (quilowatt-hora) consumidos.

Antes disso, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) determinou que os reajustes de planos de saúde adiados em 2020 sejam aplicados a partir de janeiro de 2021, de forma diluída, em 12 parcelas. Esse é um aumento de preços que pesa mais para a classe média.

E, a partir de janeiro, são esperados ainda os reajustes do transporte público e as correções anuais das contas de luz, que devem tornar a energia ainda mais cara, para além do acionamento da bandeira tarifária. A gasolina e o diesel também devem subir no próximo ano.

'Bondade hoje pode ser maldade amanhã'

"A natureza dos preços monitorados é que eles dependem de decisões governamentais. Esse ano, por conta da pandemia, existiram decisões espraiadas por todo o Brasil de atrasar reajustes, reduzi-los, mitigá-los ou até mesmo anulá-los", diz Fabio Romão, analista de inflação da LCA Consultores.

"Isso foi feito para preservar principalmente a renda das famílias menos abastadas. Dois grandes exemplos disso são a energia elétrica e a taxa de água e esgoto", cita o economista. "A bondade de hoje pode ser a maldade de amanhã, chega uma hora que será preciso reajustar esses preços e talvez até ter compensações ao alívio gerado em 2020."

A estimativa da LCA é de uma alta de 2,42% para os preços administrados em 2020 e de 3,70% em 2021. Antes, a projeção era de altas em torno de 1% e 4,5% respectivamente, mas o reajuste foi antecipado pela decisão da Aneel de acionar a bandeira vermelha já em dezembro.

Inflação dos mais pobres

"Esse ano, a inflação dos mais pobres ficou bem mais alta do que a geral, por conta de alimentos", observa Maria Andreia Lameiras, economista e pesquisadora do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Segundo o Indicador Ipea de Inflação por Faixa de Renda, a inflação da população de renda muito baixa chegou a 5,33% no acumulado de 12 meses até outubro, comparada a alta de 3,92% do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), indicador oficial de inflação do país, no mesmo período.

No último dia 4, o IPC-C1 (Índice de Preços ao Consumidor – Classe 1) da FGV (Fundação Getúlio Vargas), que mede a inflação para famílias com renda mensal entre 1 e 2,5 salários mínimos, mostrou quadro semelhante, com uma alta acumulada em 12 meses de 5,82% até novembro, puxada por avanço de 17,06% dos alimentos no período.

"Sabemos que, no ano que vem, teremos um alívio nos preços dos alimentos. Ainda vai haver aumentos em 2021, mas em proporção muito menor", diz Lameiras, citando o crescimento de safras e menor desvalorização cambial como fatores para essa mudança.

"Mas, em compensação, energia elétrica e transportes, que vão fechar 2020 com uma variação muito baixa, no ano que vem, vão trazer uma variação mais alta."

A economista lembra que esse efeito no transporte público é comum, com reajustes menores em anos de eleições municipais e correções maiores nos primeiros anos de mandato. Em 2021, esse efeito deve ser agravado pelo prejuízo bilionário e perda de passageiros do setor de transportes devido à pandemia, que poderão ser compensados na próxima rodada de ajustes.

Outro peso importante no orçamento dos mais pobres, o aluguel sofre a pressão de um IGP-M (Índice Geral de Preços – Mercado) em alta de 24,52% em 12 meses até novembro. Por outro lado, diz Lameiras, o elevado número de imóveis ociosos reduz um pouco dessa pressão, com muitos proprietários aceitando reajustes mais baixos, apesar do indexador disparado em alta.

Preços em alta, renda em baixa

A pesquisadora do Ipea destaca que um problema dos itens que vão pressionar a inflação no próximo ano é que eles dificilmente podem ser substituídos.

"No caso do gás de botijão, na pior das hipóteses, as pessoas vão para fogareiro nas comunidades mais pobres. Já na energia elétrica e no transporte público, não existe essa substituição. Assim como com o arroz, feijão e leite, com a energia elétrica, a pessoa pode até diminuir um pouco o consumo, mas precisa de um mínimo para garantir sua subsistência."

Esse aumento de itens cujo consumo é pouco elástico vai se dar num momento em que a renda dos mais pobres estará desafiada pelo fim do auxílio emergencial.

"O que esperamos é que, com a melhora da atividade econômica em 2021, essas pessoas consigam voltar ao mercado de trabalho, recuperando sua renda", diz Lameiras. "Mas isso está muito condicionado ao que vai acontecer com a economia brasileira em 2021."

Desequilíbrio fiscal é risco

Para a economista, será importante no próximo ano que as reformas estruturais planejadas pelo governo avancem, sinalizando ao mercado que há um plano de controle das contas públicas e que a dívida pública não vai explodir.

Outro fator de incerteza, destaca a pesquisadora, é como a pandemia vai evoluir nos próximos meses.

"Geralmente, as famílias mais pobres têm baixa qualificação e estão muito ligadas aos setores de comércio e serviços. E são esses setores os mais penalizados quando há um quadro de pandemia se agravando."

André Braz, coordenador de índices de preço do Ibre-FGV, prevê que os preços monitorados devem ter alta de cerca de 1,5% a 2% esse ano, contra uma inflação que deve fechar o ano acima de 4%.

Já em 2021, Braz espera uma alta acima de 5% para os administrados e avanço maior do que 4% para o IPCA como um todo, superando a meta de inflação do próximo ano, que é de 3,75%.

Para o economista, o principal risco para uma piora da inflação no ano que vem é se houver um descontrole maior das contas públicas.

"Temos um déficit público que já está praticamente do tamanho do PIB e isso representa um risco de o país não ter recursos para arcar com as suas contas, o que pode criar um desequilíbrio na inflação, tanto por desvalorização cambial, quanto por emissão de moeda, caso isso aconteça", afirma, defendendo a necessidade de o governo voltar à política de contenção de gastos no próximo ano, retomando a agenda de reformas.

52 milhões de pessoas na pobreza e 13 milhões na extrema pobreza

O IBGE divulgou no mês passado um retrato das condições sociais do país em 2019. Quase 52 milhões de brasileiros vivem na pobreza.

Desigualdade: uma praga que assola o Brasil desde sempre e que criou raízes profundas.

Andressa teve o primeiro filho aos 14 anos. Hoje, aos 23, já tem quatro. Quando chove, ela, o marido e os quatro filhos têm que dormir em cima de um estrado, preso entre a janela e o muro, porque fica tudo alagado.

“Eu chorando porque eu ali em cima ouvindo as coisas caindo dentro de casa, não podendo fazer nada. Vendo cobra andando aqui. E eu com as crianças ali em cima. E grávida”, conta Andressa Nascimento, faxineira desempregada.

No extremo, onde está Andressa, os 10% mais pobres ficaram, em 2019, com menos de 1% do total de rendimentos recebidos pelas pessoas no país. No outro extremo, os 10% mais ricos ficaram com quase 43%.

Um dos mais conhecidos indicadores de desigualdade é o Índice de Gini. Ele varia de zero, que representa a perfeita igualdade, até 1, a desigualdade máxima. No Brasil, o índice ficou em 0,543. No ranking internacional da desigualdade, o Brasil ocupa a posição 156, abaixo de Botsuana, na África, Colômbia e México.

As diferenças são ainda mais cruéis quando levamos em conta a cor da pele. O rendimento médio da população branca foi de quase R$ 2 mil, enquanto os pretos e pardos ficaram com metade.

“A disparidade é muito grande e ela atinge sempre as mesmas regiões e os mesmos grupos étnicos. Eles têm condições de vida muito precárias. Uma situação difícil de você sair desse nível social para atingir um ganho social e mudar de situação de vida”, avalia Écio Costa, professor de Economia da UFPE.

O país que bate recordes na agricultura, que exporta alimentos e até aviões para o mundo, tem um uma boa parcela da sua população sem acesso ao mínimo para ter uma vida digna. Brasileiros que não têm dinheiro para morar, para se alimentar, para educar os filhos, e que parecem presos a um círculo que precisa ser quebrado.

Segundo o IBGE, o Brasil tem mais de 13 milhões de pessoas na extrema pobreza, aquelas que, de acordo com o Banco Mundial, vivem com até R$ 151 por mês. E quase 52 milhões na pobreza – com renda de até R$ 436 por mês. A situação é mais crítica no Maranhão, que tem um a cada cinco moradores na indigência.

Dona Alteliene Amorim Rodrigues, desempregada, vive em São Luís em uma palafita sem água encanada e sem banheiro. “Eu espero que um dia eu tenha um lugar melhorzinho para que eu possa morar. Uma casa pequena, mas em um lugar bem honesto. Que seja pequena, mas de tijolos. Um banheiro, meu sonho. Por enquanto, eu estou levando”, conta.

De acordo com o IBGE em sua Síntese dos Indicadores Sociais, o contingente de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza extrema em 2019 representa 6,5% da população brasileira vivendo com menos de US$ 1,90 por dia (R$ 151 por mês, segundo a cotação e a metodologia utilizadas na pesquisa).

O número indica um aumento de dois pontos percentuais na comparação com 2014, quando a série atingiu seu menor indicador, de 4,5%. Porém, o índice passou a crescer em 2015 e apresenta estabilidade desde 2017, quando chegou a 6,4%.

Por outro lado, se considerada a linha recomendada internacionalmente para o Brasil pelo Banco Mundial, o total de pobres do país —com renda de US$ 5,50 por dia (R$ 436 por mês, segundo a pesquisa) — superou 51 milhões de pessoas em 2019.

No ano anterior, eram 52,5 milhões de brasileiros nessa situação, o que fez a proporção de pobres em relação ao total da população cair de 25,3% para 24,7%. Em 2014, porém, o índice estava em 22,8% da população.

O Banco Mundial utiliza três linhas de pobreza, a depender do nível de renda dos países. A atual linha internacional de extrema pobreza é fixada em US$ 1,90 por dia em termos de paridade de poder de compra (PPC).

O valor representa a média das linhas da pobreza encontradas nos 15 países mais pobres, segundo consumo e renda por pessoa.

O Banco Mundial ainda recomenda que, quanto maior o nível de renda média dos países, maior a linha de pobreza para que se mantenha a correspondência com o nível de rendimento médio da população.

Países de renda média-alta, grupo ao qual o Brasil pertence, têm como linha padrão US$ 5,50 PPC.

De acordo com o IBGE, entre os 43 países desse grupo com informação disponível na base de dados do Banco Mundial, o Brasil apresenta a 21ª taxa de pobreza mais elevada, em condições piores que países como Paraguai, Tailândia, Romênia, República Dominicana, Panamá, Argentina, Costa Rica e Irã.

Na comparação por regiões, os dados mostram pequenas oscilações na comparação com o ano anterior. Nos estados do Norte do país, o percentual de pobres teve oscilação positiva, de 41,3% para 41,6%. Já nas demais regiões brasileiras, houve queda: o Nordeste foi de 43,6%para 42,9%, o Sudeste de 16,3% para 15,8%, o Sul de 12,1% para 11,3% e o Centro-Oeste de 16,4% para 15,3%.

Já na análise de extrema pobreza, o Norte também registrou aumento (de 11% a 11,4%) entre 2018 e 2019, assim como Nordeste (de 13,6% para 13,7%) e Sul (de 2,1% a 2,2%). Sudeste (de 3,2% para 3,1%) e Centro-Oeste (de 2,9% para 2,7%), por outro lado, tiveram queda.

A pesquisa destacou que a distribuição da população pobre pelo território brasileiro difere bastante daquela observada para a totalidade da população em 2019. Enquanto o Nordeste respondia por 27,2% do total populacional do país, essa região tinha 56,8% das pessoas consideradas extremamente pobres pela linha de US$ 1,90 por dia.

O Sudeste, região brasileira mais populosa, respondia por entre 20% e 27% da população de pobres, a depender da linha adotada.

Entre os estados, o Maranhão tem 1 em cada 5 residentes na situação de indigência pela ótica estritamente monetária, seguido de Acre (16,1%), Alagoas (15,0%), Amazonas (14,4%) e Piauí (14,0%).

Pela linha de US$ 5,50 por dia, o Maranhão tem cerca de metade da população abaixo dessa faixa. Outras 12 unidades da federação ainda possuem incidência de pobreza superior a 40% da população.

Cor e raça

A desigualdade também é evidente na desagregação por cor ou raça.

Na população total, 56,3% se declarou de cor preta ou parda em 2019, mas esses eram mais de 70% entre aqueles abaixo das linhas de pobreza utilizadas. Entre os que se declararam de cor ou raça branca, 3,4% eram extremamente pobres e 14,7% eram pobres.

No cruzamento das informações sobre sexo e cor ou raça das pessoas, foram as mulheres de cor ou raça preta ou parda que se destacaram entre os pobres: eram 28,7% da população, 39,8% dos extremamente pobres e 38,1% dos pobres.

O estudo ainda identificou que a pobreza é maior entre as crianças, tendência observada internacionalmente, segundo o IBGE. Entre aquelas até 14 anos de idade, 11,3% eram extremamente pobres e 41,7% pobres

Em meio à segunda onda de Covid e à crise, Bolsonaro encerra auxílio emergencial

Apesar do recente aumento dos casos de Covid-19, o que tem sido apontado por especialistas como indício de uma segunda onda da pandemia no país, o governo Bolsonaro encerra neste mês os pagamentos do auxílio emergencial.

A Caixa Econômica Federal concluirá todos os últimos depósitos do auxílio entre os dias 13 e 29 de dezembro para aqueles que se inscreveram no programa por aplicativo ou que foram incluídos por estarem no CadÚnico.

Já os beneficiários do Bolsa Família que recebem o auxílio também terão os depósitos neste mês, mas entre os dias 10 e 23.

As parcelas deste último mês variam conforme a data de entrada no programa. Beneficiários que recebem o dinheiro desde abril agora terão direito ao nono pagamento, enquanto os últimos aprovados terão a soma de quatro parcelas depositadas em suas contas.

Diversos estudos apontam para o risco de aumento da pobreza e desigualdade com o fim do auxílio emergencial. Segundo cálculos do sociólogo Rogério Barbosa, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o encerramento dos repasses em meio à atual crise econômica e sanitária pode elevar a desigualdade no país ao patamar dos anos 1980.

Enquanto isso, o Bolsa Família, principal programa social de transferência de renda do país, não será capaz de absorver todos os desamparados pelo fim do auxílio. A fila do programa voltou ao patamar de quase 1 milhão de pessoas e a tendência é que número aumente nos próximos meses.


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