29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Corpo coberto em padaria no Rio revela que estamos mortos de anestesia

Publicado em 03/12/2020 12:00 -

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Dizem que a gente vira gente quando nasce e ganha um nome. Esqueceram de contar quando é que a gente deixa de ser gente.

No Rio, um morador de rua morreu na Padaria e Confeitaria Ipanema, perto da praça Nossa Senhora da Paz. Teve o corpo coberto por um saco plástico e foi cercado por cadeiras por mais ou menos duas horas até ser recolhido. A padaria seguiu aberta normalmente. Em sua coluna no jornal O Globo, Joaquim Ferreira dos Santos contou que um freguês chegou a pedir ao responsável pelo estabelecimento que as portas fossem fechadas por uma questão sanitária e humanitária. A resposta foi negativa: ninguém teve humanidade quando aquele homem estava jogado na rua e agora que morreu jogado em sua padaria queriam que ele tivesse? Enfim, a hipocrisia.

Carlos Eduardo Pires de Magalhães tinha 40 anos e sangue no rosto quando entrou na padaria para pedir ajuda. Pelos relatos, sofria de tuberculose e morreu por volta das 8h, mesmo horário em que costumava tomar o seu pingado com pão na chapa. Antes de ser atendido, caiu, foi coberto e fotografado. Até então, era um homem sem nome. Seguiu invisível sem atrapalhar o trânsito entre as mesas nem mudar a rota dos maxilares de quem mastigava bovinamente enquanto conferia as notificações do celular. Estava à vista de todo mundo que seguiu a vida em profunda anestesia, um recurso usado pelos que aprendem logo cedo a lei das grandes cidades: sentir nos consumiria, e os mendigos estão aí pra nos lembrar o que acontece quando vacilamos, entregamos os pontos, explodimos longe da postura correta, e ereta, dos que se movem para não viver na rua.

Além da pele negra, a indiferença com que se morre nessas cidades é o que une Carlos Eduardo a João Alberto Freitas, espancado diante de 15 mortos-vivos em Porto Alegre, em novembro. Não importa se é morte morrida ou morte matada: eles estão sempre cercados por câmeras, seguranças e olhares desviantes de quem não sabe quando começou a morrer.

Falta empatia

Os noticiários, diariamente, nos contam histórias contraditórias. Informam crises, mostram violências cotidianas, mas também exibem debates construtivos, diferentes mobilizações de solidariedade.

O período pandêmico tem evidenciado uma nação desalinhada. As condutas individuais destoam do esforço coletivo pela vida e de uma imagem cristalizada no pensamento de um povo "hospitaleiro como um traço definido do caráter brasileiro", mencionada em 1936, pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil" — embora a "cordialidade" mencionada por Holanda seja relacionada a tudo que vem do coração, capaz de grandes afetos e de violência. O autor passou o resto da vida explicando o que é o "brasileiro cordial".

Uma pesquisa, divulgada em 2016 pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), prova algo de que já se desconfia. Num comparativo entre países, o Brasil está em 51º lugar, em um ranking de empatia. Foram avaliadas 63 nações.

Onde o povo brasileiro começou a apresentar essa dicotomia? Segundo o professor e historiador Deusdedith Rocha, a ideia de que há uma "natureza humana" foi reforçada no Iluminismo, com as ideias dos filósofos Thomas Hobbes e de Jean-Jacques Rousseau. O primeiro pensador dizia que o ser humano é mau por natureza, ao passo que o segundo sugeriu sermos bons genuinamente.

"O problema disso é que acabamos deixando de lado muitas coisas que interferem no comportamento humano", explica o historiador. "No caso do Brasil, os colonizadores se habituaram a dizer que o país é uma dádiva de Deus. Fizeram um grande esforço para compor uma história que afirma: os brancos colonizadores construíram tudo com a 'ajuda' de africanos e indígenas. Mas os conflitos sociais entre nós sempre foram muito cruéis. Houve um apagamento da crueldade da nossa história e dos intensos conflitos que ela sempre teve."

Essa estrutura atinge diretamente a percepção sobre nós mesmos, a representação que se faz do outro e, consequentemente, dos problemas sociais que o país atravessa. "A questão fundamental é que o Brasil é desigual. Temos uma Bélgica e uma Índia aqui dentro", diz Débora Messemberg, professora de sociologia na UnB (Universidade de Brasília).

Gentileza como propaganda turística

O "tempero" social brasileiro foi incentivado numa primeira onda migratória, no final do século 19, quando extingue-se a escravidão e o país começa a importar mão de obra barata e branca, vinda da Europa e do Japão. "Era uma dupla intenção: branquear o país e buscar mão de obra barata para a agricultura, já que a população negra que aqui habitava não era considerada gente", afirma Ana Maria Mauad, professora do Departamento de História da UFF (Universidade Federal Fluminense). A reestruturação da lógica de trabalho, ocupação e domínio das terras dos povos originários ocasionou o fortalecimento desse racismo estrutural, porque criou uma disputa entre o branco europeu pobre e o negro, sobretudo depois da abolição.

Entre 1930 a 1945, durante a ditadura de Getúlio Vargas, o país aplicava a política da boa vizinhança: este é o momento em que se constrói o ideário do nacional popular, da cultura popular, do samba. A publicidade e a fotografia, produzidas pelo governo, destacam a figura de Carmen Miranda e da Bando da Lua, grupo de músicos que tocavam instrumentos brasileiros e que acompanhavam a cantora.

Em 1941, no meio da Segunda Guerra Mundial, o desenhista Walt Disney vem ao Brasil e cria Zé Carioca, consagrando o "país cordial" ao apresentá-lo a Pato Donald. "O Brasil se projeta como um país receptivo, alegre, ordeiro e simpático; conflitos entre capital e trabalho parecem completamente controlados, o país estava se industrializando", analisa Mauad. "O que fica claro, dentro dessa operação, é mitigar todo tipo de conflito de classe e de raça. Carmen representava um país unido, que adorava o Carnaval e gostava de receber, assumido de norte a sul como se houvesse unidade regional, e não era — não é — assim."

Um abismo de distância

O Brasil é a sétima nação mais desigual do mundo, de acordo com o último relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em 2019. As disparidades começam na diferença de rendimento dos brasileiros. Em seu levantamento de 2019, o IBGE divide a população em 10 decis — faixas de renda mensal recebidas. O menor salário pago equivale a R$ 160, e o maior começa a partir de R$ 28.659, ou seja, uma pequena parcela da população (representada por 1%) ganha pelo menos 180 vezes mais que a última faixa (representada por 5% do total, ou as classes D e E).

Isso se agrava ao avaliar o aspecto cor/raça. Desde 2012, o instituto indica que a população preta e parda recebe quase os mesmos valores mensalmente. Em comparação com o mesmo período, a população branca tem, em média, de 70 a 80% a mais. Ao pensar em uma nação de pouco mais de 209 milhões de pessoas, é evidente que há uma balança estagnada no desequilíbrio.

"Abolimos bem tarde a escravidão, reduzimos os povos indígenas a um número muito pequeno. Mantemos até hoje um comportamento social segregacionista e de superioridade entre raças, gênero, etnias, classes sociais, regiões etc", argumenta Deusdedith. "Durante muitos séculos vivemos com uma massa humana de 'não-gente'. Não é uma questão nossa, apenas, tem a ver com a nossa história. Vários países do mundo mostram na lógica iluminista da razão um processo evolutivo contínuo, mas a verdade é que a sociedade se constrói em uma série de avanços e retrocessos. A questão da cidadania não é uma conquista evolutiva e contínua", esclarece a socióloga. O reflexo disso está nas notícias. Na visão de Débora, a vontade social de ter uma imagem positiva esconde a perversidade presente na construção das relações brasileiras.

Sentir é diferente de viver

A empatia é um dos elementos integrantes de um pensamento mais coletivo. Nos liga à comunidade ou com o país no qual se estabelece reconhecimento, sem ela no dia a dia não se consegue estar atento à dor do outro.

O psicanalista e professor do instituto de psicologia da USP, Christian Dunker, explica que "a empatia começa quando termina a identificação com o outro, quando se vai além da identificação e não se quer silenciar o outro, vê-lo como subalterno".

Segundo Dunker, o que acontece hoje é uma espécie de "democracia em estrutura de condomínio" ou "democracia customizada", isto é, "feita para os que são iguais a mim e não para quem é diferente de mim. As pessoas irão se identificar com quem está no mesmo pedaço. Posso me achar muito empático porque estou me identificando com o outro, não necessariamente sendo empático a ele", elucida.

Portanto, uma sociedade desigual não propicia relações mais humanizadas. "Sem relações horizontais não se criam vínculos, serão sempre relações hierárquicas [ou verticais]. Tanta desigualdade dificulta, ainda mais dentro de uma lógica de problemas raciais e econômicos. Então, temos grupos se identificando cada vez mais com os seus próprios pares, que são cada vez mais minúsculos", contextualiza Débora Messemberg. "Percebo a desigualdade como o grande nó da nossa história. Se não começar a resolver por aí, será difícil conseguir uma solução."

Relações sociais

A dinâmica narrada pela socióloga é representada nas tiras criadas por Leandro Assis e Triscila Oliveira. Publicada no Instagram e no Twitter, a série "Os Santos" representa uma família da elite carioca. Seus personagens vivem de maneira conservadora e inclinados ao discurso de direita. Ele retrata os pormenores das relações verticais que evidenciam os privilégios brancos, as desigualdades sociais, o racismo, o desrespeito e a falta de empatia entre as classes.

"Quando comecei a fazer, era uma série escrita de branco para branco. Claro que a ideia era humanizar ao máximo as domésticas, os pobres, contribuir para que esse leitor branco, classe média-alta, tivesse mais empatia por aquelas pessoas", conta o autor. "Tem aí uma questão de mentalidade escravocrata que faz o brasileiro rico acreditar que existe uma parcela da população que está aí para servir. Ele desumaniza essas pessoas para poder, inclusive, vê-las apenas como serviçais."

As reações às tiras são diversas. Desde ataques de seguidores, produções tiradas do ar, até pessoas com o perfil desenhado que passaram a refletir, a ver um outro lado, a repensar a maneira de agir. Tem também as obras que chegam às pessoas das classes representadas ali. O retorno delas é o mais positivo. Sentem reconhecimento na representação. A identificação é tamanha que dão ideias para novas histórias.

"Não dá para colocar que temos uma face egoísta e uma face boazinha do brasileiro, porque elas estão misturadas. Todos temos impulso à solidariedade e a nos comportarmos contra o coletivo, por exemplo. Isso é comum a todos os povos. O que muda essa tonicidade são os momentos que a sociedade atravessa", afirma Dunker.

O jornalista e cientista social Matheus Pichonelli faz um emocionante relato sobre o tema:

“Em 2020, ano em que passamos os dias cobrindo e contando mortos numa pandemia, completei minha maioridade em não ser gente. De mudança para São Paulo, há 18 anos trazia no colo um discman e um livro que deveriam servir como bússola caso um dia perdesse as referências. Nos trechos finais, o Miguilim ganhava óculos e ia também morar na cidade grande.

Estava tão aflito com a mudança que reler aqueles trechos, ainda no ônibus, me fez tirar os óculos para miopia e enxugar algumas lágrimas. Alguém ao meu lado perguntou se eu estava bem e só paramos de conversar quando o ônibus estacionou na rodoviária do Tietê. "Se você sobreviver aqui você sobrevive em qualquer lugar", disse o passageiro-amigo antes de se despedir.

Naquelas viagens que se tornaram frequentes entre o interior e São Paulo creio ter feito algumas amizades com meus vizinhos de poltrona. Deles não guardei nomes nem contato para mandar um sinal no WhatsApp algum tempo depois. Quando inventaram essa ferramenta eu já não queria conversa. Não queria ser amolado. Me irritava com os sons que escapavam de algum fone, com as querelas resolvidas em viva voz ao celular, com os toques de aparelhos eletrônicos e até mesmo com algum choro de criança.

Entrei mole naquela cidade e saí duro. Mal colocava os cintos de segurança e começava a dormir. Ou adiantar os trabalhos do dia seguinte. Sem tempo pra conversa, irmão.

Tem sido assim, acho, desde que me desviei de uma mulher no metrô que passava mal, pediu ajuda e começou a vomitar. Olhei o relógio e corri para evitar um novo atraso. O que fiz de tão importante naquele dia, numa redação de site esportivo? Não lembro. Nunca vou lembrar. Mas não esqueço daquela mulher de quem desviei o olhar e agora não consigo desver.

Foi a primeira, mas não seria a última vez que fingia demência quando me pediam atenção, dinheiro, informação ou ajuda — era um golpe, decerto, desses que a gente só cai nas primeiras semanas como urbanoides.

Depois ganhamos cascas. Ficamos espertos.

Nem sempre foi assim. Naquele primeiro ano, a cidade ainda me impactava e de seus habitantes eu sabia alguns nomes, inclusive do velho que dormia à entrada do metrô Brigadeiro. O nome dele eu esqueci, mas sei que era avô de um recém-nascido com o mesmo nome que o meu. O garoto hoje tem 18 anos.

Certa vez, minha mãe me telefonou para avisar que meu avô, internado, já havia sido desenganado pelos médicos. Disse para me preparar e pegar o próximo ônibus. E pediu para que eu rezasse a uma santa, cujo nome esqueci. Pela tradição, eu ganharia uma rosa e teria a prece atendida. Rezei. Antes, fiz um rapa na geladeira e levei alguns pães e fatias de presunto e queijo que estragariam no tempo em que ficaria fora da cidade.

Antes de embarcar, levei tudo para os mendigos que dormiam em frente à Imaculada Conceição. Um homem vendia flores na frente da igreja, viu a cena, me deu uma rosa como agradecimento. Meu avô saiu andando do hospital poucos dias depois.

Eram outros tempos, e naquele tempo ainda havia resquícios de fé e alguma humanidade que não me faziam envergonhar por chorar em público com um livro que não sei mais onde está. Mas me tornei um bom profissional, parece.

No trabalho, somos treinados e orientados a engolir o choro.

Ser profissional é ter distanciamento das coisas. Ou pessoas. Tanto faz.

Dizem que o que os olhos não veem o coração não sente. E, para não sentir, o melhor é desviar. Ou desver.

Hoje sei cobrir e contar os mortos dos boletins diários sobre o avanço da Covid-19. Já não pergunto quem morreu, mas quantos.
Com os anos, aprendi a sair das padarias e desviar dos olhares que me lançavam pedidos já na saída. Não tinha tempo para conversa nem lamentos. E nunca mais me atrasei.

Já não moro nessa cidade nem desvio ou esbarro com os deserdados filhos da terra. Não corro risco de ser flagrado em alguma padaria de grande cidade conferindo e-mail ou notícias sobre os mortos na pandemia enquanto um homem é coberto sem choro ou vela a poucos metros. Vim para o interior morar num condomínio que agora me protege de todos eles.

No dia em que vi a foto do homem coberto no Rio, escutei uma explosão na rodovia separada por um muro entre minha casa e minha nova cidade. Senti o cheiro de gasolina queimada e fiquei onde estava. Era o dia seguinte da eleição e não queria atrasar o envio da minha análise definitiva sobre o cenário político — da qual, creio também, ninguém mais se lembra.

Era um caminhão de combustível que bateu e explodiu a poucos metros do meu quarto. Fragmentos daquele veículo penetravam, pelo odor de pneu e óleo queimados, a casa onde eu deveria permanecer isolado do resto do mundo. Graças ao muro, os destroços seguiam longe da minha vista. Soube dos detalhes procurando informações, minutos depois, pelo Google.

O mundo explode longe, muito longe. Mas estamos a salvo. Estamos todos mortos de tanta anestesia.”


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