28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Os indígenas nos ensinam sobre resistência e sobre esperança’, afirma Roberto Liebgott

Publicado em 16/11/2020 12:00 -

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Um dos organizadores do relatório “As violências contra os povos indígenas no Brasil”, produzido pelo Cimi, Roberto Liebgott diz que os dados sobre a violência contra os povos originários em 2019, "diferentemente de outros anos, indicam haver uma espécie de institucionalização das agressões". Segundo ele, essa situação se manifesta na "execução de uma antipolítica indigenista por parte do governo federal, que vem alicerçada no tripé da desconstitucionalização dos direitos, da desterritorialização dos povos e da tentativa de integração dos indígenas à sociedade majoritária".

 Na entrevista a seguir, ele analisa a situação dos povos indígenas à luz da pandemia de covid-19 e comenta os dados do relatório. "Pode-se dizer que o ato mais violento, no presente, é a premeditação do extermínio dos povos originários. O governo constituiu uma espécie de organização estatal para confrontar os direitos destes povos, ao invés de efetivá-los, e seu órgão indigenista serve, nesse contexto, como mediador das negociações pelo uso e exploração das terras", assegura.

Liebgott também comenta o marco temporal adiado no Supremo Tribunal Federal – STF. "É uma interpretação restritiva, pois pretende esvaziar a importância dos direitos dos povos indígenas às suas terras", diz.

Roberto Liebgott é coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Sul.

 

O que o mais recente relatório “As violências contra os povos indígenas no Brasil” revela? Qual seu sentimento diante desses dados?

Os dados das violências praticadas contra os Povos Indígenas, no ano de 2019, revelam a execução de uma antipolítica indigenista por parte do governo federal, que vem alicerçada no tripé da desconstitucionalização dos direitos, da desterritorialização dos povos e da tentativa de integração dos indígenas à sociedade majoritária. Chamo de antipolítica o conjunto de medidas e ações governamentais que contrariam direitos inscritos no texto constitucional e que fragilizam instâncias voltadas à proteção e promoção das formas de viver indígenas. Tem-se, assim, uma deliberada ação de desmonte de estruturas e de políticas que foram sendo consolidadas, ao longo de décadas, por meio da mobilização e da articulação dos povos e suas instâncias organizativas.

A desterritorialização diz respeito a tudo aquilo que limita o usufruto exclusivo das terras pelos indígenas e que se alicerça no anseio de liberá-las ao capital privado, estejam elas demarcadas ou não. Por um lado, o governo inviabiliza os procedimentos de regularização fundiária e, por outro, não coíbe as invasões, a exploração ilegal dos recursos, os desmatamentos, a grilagem, as queimadas, os loteamentos, os arrendamentos de terras.

A desconstitucionalização de direitos, em curso, consolida-se pela fragilização dos órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio da União (Incra, Ibama, Funai, por exemplo), pela implementação de medidas administrativas que criam obstáculos à ocupação dos territórios pelos indígenas, pela proposição de medidas legislativas voltadas à exploração de recursos ambientais e minerais e, ainda, pela tentativa de validação de teses jurídicas que restringem o alcance dos preceitos constitucionais – a exemplo do marco temporal, que comento adiante. Assim, entendo que está em curso uma ação genocida do governo federal, planejada para o extermínio indígena, que se implementa por meio desta antipolítica.

O nosso sentimento, quando analisamos os dados, é de revolta e indignação. Não vemos apenas percentuais das violências, mas vidas existentes sob o risco de morte. Os dados mostram os sujeitos, os indígenas, em agonia, porque têm suas terras devastadas pelas chamas do fogo, provocado por invasores sedentos pelo lucro farto e fácil; mostra as faces de desespero daquelas comunidades que entendem a dimensão destruidora dos incêndios e o desequilíbrio provocado quando o meio ambiente – com suas diversificadas formas de vida e de seres – é reduzido a cinzas.

Ao analisarmos os dados, não é possível conter a emoção diante do sofrimento de tantas comunidades ameaçadas; podemos pensar na angústia das noites maldormidas pelo medo de ataques e dos disparos de armas de fogo. Lembramos dos Mbya Guarani da Ponta do Arado e de Terra de Areia, no Rio Grande do Sul, que foram agredidos diversas vezes por homens armados durante as noites e as madrugadas. Lembramos, ainda, dos Guajajara, Apurinã, Kayapó, Kanamari, Mayoruna, Korubo, Tupinambá, Pataxó, Ava Guarani, Terena, Kaingang e tantos outros povos, vítimas de ameaças cotidianas. Os dados contêm histórias das feridas nos corpos agredidos, do choro sentido e silencioso de pessoas que resistem e defendem suas terras – esses redutos de natureza preservada. Quando avaliamos os dados, enxergamos neles as vidas assassinadas por homicidas mandantes e seus capangas, vemos o choro dos Kaiowá Guarani, dos Yanomami, diante dos corpos daqueles que morreram lutando. Quando analisamos os dados, vemos neles os rostos cansados de pessoas que nasceram, cresceram, construíram famílias e permanecem sob as lonas de acampamentos às margens das rodovias. Vemos, assim, a dor e o desamparo dos Mbya, Ava, Kaiowá e Kaingang. Quando vemos os dados, enxergamos neles as mulheres que acolhem seus filhos com febre em seus braços e sabem que não haverá tratamento médico, porque as equipes de saúde passam por lá de forma esporádica e o atendimento é paliativo.

Sofremos com as comunidades indígenas de áreas remotas, em cidades e periferias ou em áreas degradadas que não recebem assistência adequada. Nos dados deste relatório, está a morte por suicídios, provocados pela desesperança na vida, quando as condições atuais levam a crer que, nessa dimensão, só existe sofrimento, desespero e morte e, assim, parece não haver saída. Vemos também a precarização crescente dos ambientes que asseguram a um povo a coesão, a esperança e a força para viver.

É possível tipificar qual é o maior ato de violência praticado hoje contra os povos originários?

Os povos indígenas estão sendo agredidos de forma sistemática por um governo que se tornou seu principal algoz. Pode-se dizer que o ato mais violento, no presente, é a premeditação do extermínio dos povos originários. O governo constituiu uma espécie de organização estatal para confrontar os direitos destes povos, ao invés de efetivá-los, e seu órgão indigenista serve, nesse contexto, como mediador das negociações pelo uso e exploração das terras. Os dados de violência indicam que os ruralistas, os madeireiros, as mineradoras e os garimpeiros tornaram-se os principais interlocutores do governo em seu planejamento para a execução de medidas de supressão dos direitos da Lei Maior. Tais setores não medem esforços no sentido de promover a liberalização dos territórios para a especulação criminosa dos recursos ambientais, madeireiros, minerais, hídricos e do garimpo.

Quais as regiões do Brasil que apresentam os piores índices de violência contra povos indígenas?

Os dados das violências, em 2019, diferentemente de outros anos, indicam haver uma espécie de institucionalização das agressões. O governo autoriza as violências através de discursos contra a demarcação de terras, pela integração forçada e desqualificação dos indígenas como sujeitos de direitos, afirmando que os “índios estão se tornando cada vez mais humanos” e, portanto, seus direitos específicos e diferenciados seriam privilégios. A antipolítica de Bolsonaro tornou os povos originários e comunidades tradicionais, inimigos a serem combatidos. Os povos, neste contexto, ficaram em situação de absoluta vulnerabilidade, uma vez que o Estado, ao invés de protegê-los, tornava-se o agressor. Os incêndios criminosos tornaram-se uma prática e mostram as faces de dor dos povos da Amazônia (Acre, Amazonas, Pará, Amapá, Maranhão, Roraima, Rondônia, Mato Grosso), povos do Cerrado (Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Bahia), povos do Pantanal (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), que tiveram suas terras e vidas devastadas. Os dados deste relatório – em seu conjunto – mostram famílias obrigadas a migrar de um lugar para outro, porque a terra está sendo escavada e aniquilada pela ação de milhares de garimpeiros que, além dos riscos a que submetem as comunidades Yanomami, Munduruku, Makuxi, Surui, por exemplo, contaminam o ar, as águas e comprometem a qualidade de vida.

Os dados mostram o medo dos Karipuna, de Rondônia, ao ouvir, de suas aldeias, o ronco das motosserras, metáforas de destruição de uma natureza sagrada para todos os seres que nela habitam. Os dados mostram vidas ameaçadas de morte pelos grileiros e loteadores de terras. Mostram os Guajajara em sofrimento diante do assassinato de Paulinho Paulino, um dos Guardiões da Floresta no Maranhão. Mostram a angústia daqueles que perderam as terras para invasores e, apesar das constantes denúncias e reivindicações, o poder público nada fez ou fará para ampará-los. Ao contrário, os deixa às margens de rodovias ou em áreas degradadas, submetidos ao calor escaldante ou ao frio, que torna a vida insuportável. Os dados mostram a dor dos Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, dos Kaingang, Mbya e Ava Guarani, no Sul do Brasil. Mostram centenas de famílias indígenas sem terras, vivendo nas periferias de cidades ou em margens de rodovias. E, nesses lugares, quando existe alimentação, ela provém do esforço das próprias comunidades e/ou de doações feitas por pessoas ou organizações da sociedade civil. Os dados retratam rostos de crianças subnutridas, porque não há alimentação adequada, uma vez que estão alijados do direito à terra, e o Estado brasileiro, que deveria proteger suas vidas, suspendeu até mesmo as poucas cestas básicas que lhes seriam destinadas. Os dados mostram centenas de famílias Mbya, Ava, Kaiowá Guarani e Kaingang e suas crianças com feridas ao redor da cabeça, dos olhos e orelhas, porque não têm acesso à água potável para beber, banhar-se e lavar as roupas.

Que comunidades estão hoje mais fragilizadas pela violência? Como reverter esse quadro?

Há diferentes realidades de povos e comunidades no Brasil. Das 1.294 terras indígenas, 63% delas estão com procedimentos de demarcação paralisados e as demais, em geral, encontram-se invadidas. Ou seja, o contexto é de violência cotidiana, tanto daqueles que vivem em terras demarcadas, como daqueles que lutam por elas. A antipolítica indigenista de Bolsonaro vulnerabilizou, do Sul ao Norte, as comunidades, porque, para além das demandas fundiárias, promoveu-se o esvaziamento das ações assistenciais, comprometendo a subsistência das famílias, suas condições nutricionais, de saúde e educação.

Registra-se, portanto, uma escalada sem precedentes de ataques aos territórios, inclusive com a venda de lotes de terra em áreas demarcadas. Houve um crescimento inédito das invasões e danos ao patrimônio indígena: foram 256 casos, 135% a mais do que no ano anterior, que atingiram 143 povos e 151 terras indígenas, em 23 estados. Essas invasões referem-se a uma série de danos, tais como a exploração ilegal de madeira, garimpos, pesca e caça predatórias, incêndios, loteamento ilegal de terras, grilagens; invasões para formação de fazendas agropecuárias e para empreendimentos de infraestrutura rodoviária, ferroviária e energia elétrica. Também, houve contaminação de águas e alimentos por agrotóxicos e 35 registros de conflitos territoriais. Além disso, houve 113 assassinatos, 24 tentativas de assassinato e 33 ameaças de morte contra indígenas. Dos 133 suicídios registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai, a maioria afeta jovens, entre 14 e 29 anos, do sexo masculino. A desassistência à saúde resultou em 825 mortes de crianças, entre 0 e 5 anos, por causas tratáveis, na maior parte dos óbitos.

Além do registrado em 2019, o descaso em relação à saúde desses povos também tem se refletido de maneira bastante severa no combate à pandemia da covid-19. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib, até o dia 20 de outubro o vírus já havia chegado a 158 povos, com 37.219 indígenas infectados pelo novo coronavírus e 856 óbitos ocasionados pela doença. Em Mato Grosso do Sul, um dos estados com os maiores índices de contágio, são 2.400 infectados; no Maranhão, até o momento, foram 1.533 casos e 27 mortes. As lideranças indígenas do estado do Maranhão relatam problemas como a falta de medicamentos, remédios vencidos, má distribuição de recursos e de equipamentos de proteção individuais. Faltam inclusive caixões para enterrar os mortos.

O ano de 2020 foi marcado pelas queimadas na região amazônica e pantaneira. Como essas ocorrências atingem os indígenas? E o que esses atos revelam sobre as disputas por terra?

O Conselho Indigenista Missionário vem realizando coleta de dados e informações acerca das violências contra os povos e seus territórios no ano de 2020. Os dados preliminares apontam que as queimadas, somando-se às invasões de garimpeiros e madeireiros, são avassaladoras. Foram destruídas, em alguns meses, partes significativas de biomas que jamais serão recuperados. As vidas, nesses lugares, foram extintas. A terra ficou sob as cinzas das matas e dos demais seres que sucumbiram. Pratica-se no país, além do genocídio dos povos, o ecocídio, ou seja, o extermínio deliberado dos ecossistemas. O governo Bolsonaro, de forma simultânea, ataca a natureza, expandindo a devastação, ataca os povos originários, destruindo seus direitos, terras e as vidas e promove ações que relativizam os impactos da pandemia que mata cotidianamente, desde abril, centenas de pessoas. Ou seja, há no Brasil, com o silêncio dos Poderes Públicos, uma organização, por dentro do governo, que ataca, articuladamente, todas as formas de vida no país.

Neste ano, o setor da mineração obteve uma série de medidas que favoreceram suas atividades. Quais os impactos desse afrouxamento da legislação nas comunidades? O garimpo é hoje uma das maiores ameaças aos indígenas?

A Constituição Federal proíbe atividades garimpeiras em terras indígenas e condiciona as atividades minerárias a uma lei específica, mediante autorização do Congresso Nacional e ouvidas as comunidades afetadas. Mas, apesar das regras constitucionais, acompanhamos uma escalada sem precedentes de invasão garimpeira em áreas indígenas, demarcadas ou em demarcação, especialmente nas terras Yanomami, Raposa Serra do Sol, Munduruku e dezenas de outras. Há centenas de requerimentos apresentados por empresas de mineração que pretendem exercer exploração em terras indígenas, mas estas ainda são impedidas na ausência de lei complementar. Ao que parece, o garimpo, que é ilegal, torna-se uma espécie de porta de entrada para posterior implementação minerária.

O garimpo, em terras indígenas, constitui-se em processo devastador das terras, do meio ambiente e dos modos de ser e viver das comunidades. Há, como mais um agravante, uma forte articulação dos setores que promovem o garimpo, junto ao governo Bolsonaro e às bancadas parlamentares dos estados da Amazônia. Eles reivindicam a liberalização da exploração. O presidente da República, como não tem poder autorizativo, atua no sentido de apoiar as reivindicações e incentiva as invasões. Esse tipo de posicionamento tem sido, neste contexto, o detonador das invasões e responsável pelo aumento dos índices das violências contra a pessoa, contra a saúde e o patrimônio público.

Outra marca de 2020 nas comunidades indígenas é a pandemia de covid-19. Como o senhor analisa os avanços e as máculas da doença nos índios?

A realidade dos povos indígenas, no contexto da pandemia da covid-19, tornou-se ainda mais dramática, uma vez que se soma a um contexto anterior de graves e profundas violências praticadas contra suas vidas e seus territórios. E quando a pandemia se instalou no Brasil e, em consequência, também nos territórios e comunidades indígenas, não havia nenhum tipo de planejamento para assegurar a proteção e controle do vírus, a não ser o de se exigir o isolamento voluntário de todas as pessoas. E assim efetivamente se fez; no entanto, a precariedade das condições sanitárias e de saneamento básico denunciou a vulnerabilidade das comunidades para enfrentarem a pandemia e assegurarem as condições de subsistência. Nelas, em geral, não há água potável e as habitações são precárias. Não há saneamento básico e as infraestruturas para atendimento aos doentes estão absolutamente precárias. Faltam profissionais de saúde, equipamentos, medicamentos e transporte. Ou seja, o quadro é de uma dramaticidade que pode levar ao genocídio dos povos.

Em função desse contexto, se faz necessário: o fortalecimento do protagonismo indígena no planejamento, implementação e execução da política de saúde; a implementação de programas que assegurem saneamento básico e água potável nas comunidades; o fortalecimento do controle social em âmbito local, distrital e nacional; a ampliação dos quadros de profissionais de saúde nas equipes, que atuam nos distritos e nos polos base; investir, prioritariamente, na capacitação de equipes para atuação nas ações preventivas junto às comunidades; promover a ampliação das infraestruturas físicas dos postos de saúde nas aldeias e aquisição de equipamentos médicos e melhoria das condições de transporte; assegurar que os agentes indígenas de saúde tenham formação permanente, qualificada e sejam reconhecidos como profissionais de saúde; valorização e respeito às medicinas tradicionais e dos saberes indígenas, bem como dos líderes espirituais que tratam da saúde e das doenças nas comunidades; e implementação de uma política nutricional, de modo especial, para atender aquelas comunidades que vivem em situação de acampamentos ou em áreas degradadas.

A morte por covid-19 deixa marcas profundas por não se poder velar devidamente o ente falecido. Como isso tem impactado os modos de vida de povos originários?

O coronavírus surge como mais um grave problema e somou-se aos demais enfrentados cotidianamente por povos indígenas e por outras comunidades originárias e tradicionais. A situação de alerta e de risco à vida, que todos enfrentamos nestes tempos de pandemia, é agravada, no caso dos povos indígenas, em função de alguns fatores, em especial a omissão e negligência criminosa dos gestores do Estado, que não demarcam e regularizam os territórios, ou que permitem, tácita ou expressamente, que ocorram invasões em áreas demarcadas, naquelas dos povos em situação de isolamento e risco, bem como nas que estavam com procedimentos de demarcação em andamento e foram paralisados.

Há, ainda, que se considerar que o governo promoveu a desestruturação das políticas públicas, esvaziando os serviços e provocando reformulações e rearranjos com o intento de impedir, no caso da saúde indígena, que na base do Subsistema, que são os distritos sanitários especiais, haja participação e controle social dos povos indígenas. Bolsonaro, logo que assumiu a Presidência, pretendeu a transferência da gestão da política de saúde indígena para municípios ou para a iniciativa privada. O governo, num curto espaço de tempo, investiu na mudança do modelo de atenção à saúde indígena, rompeu com o programa “Mais Médicos”, por meio do qual se assegurava a presença de médicos em atendimento às populações, e colocou sob suspeição e desconfiança a gestão e o uso dos recursos financeiros por parte de governos anteriores e dos prestadores de serviços terceirizados.

É, portanto, dentro de um processo de desmonte da política de atenção à saúde indígena, que a pandemia da covid-19 chegou ao Brasil. Em função dela se tornou ainda mais visível a falta de profissionais – especialmente médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e epidemiologistas –, a ausência de infraestrutura para atendimento nos postos de saúde, em polos base, a precariedade dos equipamentos para o enfrentamento de endemias e epidemias. A chegada da covid-19 também evidencia as frágeis estruturas de comunicação e de informação, mostra que não foram tomadas medidas imediatas de esclarecimento das populações indígenas quanto a essa pandemia, ficando a atribuição sob a responsabilidade de equipes de agentes de saúde.

A pandemia afeta, muito particularmente, comunidades que não têm terras demarcadas ou aquelas que habitam áreas devolutas, muitas vezes degradadas e que estão há muito tempo em situação de vulnerabilidade, pois lhes falta saneamento básico, água potável, alimento, espaço para sustentar adequadamente suas formas de vida. Há famílias que não têm o que comer, pois o governo federal, que em períodos anteriores mantinha uma política assistencial para comunidades vulneráveis, deixou de fornecer cestas básicas já faz alguns meses. Em parte, a subsistência destas famílias era obtida com a venda de artesanato, o que se tornou inviável com a pandemia. Como viver sem terra, nas margens de rodovias, sem habitação adequada, em barracos improvisados e, ainda assim, enfrentar uma pandemia?

É necessário enfatizar que a situação dos povos indígenas, de Sul a Norte do país, é bastante grave. Nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, muitas comunidades estão excluídas do direito à terra, sem água para beber, para banhar-se, lavar roupas e utensílios, preparar os alimentos e cozinhá-los. Na região Norte, a maioria da população vive em suas terras, mas estas são invadidas, são devastadas e muitas comunidades estão submetidas a violências físicas, ameaças de morte e homicídios. Num contexto como este, é difícil proteger-se da pandemia, pois nestas terras circulam grileiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros que, para além das ameaças usuais, ainda podem ser disseminadores da pandemia.

As sequelas da pandemia permanecerão entre os povos indígenas. Mais de 150 povos foram afetados pela doença. Centenas de pessoas (dados da Apib indicam quase 900 óbitos) morreram e milhares adoeceram. No Brasil, o número de populações indígenas se aproxima de um milhão de pessoas; destas, quase 40 mil adoeceram até o início de novembro de 2020. Habitam o Brasil 305 povos diferentes e uma importante parcela populacional vive em regiões próximas às cidades ou em contexto urbano. Todas as comunidades acabaram afetadas diretamente ou simbolicamente. A doença também atingiu o modo de ser, suas tradições, crenças, costumes, as culturas e as relações sociais entre os povos e com a sociedade envolvente.

Os rituais fúnebres também foram afetados, já que em algumas regiões não houve a possibilidade de se realizar o enterro dos mortos conforme suas crenças e ritos. Isso gerou, entre povos, graves preocupações, dado que em algumas culturas há necessidade de rituais para que a pessoa consiga fazer sua passagem dessa dimensão terrena para a espiritual. Há, além de tudo, o aumento do preconceito aos povos em função da pandemia; em geral, as pessoas tratam os indígenas com desconfiança e até demonstram receios e medos quanto a uma possível aproximação. Esse fato vem sendo registrado por comunidades Mbya e Kaingang localizadas próximas às cidades.

Há poucas semanas, o Supremo Tribunal federal deveria ter julgado a validade do Marco Temporal, a partir do caso de uma comunidade de Santa Catarina. O que esse processo representa? Como o senhor compreende o adiamento desse julgamento?

Em 05 de outubro de 1988 foi promulgada a nossa Constituição Federal, caracterizada como Carta Cidadã. Nela, os Constituintes fizeram constar como garantias permanentes os direitos fundamentais de todas as pessoas inscritos entre os artigos 5º e 17º da CF. Estes, somam-se aos direitos humanos – a vida, liberdade, igualdade, livre expressão, segurança – que, obrigatoriamente, precisam ser reconhecidos, aceitos e aplicados. Tomando como referência os direitos fundamentais e os posicionamentos de ministros do STF, no que se refere aos direitos indígenas, percebe-se que não há como prosperar nenhuma tese jurídica que busque desfazer o entrelaçamento entre os direitos fundamentais, humanos e indígenas. Não progride, portanto, a tese do marco temporal da Constituição Federal de 1988, que visa impor limites ao reconhecimento do direito à demarcação das terras para os povos indígenas no Brasil. Por essa tese, os povos somente poderiam pleitear que se realizem estudos de identificação e delimitação de áreas requeridas se estivessem em sua posse na data da promulgação da Lei Maior do país (05 de outubro de 1988). E, se não a ocupavam, ao menos deveriam disputá-las física ou juridicamente.

Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal, essa é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências praticadas contra os povos ao longo da história. Além disso, essa posição ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos.

O Supremo Tribunal Federal agendou para o dia 28 de outubro o início do julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365, relativo a um processo contra uma parcela da demarcação da Terra Lá Klaño, do povo Xokleng, de Santa Catarina. Mas no dia de 22 de outubro de 2020, o presidente do STF, Luiz Fux, decidiu retirar da pauta de julgamento. Esse processo foi caracterizado como sendo de repercussão geral já que, a partir dele, haverá um entendimento jurídico quanto à manutenção dos direitos indígenas, conforme estabelece a CF de 1988, ou seja, que os povos indígenas têm direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, direitos estes inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis.

Os ministros do STF poderão também, a partir desse julgamento, referendar o antidireito, mediante a tese política do marco temporal, que foi forjada para impor a prevalência dos interesses econômicos sobre os direitos indígenas, uma vez que se criou a versão de que povos indígenas podem requerer, tão somente, a demarcação de áreas de terras se nelas estivessem vivendo no dia 05 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição Federal.

Espera-se que esse julgamento fixe orientações e regramentos para fundamentar as decisões de todos os processos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do Poder Judiciário. Há nos tribunais muitas demandas possessórias sobre demarcações de terras tradicionais. Também há projetos e propostas legislativas que visam relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Acredita-se que a decisão servirá para balizar, harmonizar e delimitar as políticas para os povos indígenas no âmbito da administração pública federal, bem como nos estados e municípios.

Ao acolher a repercussão geral, a Suprema Corte deve admitir que há necessidade de uma solução definitiva para as demandas indígenas. Serão debatidos e julgados, nesse processo de repercussão geral, a conceituada teoria do indigenato e a tese do marco temporal. O indigenato vincula-se a uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O marco temporal é uma interpretação restritiva, pois pretende esvaziar a importância dos direitos dos povos indígenas às suas terras, tentando impor uma data base e limitadora do alcance constitucional. Ou seja, parece haver, a partir dessa tese, a intenção de que os direitos indígenas somente teriam validade no passado, inviabilizando-se seu reconhecimento no futuro. Pretende-se, a rigor, impor uma lógica inversa às pretensões do direito constitucional, que visa normatizar as regras e condutas a partir de sua promulgação, direcionada ao futuro.

Sobre o adiamento do julgamento, não há uma razão específica apresentada. De todo modo, o ministro Luiz Fux pode ter retirado de pauta até que haja a posse do ministro que ocupará a vaga de Celso de Mello. A indicação do novo ministro ocorreu recentemente, tendo sido escolhido, pelo presidente Bolsonaro, o desembargador federal que atuava no TRF1, em Brasília, Kassio Marques.

A segunda razão, que pode ter influenciado o presidente do STF Luiz Fux a adiar o julgamento, foram as pressões políticas de ruralistas, de empresários da mineração e do próprio governo federal, que desejam explorar as terras indígenas, mas, neste momento, avaliaram que a composição do STF apontava uma forte tendência de que se julgaria esse processo seguindo os balizamentos constitucionais e, portanto, diante desse contexto, optaram pelo recuo tático, até a posse do novo ministro.

A terceira razão foi a intensa mobilização dos povos indígenas em torno do julgamento. Há muito tempo não se via tamanha comunicação e articulação dos indígenas, de modo espontâneo e virtual, desde lá, das longínquas aldeias, acampamentos, áreas improvisadas e até demarcadas, propagando suas opiniões, acerca do julgamento, para o Brasil e para o mundo. Foram incontáveis as manifestações pela manutenção da Constituição Federal, pela garantia dos direitos originários e em defesa da vida, da terra e da natureza. De todos os lugares, de quase todas as terras indígenas, foram divulgadas mensagens de vídeos, áudios, cartas, documentos exigindo a manutenção dos direitos e contra o marco temporal. As falas, as rezas, os rituais, os apelos de líderes religiosos, de caciques, de homens e mulheres, de jovens, adolescentes e crianças indígenas percorrem o Brasil e o mundo, anunciando que, apesar da pandemia e dos desafios impostos pelo governo brasileiro, os povos fiscalizam, monitoram e lutam pelos seus direitos à terra. Talvez essa, dentre as demais razões pelo adiamento do julgamento, seja a mais relevante e expressiva. Os ministros estavam sendo alertados, pelos povos indígenas, de que o marco temporal é mais um instrumento para o genocídio. Os ministros, certamente, acompanharam esse movimento de vida, luta e resistência dos povos.

Confia-se que o STF julgará o processo de repercussão geral tendo como horizonte o fato jurídico de que os direitos constitucionais dos povos indígenas são originários e, assim como os direitos fundamentais de todos os seres humanos, são inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis. Ou seja, não existe nenhuma possibilidade de haver compatibilidade entre os preceitos constitucionais vigentes com a tese falaciosa do marco temporal. O STF, com esse julgamento, terá a oportunidade de fazer justiça e romper definitivamente com a insegurança jurídica que atormenta os povos indígenas, tendo em vista que ela estimula e abre caminhos para a amplificação dos conflitos e das violências em todo o país.

Por que a sociedade continua ignorando a realidade e o drama dos povos indígenas?

Podemos dizer que há segmentos sociais distintos, para os quais a questão indígena tem apelos diferentes. Temos uma polarização em termos de posicionamentos. Há um crescente número de pessoas manifestando-se em redes sociais virtuais em favor dos direitos indígenas – essas manifestações se dão por meio de produção de conteúdo, pela vinculação a campanhas, pelo compartilhamento ou pela manifestação de adesão (por meio de “curtidas”) a postagens feitas pelo movimento indígena e por entidades de apoio. Trata-se, assim, de um ativismo que tem base individualizada, que não requer maior envolvimento, mas que traduz, de certo modo, uma disposição favorável aos direitos territoriais indígenas e, de modo especial, à preservação ambiental. Além disso, esses ativismos por vezes deflagram campanhas de assinaturas em defesa dos povos indígenas, manifestos contra a tese do marco temporal, campanhas de embargo a produtos e a empresas denunciadas por desmatamento ou exploração de recursos em terras indígenas.

Mas há outros segmentos que também se manifestam, que reagem, mas num sentido inverso – rechaçando as lutas, banalizando os sofrimentos e disparando contra os povos indígenas “pesado arsenal” discursivo por meio do qual se propagam o ódio, o racismo e o preconceito. Nestes dois casos, não há indiferença em relação às questões que afetam as vidas indígenas, mas é possível entender que o modo como as pessoas são afetadas externaliza projetos políticos e éticos divergentes.

Há, entretanto, aqueles que continuam a tratar os problemas enfrentados pelos indígenas como questões menores. Isso deriva de um tipo de racionalidade autocentrada, que desconsidera as redes de interdependência entre sujeitos e coletividades dentro de uma sociedade. Esse olhar distante e descompromissado não se direciona apenas aos povos indígenas, mas também a outros grupos sociais que vêm gradativamente sendo precarizados, empobrecidos, marginalizados, discriminados e desrespeitados neste nosso tempo. Trata-se de uma indiferença diante da dor dos outros.

O que os indígenas podem nos ensinar nesses tempos de pandemia, especialmente sobre esperança, respeito e equilíbrio com as demais formas de vida do planeta?

Eles nos ensinam sobre resistência e sobre esperança, porque são resistência – assim tem sido, assim seguirá sendo! Eles podem nos ensinar a resistir e, com eles, resistiremos. Os povos indígenas podem religar, para nós, os fios que deixamos de considerar na trama da vida – os fios do parentesco, os fios da reciprocidade, os fios da relação zelosa com a terra e com o ambiente, que abriga e sustenta a vida. As experiências sustentáveis que estes e outros coletivos tradicionais constroem historicamente podem orientar nossas escolhas futuras e assegurar a existência humana.

Os povos indígenas nos ensinam sobre uma convivência solidária e comprometida – para alguns povos com os quais tenho trabalhado, este mundo não pertence a nós, ele é espaço para compartilharmos, para nos movimentarmos e para aprendermos. O espaço, o tempo, o viver compartilhado é nossa condição comum.

Comprometer-se, portanto, é colaborar no combate às injustiças, aos privilégios e a todos os mecanismos que oprimem. Nossa causa comum tem que ser humanitária, ética, comprometida com o bem viver de todos e com o respeito profundo pelas diferenças. As lutas indígenas não são uma questão à parte, desvinculada dos grandes desafios do mundo contemporâneo, elas emolduram uma luta urgente e ampla pela construção de outros modos de viver que possam tornar viável a nossa sobrevivência no planeta.


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