26/04/2024 - Edição 540

Poder

Após prometer divulgar lista de países que compram madeira ilegal, Bolsonaro faz acusação genérica

Publicado em 20/11/2020 12:00 -

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O presidente Jair Bolsonaro recuou de apresentar uma lista de países que, segundo ele, compram madeira extraída ilegalmente do Brasil. Bolsonaro foi alertado por auxiliares do governo que não teria como manter a afirmação. E ainda causaria problemas diplomáticos, isolando cada vez mais o país internacionalmente no debate ambiental.

Ao mesmo tempo, a pressão interna – inclusive do setor do agronegócio – serviu de alerta para integrantes da equipe do presidente, que demonstraram preocupação com o episódio. Ao blog, um auxiliar do próprio governo chegou a classificar a fala como uma “bravata” que não teria como ser comprovada. Na live de quinta-feira (19), o próprio Bolsonaro teve que fazer uma correção de rumo na sua fala ao citar que eram empresas estrangeiras, e não mais países, que compravam a madeira ilegal. Quando prometeu mostrar a lista, no início da semana, ele havia falado em "países".

Bolsonaro mencionou a lista em uma reunião dos Brics, na terça-feira (17), com os presidentes da Rússia, Índia, China e África do Sul. Ele disse que divulgaria os países que criticam o desmatamento da Amazônia, mas importam madeira ilegal do Brasil.

Um grupo que reúne entidades ambientais e empresários do agronegócio e da indústria cobrou que o governo Bolsonaro assuma a responsabilidade pela fiscalização da madeira extraída no país. A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura – que reúne 262 representantes -, afirma que o maior obstáculo a um modelo sustentável "é a insegurança jurídica causada pela falta de fiscalização e comando e controle pelo Estado."

A estratégia inicial do presidente Jair Bolsonaro era de transferir responsabilidades da fiscalização do governo brasileiro para quem compra a madeira que é exportada.

“O presidente errou. Ao invés de reconhecer dificuldades internas e pedir colaboração dos países, preferiu partir para o ataque. O grande risco é de um isolamento cada vez maior do Brasil nesta questão ambiental”, reconheceu ao Blog um auxiliar do governo.

Esse mesmo auxiliar lembrou que o vice-presidente Hamilton Mourão já havia adotado a linha de pedir cooperação com os países da Europa.

Bolsonaro fez durante a transmissão menção a dois países de forma genérica. Citou o Reino Unido, que vai sediar em novembro do próximo ano a cúpula do clima da ONU, ao afirmar que há um projeto em discussão por lá que torna ilegal o uso de commodities por parte de empresas que importam material de países que realizam desmatamento.

“Então é um grande jogo econômico que existe entre alguns países do mundo, em especial, para nos atingir porque nós somos realmente uma potência no agronegócio, nas commodities que vem do campo, e eles querem exatamente diminuir a concorrência nossa, com toda certeza facilitando outros comércios ou até mesmo o comércio interno desses commodities”, disse.

″É um cartão de visita que a Inglaterra está apresentando, isso vai ser feito política em cima disso com o objetivo, em grande parte, de atingir o Brasil”, reforçou.

Em outro momento, o presidente mencionou a França ao dizer que o país é concorrente do Brasil na questão dos commodities. “O grande problema nosso, para a gente avançar no acordo União Europeia e Mercosul, é exatamente na França”, disse, numa referência à resistência do país europeu de chancelar o acordo entre os os dois blocos econômicos.

“Estamos fazendo o possível, mas a França, em defesa própria, nos atrapalha no tocante a isso aí”, destacou.

As autoridades pediram empenho dos países importadores de madeira ilegal brasileira para atuar em conjunto com o governo brasileiro na identificação dessas mercadorias comercializadas a preços abaixo do mercado. Destacaram que, com a tecnologia atual, já é possível identificar a origem da madeira exportada do Brasil e assim verificar se ela é ilegal ou não.

“Não adianta nós ficarmos combatendo aqui se os outros países não combatem a receptação desse material”, disse o ministro da Justiça.

Coalizão do Clima

A Coalizão Clima, formada por representantes de organizações de defesa do meio ambiente e empresas brasileiras ligadas ao agronegócio e ao setor financeiro, divulgaram nesta quinta-feira uma carta em que apontam o governo federal como um dos principais responsáveis pelas ilegalidades que dominam o mercado de madeira no país.

Depois das ameaças do presidente, a carta da Coalizão Clima apontou que o Brasil perde uma oportunidade de ter um ambiente de negócios no qual a lei é de fato aplicada e de promover uma economia que gere benefícios econômicos e ambientais.

“Mas o maior obstáculo a esse modelo é, justamente, a insegurança jurídica causada pela falta de fiscalização e comando e controle pelo Estado”, diz a carta.

O grupo, que tem entre seus participantes organizações ambientais como WWF e Imazon e empresas como Klabin, JBS, Marfrig e Natura, entre outras, em um total de 262 empresas e organizações, lembra que levantamentos recentes mostram que 90% do desmatamento o Brasil é ilegal e esse índice é semelhante o da exploração florestal.

Além disso, a maior parte da madeira saída da Amazônia, mais de 90%, é consumida dentro do próprio país, e não exportada.

“Nenhuma parte das cadeias de produção, dentro e fora do país, pode se declarar livre do problema da ilegalidade, seja ela uma empresa, comércio, consumidor e, obviamente, o governo. Se, juntas, essas partes apostarem em uma solução e atuação conjunta, todos ganham. Mas basta um desses elos não cumprir com seu papel que todos perdem”, diz a carta.

“O Brasil dispõe de conhecimento, informações e experiência suficientes para eliminar imediatamente a ilegalidade de sua produção e ir além. Mas isso só será possível quando todos os setores, públicos e privados, integrarem esforços, cooperarem e assumirem sua responsabilidade neste desafio”.

Análise

Deve-se louvar o interesse de Jair Bolsonaro pelo mercado ilegal de madeira. Entretanto, ao mencionar num encontro dos Brics a intenção de divulgar os nomes dos países destinatários de madeira extraída ilegalmente do Brasil, o presidente soou inadequado e parcial.

A inadequação se deve à escolha do palco. O tema não tem relação com a pauta do grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A parcialidade decorre do fato de que o presidente mencionou apenas uma ponta do problema. Esqueceu de tratar da origem do crime.

Como qualquer outra cadeia criminosa que envolve roubo e receptação, o comércio ilegal de madeira é uma via de mão dupla. Há criminosos em toda parte: numa ponta, há os desmatadores. No meio, os intermediários. Na outra ponta, os compradores da madeira ilegal.

Mal comparando, o crime é semelhante ao jogo de futebol. O sujeito pode ser o maior craque do mundo, mas não marca gol sozinho. Há toda uma estrutura por trás, preparando o gol.

Há o clube, o médico, o massagista, o treinador e o time em campo, armando a jogada para que o gol aconteça. No crime ambiental é igualzinho. Sob Bolsonaro, surgiu um complicador.

Com a desestruturação de órgãos de controle como o Ibama, sumiram das margens do campo os fiscais. É como se o governo, ao se desorganizar, desejasse oferecer condições especialíssimas para que o jogo não sofresse interrupções. Armada a jogada, os criminosos apenas fazem o gol, cometem o crime.

O súbito interesse de Bolsonaro pela venda de madeira ilegal será mais louvável se o presidente incluir na divulgação que anuncia, além dos nomes dos países destinatários, a identidade dos criminosos que atuam no Brasil.

Em 2017, ainda no governo de Michel Temer, uma operação da Polícia Federal apreendeu 120 containers com 2.400 m³ de madeira ilegal que seria vendida para Alemanha, Bélgica, Dinamarca, França, Itália, Holanda, Portugal e Reino Unido.

Portanto, a divulgação de nomes de países representará pouca coisa se não vier acompanhada de um rol de providências que Bolsonaro certamente adotará para punir os criminosos brasileiros.


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