29/03/2024 - Edição 540

Eles em Nós

Projeto Brasil Pária continua a todo vapor

Publicado em 02/12/2020 12:00 - Idelber Avelar

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"Entre os líderes que tomaram a palavra por videoconferência ou que estão previstos para falar nos próximos dois dias encontram-se Angela Merkel (Alemanha), Giuseppe Conte (Itália), Recep Tayyip Erdogan (Turquia), Tamim bin Hamad Al-Thani (Catar), Miguel Díaz-Canel (Cuba), Justin Trudeau (Canadá), Yoshihide Suga (Japão), Francisco Rafael Sagasti (Peru), Luis Alberto Arce (Bolívia), Cyril Ramaphosa (África do Sul), Iván Duque (Colômbia), Luis Lacalle Pou (Uruguai), Emmanuel Macron (França), Narendra Modi (Índia), Jacinda Ardern (Nova Zelândia), Erna Solberg (Noruega), Boris Johson (Reino Unido), Pedro Sanchez (Espanha)".

Ausentes: Donald Trump (EUA) e Jair Bolsonaro (Brasil).

Projeto Brasil Pária continua a todo vapor.

BOA VIZINHANÇA

Para ficar só em três dos maiores parceiros comerciais do Brasil, o bolsonarismo conseguiu:

1. ofender a França da forma mais torpe, não só insultando o seu presidente como insultando também sua primeira-dama por aparência física, ou seja, distribuindo ofensa das mais vis.

2. atacar a China com epítetos racistas vindos da família presidencial, do chanceler e do próprio presidente. Foi repetidamente insultada ao longo de meses uma nação milenar, cuja característica mais visível é o fato de, sacumé, saber o que faz, porque está há alguns milênios fazendo.

3. ser dos únicos países do mundo a não reconhecer e parabenizar o governo eleito dos EUA. Seja qual for a bagunça criada pelo atual ocupante da Casa Branca, de todos os palácios de governo já saíram parabéns ao eleito Biden, menos de Brasília e mais um ou outro.

França, China, Estados Unidos: esse é o tamanho da lambança que conseguimos criar.

Em dois anos, o bolsonarismo já destroçou quase totalmente um dos ativos mais preciosos que sempre tivemos, a boa vontade com que éramos recebidos em qualquer lugar. Um século de trabalho de uma das diplomacias mais respeitadas e tradicionais do mundo vai ser arruinado em quatro anos.

A DERROTA DE TRUMP E UM VISLUMBRE DE BIDEN

Fiz para a Ilustríssima, da Folha, um balanço da derrota do Trump à luz das outras eleições presidenciais deste século nos EUA e um vislumbre do governo Biden, que se anuncia bem à direita. Um trecho:

"Em 2004, o estado-emblema foi Ohio, e por ele perdi uma aposta em eleição americana pela primeira e última vez. O jantar que nunca paguei seria com o saudoso Clóvis Rossi, que cobriu aquele pleito para a Folha. Talvez misturando análise e torcida, eu lera de forma otimista a curva pró-John Kerry nas pesquisas finais, enquanto Rossi, mais distanciado e experiente, cravou a vitória de Bush.

Ocorreu em 2004 um fenômeno que se repetiria em 2016 e 2020, o voto conservador não captado pelas pesquisas. Progressistas da Louisiana que voltávamos da Flórida (onde fomos oferecer carona a eleitores sem transporte) optamos pela música em vez do rádio, tal era a certeza da vitória. Em casa nos topamos, estupefatos, com o aluvião de votos evangélicos ocultos saindo dos cafundós de Ohio." Leia AQUI.

MOMENTO SENSACIONAL

Momento sensacional da primeira entrevista conjunta de Joe Biden e Kamala Harris depois de eleitos, que está rolando agora com Jake Tapper na CNN.

Tapper pergunta:

– Muitos progressistas estão reclamando de que até agora não há progressistas nomeados para o Ministério. Quem pode ser considerado progressista entre esses já nomeados?

Biden olha para Harris, Harris olha para Biden, ele dá uma gaguejada, ela dá uma gaguejada, Biden esclarece que é difícil retirar gente progressista do Senado ou da Câmara, com as contas tão apertadas no Congresso, e finalmente diz:

– Mas temos progressistas, sim! Temos um progressista no Department of Homeland Security, por exemplo, o Alejandro Mayorkas.

Até Tapper, da CNN, uma emissora de centro-direita pró-Biden, ficou lívido com a menção de Mayorkas como progressista. O Google do rapaz vocês podem fazer, eu faço a analogia.

****

É como se alguém, no Brasil, dissesse: não tem nenhum progressista nesse time aí, não?

E você respondesse:

— Temos progressistas, sim, uai, temos o ACM Neto!

BATE BUMBO

Para que tenham uma ideia do estrago feito pelo bate-bumbo de um Presidente reiterando uma mentira.

Número de provas ou indícios apresentados até agora de que tenha havido fraude nas eleições dos EUA em 2020: ZERO.

Porcentagem de eleitores dos EUA que acreditam que houve fraude suficiente para influenciar o resultado final: 40%

Porcentagem de eleitores dos EUA que acreditam que houve fraude, influenciadora do resultado ou não: 75%

Porcentagem de eleitores de Donald Trump que acreditam que houve fraude suficiente para influenciar o resultado: 81%

Porcentagem de eleitores de Donald Trump que acreditam que houve fraude: 91%

*****

Quando inventaram essa tal de democracia, o manual não veio com instruções sobre o que fazer nestas horas, em que 3 de 4 pessoas deixaram de acreditar nela.

OI?

Vi uns tuítes de Gleisi Hoffmann dizendo que o petismo poderia se considerar “vitorioso” depois da eleição de domingo e pensei escrever uns parágrafos esse dislate. Desisti. Melhor contar um causo do dia em que aprendi o conceito de “torturar os números”.

Como quase tudo o que aprendi de importante, foi no futebol, na maior surra que conheci no campo de jogo. Era uma partida contra o Santa Cruz, o de Beagá, não do Recife (minha carreira de jogador não chegou ao ponto de jogar contra o original). Mas o Santa Cruz era o melhor time de futebol amador da cidade, tinha ganhado Copa Itatiaia no ano anterior, estava em outro nível.

Com 10 minutos, não tínhamos tocado na bola. Os caras se entendiam em alta velocidade, com aquele índice de acerto de quem joga junto há tempos, o ângulo do passe seguinte deles era sempre um mistério que estávamos tentando adivinhar, e depois de uns 20 minutos na roda de bobo, levamos o primeiro: 1 x 0.

Continua o massacre, e em troca de passes tranquila na nossa intermediária, um deles arrisca de longe, acerta o ângulo e faz 2 x 0.

Como eu tinha que voltar até o círculo central para tentar achar qualquer coisa que se parecesse com uma bola, o jogo transcorria todo no nosso campo. Atravessar para o campo deles já era uma grande vitória. O goleiro deles assistia ao jogo SENTADO.

Deus sabe como, vamos ao vestiário perdendo só de 2 x 0. Tentamos uns ajustes, mas nada dá certo, eles continuam trocando passes em alta velocidade para sair na cara do nosso goleiro e logo marcam o 3 x 0, mal iniciado o 2˚ tempo.

Bem, aí a gente começa a temer uma goleada humilhante. Quando o jogo chega a esse ponto, ALGUMA COISA você tem que fazer. Nosso zagueiro distribui um par de carícias em tornozelos adversários, eles sacam que a gente não ia aceitar ser humilhado e ficam tocando a bola até o jogo acabar. No final, a nossa zaga comete um erro grotesco, a bola sobra para um atacante e eles enfiam mais um: 4 x 0. Na saída, com o time deles já dormindo e pensando no chuveiro, a gente acha um gol de honra. O jogo termina 4 x 1.

Desacostumado a apanhar daquele jeito, a gente sai de campo com o rabo entre as pernas e é recebido no vestiário pelo Bisa, o treinador, com o seguinte discurso:

“Muito bem, parabéns, gostei da entrega! Se não fosse aquela bobeira da zaga no final, o 2˚ tempo teria terminado 1 x 1! E se não fosse uma cagada deles em um chute de longe, o 1˚ tempo teria sido só 1 x 0!”

Logo Bisa teve que parar, porque o time inteiro olhava para ele com aquela cara de WHAT THE FUCK.

É a minha história favorita para quando vejo políticos ou cabos eleitorais de políticos torturando números para tentar fazer a realidade dizer o oposto do que ela está dizendo.

ANTIPETISMO / ANTILULISMO

O conceito de antipetismo/ antilulismo tem uma curiosa história na sociedade brasileira no que se refere à forma como o recebem os próprios petistas/ lulistas.

Houve uma época, a partir de 2005, especialmente depois de 2013, e chegando ao paroxismo quase psicopata em 2014-2017, em que tudo o que se fizesse de crítica ao governo e, depois, à teoria do golpe, era recebido com o epíteto “você é um antipetista!”.

Criticou Belo Monte? “Antipetista!” Criticou Rousseff mandando a PF para assassinar Mundurukus? “Antipetista!” Criticou a brutal remoção das populações desprotegidas do Rio para Olimpíadas e Copa? “Antipetista!”

Enquanto isso, vai se gestando um antipetismo real, visível na sociedade brasileira, que a Lava Jato e depois o bolsonarismo canalizam. NESSE MOMENTO, em que o antipetismo efetivamente elege um fascista presidente, os petistas passam a negar que o antipetismo tenha feito isso, passam a negar sequer que ele exista – mesmo com as óbvias manobras de Lula para colocar Bolsonaro no segundo turno, mesmo com os Zés Dirceus e os Brenos Altmans e as Gleisi Hoffmans dizendo que o plano era esse mesmo.

Bem, se alguém duvidava da retroalimentação entre lulismo e bolsonarismo, eu imagino que depois de ontem só muita vontade de não ver deixe permanecer alguma dúvida. O único prefeito de capital que o bolsonarismo raiz conseguiu eleger (Vitória) foi justamente o único que chegou ao segundo turno contra um candidato petista.

Não poderia ser mais óbvio o recado. Resta saber se vão parar de fingir que não entendem e dar uns passinhos para trás, ter a grandeza de ir para o fundo da fila enquanto se arma uma possibilidade pós- e antibolsonarista sem chefe Lula mandando. Ou é isso ou serão mais alguns anos de Reich bolsonarista.

O jogo é esse, que eles não finjam que o jogo não é esse.

LISTA DE VERGONHAS

Na lista de vergonhas que se pode passar, acho que esta se situaria lá em cima. Você é do Ministério Público, trabalha com todas as regalias, e assina um documento exigindo ser vacinado antes das médicas e enfermeiros que estão dando a vida por nós na linha de fogo.

Magistocracia brasileira, sempre uma vergonha a mais.

TEOCRACIA

Despencada do Brasil no ranking da teocratização do tecido social. A pesquisa é do Pew Research Center.

Ante a pergunta "há que se acreditar em Deus para ter moralidade e bons valores?", inacreditáveis 84% dos brasileiros dizem que sim. Isso dá VINTE E NOVE PONTOS acima de Argentina e México, em nível Tunísia, quase chegando a níveis Nigéria-Indonésia.

A gente nunca foi nenhuma maravilha nesse ranking, mas piorou pra caralho. O Brasil está numa bad trip que não tem hora pra acabar.

 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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