16/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Partidos brasileiros não estão preparados para trabalhar questão racial em eleições’

Publicado em 16/11/2020 12:00 -

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Os partidos políticos são o principal entrave à eleição de candidatos negros, afirmam os cientistas políticos Luiz Augusto Campos e Carlos Machado, que há cinco anos se debruçam sobre a relação entre raça e o sistema político e eleitoral brasileiro. E é sobre os partidos que há – e deve haver – pressão social para que surjam mudanças.

O resultado das pesquisas está compilado em “Raça e eleições no Brasil”, da editora Zouk, anunciado como a primeira obra no país a se dedicar exclusivamente ao assunto e já em pré-venda. Sobre os achados das pesquisas que resultaram no livro, Campos e Machado conversaram com o Intercept às vésperas da eleição municipal.

É nas eleições proporcionais, como as de vereadores, que está o foco da pesquisa. “A lógica aí é meio parecida à desses esquemas de pirâmide. A base empurra o topo, mas, na verdade, não tem nenhuma chance de se eleger”, Campos compara. “No sistema proporcional, uma candidatura tem que ter uma quantidade muito expressiva de votos para se eleger. E, para isso, tem que acumular uma série de recursos dos mais diversos.”

Recursos, aí, incluem dinheiro para campanha, acesso ao tempo na propaganda de televisão ou até mesmo segurança pessoal. Assim, pouco adianta que a maioria dos candidatos seja negra, como ocorreu pela primeira vez em 2020. Eles provavelmente serão a minoria entre os eleitos.

“Um número muito limitado de candidatos concentra a oportunidade de aparecer ao eleitor, seja em horário de televisão, santinho ou mesmo de circular no espaço urbano onde as eleições vão acontecer. Essa disputa profundamente desigual reflete desigualdades sociológicas entre brancos e negros”, Campos explica. As elites partidárias são, quase sempre, brancas – e são elas que controlam, no Brasil, a definição das candidaturas e a distribuição dos recursos para as campanhas.

A desigualdade é tão explícita que o Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, responsável por definir as regras para as eleições no Brasil, resolveu obrigar os partidos a dividirem o dinheiro do fundo eleitoral (que financia as campanhas políticas) de maneira proporcional à quantidade de candidatos brancos e não-brancos.

Para os cientistas, é um primeiro passo, mas “enquanto a gente não falar em cota nas listas partidárias [de candidatos], não vamos conseguir garantir que partidos grandes, em pleitos específicos, lancem candidatos [não brancos]”, avalia Campos.

“O estado brasileiro é gerido por uma representação política composta basicamente por homens brancos, e produz políticas públicas que atuam, para o bem e para o mal, sobre a população negra. É ela o principal alvo do braço repressivo do estado. Então temos uma espécie de democracia que funciona de uma maneira racializada e invertida, com homens brancos discutindo, debatendo e produzindo serviços e repressão para homens negros e mulheres negras”, ele afirma.

“Não há nenhuma garantia de que os representantes eleitos irão espelhar o que é a sociedade. Isso demanda um componente, que eu tendo a ver como mais democrático, que é pressão popular para que isso ocorra. O processo que temos visto nos últimos anos, a luta dos movimentos sociais, do movimento negro, para cobrar uma maior presença de candidaturas negras, de financiamento [para elas], isso tudo diz respeito a esse processo. O aspecto democrático decorre disso, não da simples realização das eleições, que escondem várias desigualdades”, diz Machado.

Luiz Augusto Campos é professor de sociologia e ciência política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde também coordena o Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, o Gemaa.

Carlos Machado é professor de Ciência Política no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o projeto de extensão Ubuntu: Frente Negra de Ciência Política e o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán: representações, conflitos e direitos.

Leia os principais trechos da entrevista.

 

A pesquisa de vocês identificou o acesso a partidos políticos fortes e ao financiamento de campanha como os dois principais gargalos para a ascensão política de candidaturas pretas e pardas viáveis. Vamos começar pela questão dos partidos: vocês apontam que os mais consolidados dão menos espaço a candidaturas não-brancas, que com isso acabam relegadas a partidos menores e eleitoralmente mais fracos. Como isso se dá na prática?

Luiz Augusto Campos – A gente precisa de mais pesquisas, mas nossa hipótese é que partidos mais consolidados tendem a ter elites políticas mais consolidadas, mais fortes interna e externamente, que tendem a ser brancas. Tem também uma lógica da própria atuação estratégica do partido: os gestores querem que seus candidatos sejam eleitos. Para isso, tendem a buscar padrões de candidatos que tenham mais “chances eleitorais”, entre aspas. Quando eles olham para o passado em busca disso, veem basicamente homens brancos sendo eleitos. E aí tendem a reproduzir esse padrão racializado.

Carlos Machado – Olhando para resultados de eleições anteriores, temos uma restrição muito grande de candidatos e candidaturas negras competitivas. Então naturalmente é difícil ver esse perfil [de candidaturas] tendo possibilidade de conseguir obter votação e ser eleito.

Existe relação entre democracia e desigualdade racial? A alegada meritocracia que a sociedade brasileira valoriza se repete no acesso aos partidos, às candidaturas? Isso impede que o sistema político reflita a diversidade social brasileira?

Campos – A desigualdade racial inibe o desenvolvimento da democracia brasileira de várias formas. Primeiro, de formas mais institucionais. Se temos um universo de candidatos que não competem em pé de igualdade, então há um viés discriminatório racial muito evidente, que reduz o grau de democracia do nosso regime representativo. Para além disso, o estado brasileiro é gerido por uma representação política composta basicamente por homens brancos. Esse mesmo estado produz políticas públicas e atua, para o bem e para o mal, sobre a população negra. Quando a gente pega o braço protetivo do estado, os serviços de educação e de saúde, a gente está falando de serviços que são usufruídos em grande medida pela população negra. Mas a população negra também é o principal alvo do braço repressivo do estado. Então temos uma espécie de democracia que funciona de uma maneira racializada e invertida, com homens brancos discutindo, debatendo e produzindo serviços e repressão para homens negros e mulheres negras.

Machado – Há um componente adicional. A ideia de representação política [da democracia brasileira] implica que se consiga definir um conjunto de representantes da sociedade, mas não há nenhuma garantia de que esses representantes irão espelhar o que é a sociedade. Isso demanda um componente, que eu tendo a ver como mais democrático, que é pressão popular para que isso [a representação da diversidade social brasileira na política] ocorra. O processo que temos visto nos últimos anos, a luta dos movimentos sociais, do movimento negro, para cobrar uma maior presença de candidaturas negras, de financiamento [para elas], isso tudo diz respeito a esse processo. O aspecto democrático decorre disso, não da simples realização das eleições, que escondem várias desigualdades.

Vocês identificaram não apenas uma desigualdade geral na distribuição de financiamento de campanha entre brancos e não-brancos, mas que ela cresce justamente dentre as candidaturas mais competitivas e com mais chances eleitorais. Como isso funciona?

Machado – O fato de termos um sistema de representação proporcional [nas câmaras municipais, assembleias legislativas e distrital e Câmara dos Deputados] às vezes dá a leitura de que estamos elegendo pessoas que não tiveram uma votação elevada. Mas não é verdade. Quando a gente olha para a competição política no sistema proporcional e de listas abertas que a gente tem, vê que uma candidatura tem que ter uma quantidade muito expressiva de votos para se eleger. E, para isso, tem que acumular uma série de recursos dos mais diversos, seja numa concepção social, como o acesso a determinadas redes de relacionamento social, ou a recursos de campanha, como você citou. É a partir disso que a gente consegue localizar quem de fato vai ter chances de se eleger. Nem toda pessoa que está na disputa política tem chances de se eleger, mas apenas as que façam parte de um perfil que acumule uma quantidade maior desses elementos e que vão depois se reproduzir em votos. Quando a gente está falando da desigualdade na distribuição de recursos, está pensando no impacto da desigualdade de competição entre as candidaturas. Um grande problema na leitura do sistema político brasileiro é entender que as candidaturas deveriam ter [condições de concorrer] em algum grau de igualdade, que não existe. Isso vai sendo expresso durante o contexto da campanha.

Campos – Em termos mais práticos, outra característica do sistema eleitoral brasileiro é que a gente tem muito candidato para pouca vaga. Se a gente pega as eleições municipais do Rio de Janeiro, temos 1.800 candidatos a vereador disputando 55 vagas. Ou seja, é uma concorrência gigantesca. Além disso, como o Machado mencionou, esses candidatos não têm a mesma quantidade de tempo na TV ou de recursos [para campanha] – ao contrário, há uma desigualdade enorme. Isso faz com que a competição aconteça só entre candidaturas viáveis, algo entre 20% e 30% do total. Ou seja, nesse exemplo do Rio de Janeiro, algo em torno de 400, 500 candidaturas. O resto [dos candidatos] praticamente não participa da competição eleitoral, tem uma chance próxima de zero. E os negros são maioria nesse resto. Na competição de fato, entre as candidaturas viáveis, aí homens negros são minoria – e mulheres negras mais ainda.

Vocês apontam que a defasagem de negros eleitos é maior que a de candidatos negros. Isso revela, segundo a pesquisa, que entre a nomeação de um candidato e a eleição dele segue a existir um ‘filtro mais potente para a restrição de não-brancos do que aquele operado para a apresentação nas listas partidárias’. Em outras palavras, que nossa democracia permite candidaturas negras mas segue a bloquear a eleição de negros. Como isso se dá?

Machado – São múltiplos fatores, mas acho que o aspecto central é a compreensão de em quais partidos políticos essas candidaturas estão. Não adianta só ser candidato, é preciso ser candidato por um partido que tenha chances na eleição. E não só isso: o candidato precisa estar no topo da lista dos mais votados daquele partido. É estratégico compreender em quais partidos os perfis de candidatos não-brancos estão. De forma geral, os partidos que poderíamos ver como menos refratários a essas candidaturas são os de pequeno porte. Neles, você pode ter grande quantidade de candidaturas [de negros], mas que no final das contas não serão eleitas. Por isso, temos que olhar para os partidos de maior porte, em que as [proporções de] candidaturas não-brancas são reduzidas. Há variação ao longo dos anos, mas ainda assim, em 2018, os partidos maiores permanecem tendo maioria de candidaturas brancas, que também têm mais acesso aos recursos de campanha. E em 2018 a maior parcela dos gastos de campanha – ao menos os registrados – é de recursos públicos.

Campos – Tem uma metáfora muito usada em que a eleição é um livre mercado de candidatos em que os eleitores são os consumidores. Ou seja, como [na eleição] se a gente entrasse em um “supermercado político” e pudesse escolher os melhores candidatos do mesmo jeito que escolhemos produtos de acordo com nossas preferências. Só que essa metáfora ignora que esse mercado político é profundamente desigual. Um número muito limitado de candidatos monopoliza, concentra quase que totalmente o acesso ao eleitor, ou seja, o acesso à oportunidade de aparecer, seja em horário de televisão, santinho ou mesmo de circular no espaço urbano onde as eleições vão acontecer. Essa disputa profundamente desigual reflete desigualdades sociológicas entre brancos e negros.

E candidatos mais ricos tendem a ser brancos. Atualmente, a riqueza pessoal se tornou muito importante nas eleições, porque o candidato pode investir uma parte substantiva dos seus recursos pessoais [na própria campanha]. Mas há desigualdades próprias do sistema político. Por exemplo, candidatos que já foram eleitos no passado têm vantagens absurdas em relação aos demais.

Um dado do livro: em 2014, partidos pequenos como PTN, PSL (que naquela época não era o partido do Bolsonaro) e PSDC tiveram mais negros candidatos, proporcionalmente, que PSB e PT – que, como PSDB, MBD e DEM, dão a brancos algo como 70% de suas candidaturas. É um dado que parece se chocar com a percepção natural que temos de ver a agenda de partidos de esquerda como naturalmente alinhada ao movimento negro. Existe o elemento ideológico no bloqueio a candidaturas de não-brancos?

Machado – Tem um elemento ideológico, mas o elemento central é o tamanho do partido. Porque você citou partidos pequenos de direita, mas também há vários partidos pequenos de esquerda que vão ter exatamente esse perfil. Por isso, acho que falar de ideologia aí é complicado. Tanto é que é interessante notar que o PSL, quando deixa de ser um partido pequeno, em 2018, vemos um crescimento de candidaturas brancas muito evidente ante 2016. E, quando olhamos para os partidos de maior porte, o PT indubitavelmente é o que tem mais abertura para candidaturas não-brancas, com uma diferença percentual sensível ante os demais. Os partidos sofrem influência e pressão para a inclusão [de candidaturas e de representação] de diferentes setores da sociedade. O PT é mais aberto a isso do que outros partidos de maior porte.

E partidos de esquerda em geral, imagino, são mais permeáveis ao movimento negro.

Machado – Exato. E não apenas ao movimento negro, mas aos movimentos sociais de forma mais ampla. Pois há uma questão: às vezes a entrada da candidatura negra [num partido] não necessariamente representa uma vinculação com o movimento negro. Há um estudo muito interessante da Flavia [Mateus] Rios que vê a conexão entre movimento negro e partidos políticos meio cambaleante nos últimos anos. Quando se olha para esses partidos de direita e de menor porte, como PSL, PSC, PSDC, PR, PRB, todos têm uma veia religiosa forte. Então, a entrada de candidaturas neles não se dá via pressão de movimentos sociais, mas pelo perfil religioso [do candidato]. Isso leva ao cuidado necessário para não estereotipar o que é a participação política da população negra. Você tem diferentes perfis, à direita e à esquerda, que compõem o que é a população negra na política, inclusive com essa pegada mais religiosa nesses partidos que eu estou citando.

Campos – Acho que tem outro elemento aí que é importante destacar: no sistema brasileiro, o partido pequeno tem que formar um quociente eleitoral para ter chances na eleição. Precisa, além de candidatos bem votados, fazer um bolo, uma soma total de votos que garanta a ele um número de cadeiras [num parlamento]. Assim, em geral, eles tentam lançar tantos candidatos quanto conseguirem, porque se cada um conseguir uns poucos votos, o bolo final cresce. Isso acaba dando mais oportunidades de candidatura para lideranças sociais que não são necessariamente muito conhecidas. Isso faz com que os pequenos partidos sejam um espaço para novos atores entrarem em cena, e aí a presença de negros é importante. Mas esse partido provavelmente vai conseguir uma, duas, três vagas no máximo na eleição. E quem vai ficar com elas é quem já está no topo dessa lista. Então, ainda que esses partidos tenham muitos negros candidatos em comparação aos partidos maiores, acabam elegendo efetivamente menos negros do que os outros. A lógica aí é meio parecida à desses esquemas de pirâmide. A base empurra o topo, mas na verdade não tem nenhuma chance de se eleger.

Machado – Isso aí é a expressão da eleição. A eleição é uma experiência de pirâmide. Isso que o Campos falou, na minha interpretação, funciona ainda melhor nos partidos de grande porte. Os partidos pequenos às vezes não elegem ninguém. Mas o grande sim. Então, mesmo eles dependem dessa mobilização. É nisso que as candidaturas negras, de uma forma ou de outra, acabam sendo utilizadas, e depois preteridas. Porque elas não recebem recursos, apoios e incentivos suficientes, na dinâmica da disputa, para estar no topo. Por isso, acho muito pertinente a ideia de eleição como pirâmide, em que no topo há uma concentração de brancos e na base uma parcela maior de pretos e pardos. Independente do tamanho do partido.

Vocês fazem um debate interessante no livro: apenas negros deveriam preferir candidaturas negras? Faço um contraponto: a vimos, em 2018, com a ascensão da extrema direita, a subida de negros que refutam a pauta antirracista. O mais emblemático é o deputado federal Hélio Lopes, mais conhecido por Hélio Bolsonaro, do PSL, o mais votado no Rio. O que vocês podem me dizer a respeito?

Machado – Se ouvia até recentemente que não havia mulheres suficientes no Congresso porque as mulheres não votam nelas mesmas. Ou, já que vez que 50% da população é composta de mulheres, bastaria que as mulheres votassem em mulheres. Quando jogamos essa perspectiva para a questão racial, vira “a população branca deveria votar em brancos e a população negra deveria votar em negros”. É engraçado que quem mobiliza esse argumento no debate público faz isso para defender que não existe racismo na sociedade, que haveria uma democracia racial operando. Logo, se negros não são eleitos é porque os próprios negros acham que as candidaturas negras não têm méritos suficientes. Na verdade, o que está colocado aí é expectativa de como deveria ser um comportamento racista. A expectativa de que um branco deva votar necessariamente em brancos é a própria dinâmica do racismo. Na verdade, esse não deveria ser um componente crucial nessa perspectiva. Mais relevante do que focar no eleitor e tentar entender porque as pessoas não votam em determinado perfil de candidato é perguntar por que é tão difícil para o eleitorado notar a existência desta ou daquela candidatura. É por isso que a gente enfatiza a discussão sobre os partidos. Quando os partidos políticos resolverem os problemas de desigualdade, e se mesmo assim ela persistir nas eleições, aí sim passa a fazer sentido a gente olhar para o eleitor.

Campos – Na democracia representativa, o político eleito representa todos os cidadãos, não só seus eleitores. Tem uma história anedótica de quando o Eurico Miranda disse [na Câmara dos Deputados] que estava ali para representar os interesses dos vascaínos. Na verdade isso é ilegal, é inconstitucional. O que tentamos mostrar é um entendimento mais amplo do que faz a representação política. Ela não é só o universo de delegados que vão dar voz a interesses previamente existentes na sociedade, mas um espaço de deliberação, discussão e formação de novos interesses e novas opiniões sobre diferentes temas.

Em um estado gerido em grande medida por homens brancos, mas que produz políticas públicas que atingem especialmente homens e mulheres negros, se está excluindo todo um conhecimento social sobre como essas políticas funcionam. E, ao mesmo tempo, impedindo esses grupos de refletirem sobre seus interesses. A decorrência, creio, é que a restrição da representação política no Brasil em termos raciais, de gênero e de classe configura uma restrição democrática de modo geral. Nesse sentido, é importante aumentar a quantidade de negros, de mulheres negras, de mulheres para que a democracia brasileira funcione melhor. Não existe necessidade ou insinuação de que só negros representam negros.

Machado afirmou que a mudança tem de começar nos partidos. O que falta para isso? Quais instâncias que precisam se mexer para que ela aconteça?

Machado – Demanda pressão social. Os partidos operam na inércia. Enquanto não são provocados, não existe algum tipo de ameaça à continuidade, os partidos mantêm suas táticas. Quando há uma pressão externa as coisas mudam. Mas ela tem de vir acompanhada de uma pressão interna, deve haver grupos internos no partido interessados na mudança. Na minha leitura, a atuação das pessoas nos partidos é fundamental, inclusive para fazer esse tipo de pressão.

Diferentes lideranças negras têm percebido isso e entrado nos partidos para fazer essa cobrança. Em São Paulo, Douglas Belchior fez uma pressão muito grande no PSOL sobre a questão do financiamento de campanha. Teve repercussão não apenas no partido, mas também no debate público, ao ponto que agora temos esta decisão [do Tribunal Superior Eleitoral sobre repartição proporcional dos recursos de campanha entre candidatos negros e brancos a partir de 2022] a partir da provocação da Benedita [da Silva]. Não é simplesmente a existência de grupos na sociedade cobrando isso de forma abstrata, mas em partidos políticos, em que as mudanças podem ser operadas. Estamos falando de mudanças institucionais, no ambiente político da representação. Então, eu diria que esse tipo de engajamento é central e temos visto nos últimos anos que em alguma medida tem surtido efeito. Não consigo nos imaginar tendo essa discussão cinco anos atrás. Essa atenção do debate público sobre o tema é fruto desse processo.

Campos – Acho também que a gente não pode ignorar que existe uma influência do aparato legal e institucional sobre os partidos. Nesse sentido, o cume do processo de reenquadramento do debate racial em relação à política é a decisão do TSE. Ele está dizendo que, se existem dados suficientes indicando que há viés racial na alocação de recursos por parte dos partidos, isso é inconstitucional. E, se é inconstitucional, temos que ter medidas que controlem o problema. É similar ao que aconteceu com a decisão sobre as candidaturas laranjas de mulheres. Em eleições passadas, um número expressivo de candidatas mulheres não recebeu sequer o próprio voto, teve zero votos. Isso é prova suficiente de que havia um processo de uso de candidaturas laranjas [para cumprir a cota de mulheres candidatas], o que autoriza o Judiciário a agir.

Machado – Quando digo que é preciso ter pressão sobre o partido, é porque eles não vão se movimentar sem ela. Mesmo com uma mudança da legislação. Se não houver mudança de cultura interna, nas relações de força no interior do partido, sempre haverá uma tentativa dos líderes partidários de burlar as novas regras. Por exemplo, já vemos narrativas de candidaturas negras de que elas não estão recebendo os recursos do financiamento público [mesmo com a regra do TSE].

Qual a avaliação de vocês sobre a decisão do TSE sobre o financiamento proporcional a candidaturas negras?

Campos – A gente foi atropelado pelo TSE. O livro estava sendo gestado já há algum tempo, desde o ano passado, e foi de certo modo precipitado por essa reorganização do debate público sobre a relação entre raça e política. Assim, o livro trata muito pouco ou quase nada das eleições de 2020, porque durante o processo de escrita, as decisões foram mudando. O TSE, por exemplo, tinha decidido que a nova regra valeria apenas para 2022, quando a gente estava no meio da redação do livro. E depois o STF antecipou a aplicação. O TSE não acatou o pedido de criação de cotas raciais nas legendas. Com isso, o Congresso provavelmente vai se manifestar em relação ao tema. Aí tem um jogo institucional bem complexo e cujo resultado só poderemos prever a partir dos resultados dessas eleições e do quadro político em 2021.

Vocês fazem uma análise bastante longa sobre as cotas partidárias para não-brancos. Qual é a avaliação de vocês sobre elas? 

Campos – Particularmente, acho que esse é o caminho a perseguir. Embora se tenha noticiado que mais de 50% dos candidatos nessas eleições são negros, o dado esconde muitas desigualdades. Enquanto a gente não falar em cota nas listas partidárias [de candidatos], não vamos conseguir garantir que partidos grandes, em pleitos específicos, lancem candidatos [não brancos]. Os 50% de candidatos negros são a soma de eleições distintas [para prefeitos e para vereadores]. Hoje em 38% dos municípios do Brasil só há candidatos a prefeito brancos. Ou seja, nem que os eleitores quisessem poderiam escolher um prefeito negro. É preciso garantir o mínimo de oferta de candidatos negros em cada uma das eleições. E é importante frisar que as cotas não podem funcionar como teto, devem se inspirar no modo de funcionamento das cotas de gênero. Ou seja, é possível haver mais de 30% de mulheres candidatas nos partidos atualmente

Tem uma sentença do livro, inclusive destacada no prefácio, que chama bastante atenção: “As lideranças partidárias brasileiras ainda rejeitam encarar o tema das desigualdades raciais como central para a organização da sociedade brasileira”. É aquilo que vocês vinham falando, os partidos não estão olhando para isso com a devida atenção? O que mais nós podemos dizer sobre isso?

Machado – Eu acho que há uma dimensão geracional. A discussão do mito da democracia racial começa de fato a ser travada na sociedade brasileira durante os anos 1970, e só na década seguinte passa de fato a ser discutida na academia e em ambientes mais politicamente engajados com a questão racial. Mas só nos últimos 20 anos é que ela passa a ser mais presente no debate público brasileiro, e começa a crescer a crítica à ideia de que não temos problemas de desigualdade racial. Para o senso comum, esse debate ainda é uma novidade.

Quando olhamos quem são os líderes partidários, as figuras eleitas para os parlamentos, estamos falando de representantes com uma idade média superior a 40 anos, normalmente acima de 50 anos. São pessoas que tiveram sua formação num ambiente de crença na ideia de uma democracia racial brasileira. Serão os mais jovens que terão acesso ao discurso, ainda é questionado, sobre desigualdades raciais. São as novas vozes e as novas ideias que vão ventilar a dinâmica política. Quando olhamos para a Câmara dos Deputados, a tensão sobre as questões raciais é muito pequena.

Campos – O partido, como está claro em tudo que estamos falando, é muito importante na política do Brasil. A ideia de que os partidos são fracos, não importam, é um dos grandes mitos sobre a democracia brasileira. Não se pode ser candidato sem estar filiado a um partido. E cabe às lideranças partidárias formar as listas de candidatos, e não existe nenhuma lei que obrigue [a realização de eleições] prévias ou decisões democráticas interna no partido. Essas lideranças tendem a operar contrabalançando as premissas ideológicas do partido com a racionalidade instrumental de quem quer eleger mais candidatos. E aí, como já foi colocado, tendem a reproduzir visões e decisões passadas. Uma delas, muito recorrente, é de que raça não dá voto. Se pode até investir em candidaturas negras, ocasionalmente, mas tratar da temática racial é algo que historicamente tirou voto. Essa é uma impressão decorrida uma história de poucas candidaturas negras, uma impressão preconceituosa.

De que forma a raça tira voto? Pelo simples fato dos candidatos serem negros, ou pelo fato de colocarem a questão racial em discussão? 

Campos – A gente não aborda isso [no livro], mas existem algumas pesquisas qualitativas que acompanham as candidaturas que tentam tematizar a questão racial. O que sai desses trabalhos é que, em primeiro lugar, candidatos negros com algum potencial, viáveis eleitoralmente, acabam sendo confrontados com a questão racial em algum momento da campanha. Ou seja, eles não podem, como os brancos, se furtar a essa questão. E, quando abordam a questão, quase sempre isso gera um nível de exigência sobre eles muito maior do que o que existe as candidaturas brancas. Você tem desde candidatos de partidos de direita com discursos antirracistas fortes sendo atacados pelo eleitorado da legenda a candidaturas de esquerda com discursos antirracistas igualmente forte e sendo atacados por deixarem em segundo plano questões de classe. Ou seja, o nível de exigência sobre o discurso de candidaturas negras quanto à questão racial é historicamente muito maior do que sobre candidaturas brancas, que podem simplesmente ignorá-lo em suas campanhas. Então, quando as lideranças partidárias olham para essa história, tendem a pensar: “Olha, não vamos meter a mão neste vespeiro”.

Nessas últimas eleições, casos como o do Douglas Belchior têm vindo à tona com mais frequência. Partidos de esquerda, por exemplo, costumam ter uma preocupação maior do que os de direita com o papel que os recursos de campanha, o financiamento e o capital empresarial têm nas eleições, o que é salutar. Mas, se você não leva em conta também a raça, está ignorando o fato de que grande parte das candidaturas negras são, também, pobres, de universos periféricos, muito violentos e que, sem acesso a recursos mínimos de campanha, estão colocando a vida em risco. Os partidos brasileiros não estavam, e em alguma medida não estão, preparados para raciocinar sobre como trabalhar com raça nas eleições e incorporar a dimensão racial internamente e nas campanhas também. Então, o partido é um importante gargalo nisso tudo.

Machado – Tenho visto, nas eleições de 2020, muitas campanhas enfatizando o fato de que não têm dinheiro e por isso utilizam voluntários para garantir a realização [da campanha]. É interessante porque isso vai completamente na contramão do que é o processo político hoje, em que os partidos políticos têm buscado nos últimos anos intensificar a profissionalização. E esse perfil em que se busca o voluntariado está principalmente nas candidaturas não-brancas. Então, me preocupo se elas vão conseguir vingar, de fato.

Disputar assim contra uma estrutura partidária organizada, focada na eleição, é completamente desigual. Isso enfatiza não só a importância do partido político, mas as implicações da profissionalização partidária. Diz respeito a entender o que é um limite e o que é uma possibilidade. Entender que você não vai realizar uma revolução, mas tem que cobrar e estar presente nestes espaços [partidários]. Por isso, sempre me preocupa muito uma ação em que não se pensa estrategicamente. Se não for possível ganhar agora, tem que pensar estrategicamente como as ações que estão sendo tomadas agora podem ajudar no futuro na eleição das candidaturas [não-brancas]. Mas tem que ser pensado de forma profissional, porque a política é profissional. Ela não opera mais em uma lógica de esforço coletivo. Isso já passou, há muitos anos. A gente está falando de um contexto e de um nível de profissionalização que não permite mais esse tipo de estrutura.

Existe essa percepção entre o movimento negro?

Machado – Vou falar aqui a partir de impressões. Um dos efeitos do avanço da extrema direita no Brasil foi obrigar a militância antirracista a refletir sobre representação política. Durante a redemocratização, por exemplo, havia uma expectativa muito forte de que o movimento negro acabaria, viraria partidos políticos, porque já éramos uma democracia, os partidos estariam ali para disputar o poder, os militantes do movimento negro iriam se filiar a determinadas legendas e isso iria diluir sua unidade. Isso não aconteceu, porque a abertura dos partidos ao movimento negro, à direita e à esquerda, foi muito seletiva. A militância antirracista sempre esteve presente nos partidos políticos, mas seu raio de atuação neles sempre foi bastante limitado. Isso fez com que durante os anos 1990, sobretudo, uma parte importante do movimento negro investisse mais na criação de organizações que incidissem diretamente sobre organismos estatais. Se pensarmos nas ações afirmativas raciais, elas são fruto de uma articulação complexa que não passou, inicialmente, pelo Congresso. Nossa lei de cotas raciais é de 2012, mas as primeiras experiências com elas vêm de 2001, 2002. Ou seja, vieram dez anos antes. A lei veio depois, e para chancelar uma realidade: 78% das universidades públicas brasileiras já adotavam as cotas quando a lei veio e disse que as federais deveriam fazê-lo.

A comunicação do movimento negro com os órgãos estatais era muito mais efetiva que via partidos políticos. Com a ascensão da extrema direita, esses espaços de comunicação vão se fechando – já vinham se fechando desde antes. Então, acho que o que estamos vivendo é, em parte, a pressão do movimento negro no “retorno ao partido”. Não retorno, propriamente, porque ele sempre esteve lá, mas uma pressão maior porque os tradicionais com o estado se fecharam.

É emblemático o caso da Fundação Palmares, dirigida por um negacionista do racismo que diz odiar o movimento negro.

Machado – O movimento negro sempre teve atuação partidária. A questão é em que espaço ele operou. Você pode não ter um representante [eleito], mas vai ter uma pessoa assessorando aquele um representante, falando: “Olha, essa pauta, essa temática é importante para a população negra”, fazendo o lobby. Essa política de pressão sempre existiu nos partidos e no parlamento. O engajamento, a pressão política maior no interior dos partidos políticos por mais candidaturas negras, reserva de recursos para as candidaturas negras, talvez evidenciem uma conexão do movimento negro com partidos políticos na dinâmica eleitoral. Porque ele já estava presente na dinâmica partidária. Mas tem toda uma complexidade, muitas candidaturas negras não são vinculadas ao movimento negro. Elas chegam aos partidos a despeito do movimento negro. Se o movimento negro está participando do engajamento agora, em 2020, é uma coisa ainda a ser verificada. Mas certamente o movimento negro voltou para o Congresso, está naquele espaço disputando novamente como mostram dados que apresentamos [no livro].

Campos – A gente não pode ignorar que as relações raciais no Brasil mudaram muito nos últimos dez ou 20 anos. As ações afirmativas são parte disso, não implicam somente uma mudança no debate, mas também a formação de gerações com curso superior – e ter curso superior é um ativo político básico em eleições, como a gente mostra no livro. Então agora se tem um público [de lideranças do movimento negro] para disputar espaços partidários e eleitorais. E a gente também não pode ignorar a ascensão política de lideranças negras não necessariamente comprometidas com pautas do movimento negro. Queremos investigar o papel de lideranças negras oriundas de comunidades de base evangélica, quase sempre pastores e pastoras, que têm relação com a temática antirracista, mas que não estão associados à visão tradicional que temos do movimento negro. Por tudo isso estamos muito curiosos para saber o que vai acontecer no meio de novembro.


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