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Cultura e Entretenimento

Porta dos Fundos desafia a intolerância em ‘Teocracia em Vertigem’

Publicado em 01/12/2020 12:00 -

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Notório dedo-duro bíblico, Judas Iscariotes ficou marcado como o discípulo que traiu Jesus por trinta moedas de prata. Tal relato, porém, pode ser fake news — depende da sua opinião, e daquela externada em seus grupos de WhatsApp. “Eu acreditava em Jesus, mas o Império Romano abriu meus olhos”, garante Judas — posicionamento que, como o próprio diz, o fará cair na malha-fina da cultura do cancelamento. Já Pedro questiona: “Por que depositaram 89 000 moedas de prata na conta da ex-mulher do Judas?”. O proeminente discípulo garante ainda que o colega de Santa Ceia estaria envolvido no esquema de rachadinha do sumo sacerdote Caifás.

Não é preciso conhecer muito da Bíblia para ligar os pontos e associar as referências da trama de 2 000 anos atrás com as do peculiar Brasil de 2020. A cena é parte do novo especial de Natal do Porta dos Fundos, Teocracia em Vertigem, que chega ao canal do grupo no YouTube no próximo dia 10 amparado por uma expectativa altíssima, advinda das polêmicas provocadas pela paródia natalina do ano passado. Ao sugerir que Jesus flertou com a homossexualidade em A Primeira Tentação de Cristo, exibido pela Netflix, a produtora provocou a ira de fundamentalistas e religiosos mais sensíveis. Se em 2018 os comediantes — que produzem esses especiais há sete anos — celebraram uma vitória no Emmy com Se Beber, Não Ceie, uma dramática reação de ódio ocorreu em 2019, culminando em um ataque à sede do grupo, no Rio de Janeiro. Agora, Teocracia em Vertigem tem potencial para irritar o alto escalão do poder — e, claro, seus seguidores mais fervorosos. Se depender do Porta dos Fundos, a resposta às controvérsias será um sonoro “amém”.

O novo filme do Porta é, claro, uma sátira do documentário nacional Democracia em Vertigem. Mas, em vez de chorar as lamúrias da derrocada do PT do poder, como fez Petra Costa na produção indicada ao Oscar deste ano, os humoristas da trupe exploram a matéria-prima tragicômica da Brasília dos dias de Jair Bolsonaro. O humor sempre foi uma válvula de escape para os povos em geral (e os brasileiros em particular) expiarem a indignação com os políticos, as instituições e as injustiças sociais. “Castigat ridendo mores”, já diziam os romanos — traduzindo do latim, “rindo se castigam os costumes”. Em países de longa tradição liberal, como os Estados Unidos e a Inglaterra, a cultura do humor autodepreciativo, em que até mesmo os figurões riem de si mesmos, é indissociável da própria democracia. Há quatro décadas no ar, o americano Saturday Night Live é um vigilante dos poderosos da Casa Branca. Na Inglaterra, o Monty Python, nascido em 1969, se tornou tesouro nacional ao ironizar a história e a cultura europeia, assim como a religião cristã e a monarquia.

Por aqui, o humor político enfrentou os entraves da censura durante a ditadura militar, mas soltou a franga logo em seguida, com nomes que hoje são parte do panteão da cultura nacional, entre eles Chico Anysio e Jô Soares. Enquanto os colegas dos anos 80 ensaiavam piadas em uma democracia que engatinhava, o Porta dos Fundos e seus contemporâneos pisam em um terreno pantanoso, de sentimentos polarizados e vertidos em opiniões à flor da pele. “O brasileiro não aprendeu a rir de si mesmo, ele gosta de rir do outro”, diz o roteirista e intérprete de Jesus no filme, Fábio Porchat (leia entrevista completa).

A intolerância com o humor provocou um episódio de triste memória: o atentado à redação do Charlie Hebdo, na França, depois que a revista satírica publicou charges de Maomé. O ataque de 2015 deixou doze mortos, mas não impediu o Charlie Hebdo de continuar prezando pela liberdade de expressão e publicando piadas com o profeta islâmico. No Brasil, ainda bem, vidas não foram perdidas. Mas a violência contra o Porta, em 24 de dezembro do ano passado, não é menos condenável. A sede da produtora, em Humaitá, Zona Sul do Rio, foi atacada na madrugada por quatro criminosos com coquetéis molotov. Um dos suspeitos identificados foi preso em setembro na Rússia, mas o caso segue sem um desfecho. Lamentavelmente, o presidente Jair Bolsonaro e o prefeito agora derrotado do Rio, Marcelo Crivella, nunca condenaram o ataque. A Primeira Tentação de Cristo ainda coleciona ações na Justiça de religiosos variados que pedem indenizações bilionárias por danos morais.

Se a intenção era calar os humoristas, o ato covarde teve efeito inverso: com mais de 16 milhões de inscritos em seu canal, o Porta só cresceu em 2020. Até o fim de novembro, registrou um aumento de 65% em sua receita em relação ao ano anterior. Adquirido em 2017 pelo gigante americana Viacom, segunda maior produtora de conteúdo do mundo, por valor estimado na casa dos 10 milhões de dólares, o Porta tem expandido seu escopo. As ações vão desde programas feitos para a TV, caso do bem-sucedido Que História É Essa, Porchat?, da GNT, agora exibido pela Globo, até a criação de uma divisão publicitária que abraçou marcas como a Ambev e a Sky, e a investida no mercado internacional. O canal Backdoor, no México, é produzido por uma equipe local, treinada pelos brasileiros. Polônia e Estados Unidos estão na fila para receber sua versão do Porta dos Fundos. “Saímos da crise mais fortes”, diz o CEO Christian Rôças.

O obscurantismo não impediu a produtora de fazer um novo especial de Natal, mas a pandemia quase melou os planos. O formato de documentário foi adotado para driblar a falta de interação entre atores. Um sítio em Vargem Grande, no Rio, foi usado como cenário para as gravações ao longo de uma semana. O resultado é um dos melhores especiais do grupo. Ambientada na Jerusalém de 33 d.C., a trama fala de um tribunal instaurado para decidir se quem vai para a cruz é Jesus ou Barrabás, rebelde acusado de assassinato. “Pela família tradicional jerusaleia, eu voto sim”, diz um dos julgadores ao condenar Jesus, balançando uma bandeira verde e amarela. Ao longo de cinquenta minutos, depoimentos de figuras bíblicas se intercalam, como os discípulos e a Virgem Maria. Outros personagens deveras brasileiros roubam a cena: há o terraplanista e negacionista Olavus e o Véio Luciano, irritado porque “com religião não se brinca”. Tem também um “outro Messias local”, para quem “amor não dá engajamento, não”. O processo que tenta desvendar quem foi Jesus é um deleite como metáfora da polarização nacional. Antonio Tabet, na pele de um Centurião, apresenta o indefectível PowerPoint usado por Deltan Dallagnol contra Lula na Lava-Jato como “prova coletiva de convicções” — além de uma lista de acusações que vão de vilipendiar a fé alheia à pesca em área de reserva ambiental. Para descolar Jesus de uma associação direta com o ex-presidente preso por corrupção, outras referências tentam neutralizá-lo. Em um depoimento, Maria fala sobre a infância de Jesus: “O Messias cresceu e virou mito”. Esse Jesus paz e amor não veio para agradar a todos, mas é um divertidíssimo antídoto contra o ódio.


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