25/04/2024 - Edição 540

Poder

Derrota de Trump leva Bolsonaro a perder seu amigo imaginário

Publicado em 13/11/2020 12:00 -

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Jair Bolsonaro apostou no cavalo perdedor. Depois, passou a apoiar o jóquei que chegou em segundo e esperneia, sem provas, que o vencedor dopou o cavalo, sabotou a pista, subornou os juízes e corrompeu o público. O pior de tudo é que o presidente brasileiro fez a aposta com o nosso dinheiro.

A outra metáfora possível seria o sujeito que vai com a vaca da família na feira a fim de vendê-la e comprar comida e volta com meia dúzia de feijões com a promessa de que são mágicos. Depois descobre que o vendedor foi levado pela Polícia Civil por estelionato, mas fica ajoelhado na sua horta, esperando a mágica acontecer.

Aliados de Donald Trump, como os primeiros-ministros de Israel, Benjamin Netanyahu, e da Hungria, Viktor Orbán, já felicitaram o democrata. Bolsonaro segue em silêncio, sem reconhecer a vitória de Joe Biden.

Apesar de todo o amor que sente pelo futuro ex-presidente norte-americano, a estratégia do brasileiro é manter-se firme, mas só até onde for possível.

Entrega, assim, o que deseja o bolsonarismo-raiz, grupo que representa de 12% a 16% da população e tem garantido apoio incondicional a Bolsonaro. Parte dele enxerga em Trump uma espécie de semideus na luta contra a conspiração de bilionários pedófilos, intelectuais globalistas, Illuminati e cavaleiros templários.

Mas também tenta ocupar o espaço deixado pelo republicano nas redes de apoio dos movimentos internacionais da extrema direita. E seus ricos patrocinadores.

E o que Bolsonaro apostou durante a campanha norte-americana? Nossa dignidade, por exemplo.

Só para dar exemplos dos últimos meses. Em um encontro com Ernesto Araújo, em 18 de setembro, em Boa Vista (RR), o secretário de Estado Mike Pompeo usou o território brasileiro para provocar o governo da Venezuela – o que levou a oposição no Senado Federal a convocar o chanceler por ajudar a criar um factoide a fim de ser usado na campanha de Trump.

Em meio à reta final da campanha eleitoral, quando Trump precisou reforçar que contava com aliados na disputa contra o gigante asiático, Bolsonaro deu sinais de que pretendia excluir ou limitar a participação da chinesa Huawei na escolha do sistema de 5G. Sem contar os ataques à China por conta do coronavírus, ecoando o republicano.

A fim de ajudar Trump, que buscava votos nos estados produtores de milho, matéria-prima do etanol por lá, Bolsonaro dificultou a vidas dos produtores brasileiros de etanol, que estavam com estoques para gastar devido à redução do consumo na pandemia. Renovou a cota de etanol dos EUA que pode entrar aqui sem pagar imposto de importação – 62,5 milhões de litros/mês. Acima disso, o valor é a tarifa comum do Mercosul, 20%. A cota havia expirado em agosto.

Não só. Os Estados Unidos reduziram a cota de aço semiacabado que o Brasil pode vender a eles sem tarifas – o total caiu de 350 mil para 60 mil toneladas para o quatro trimestre do ano. O motivo também foi pressão da indústria dos EUA sobre o candidato à reeleição por causa da queda de demanda devido à pandemia.

Durante a campanha, Trump – que visitou vários países, menos o vassalo Brasil – chegou a usar diversas vezes o governo Bolsonaro como exemplo negativo no combate à covid-19, dizendo que os EUA poderiam estar mal, como nós, caso ele não tivesse agido corretamente. Além de ceder na economia e na geopolítica, ainda virou o paga-lanche.

É hora de cobrar Bolsonaro pela aposta que fez, indo contra o que um patrimônio de um século de diplomacia brasileira independente não o autorizava a fazer. Dobrar a pressão para que ele reverta sua política de terra-arrasada na Amazônia, lembrando que não precisa ser pelo meio ambiente, pelos povos que lá vivem ou pelo futuro da humanidade, mas pelo comércio mesmo – que deve sofrer impacto com a chegada de Joe Biden. E exigir que pare de ter amigos imaginários.

Bom aviso

A derrota de Donald Trump deixou Bolsonaro zonzo. Ele demora a enxergar duas obviedades: Trump nunca foi um bom exemplo. Mas Biden tornou-se um fabuloso aviso.

Bolsonaro não gosta de ler. Mas deveria desperdiçar um naco do seu domingo lendo o discurso da vitória, pronunciado por Biden na noite de sábado. É um discurso curto. Pode-se atravessá-lo em 15 minutos. A leitura será mais proveitosa se o capitão prestar atenção a trechos como o que vai reproduzido abaixo:

"A Bíblia nos diz que para tudo existe um tempo, um tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear. E um tempo para curar. Esta é a hora de curar na América." Trocando-se América por Brasil, o discurso poderia ser lido por Bolsonaro em rede nacional de rádio e tevê.

Biden não esclareceu, mas referia-se a uma passagem do livro de Eclesiastes (3:1-8). Ensina que há um tempo certo para cada propósito debaixo do céu. Tempo de matar e tempo de curar. Tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntá-las. Tempo de rasgar e tempo de costurar. Tempo de odiar e tempo de amar. Tempo de lutar e tempo de viver em paz.

A exemplo dos Estados Unidos, o Brasil amarga duas patologias: a Covid e a polarização. Contra a primeira, ainda não há vacina de eficácia comprovada. O número de mortes declina. Mas o vírus continua matando. Contra a segunda, há dois velhos imunizantes à disposição: sensatez e moderação.

"Prometo ser um presidente que não vai dividir, mas unificar", declarou Biden. "É hora de colocar de lado a retórica dura, baixar a temperatura, nos vermos novamente, nos ouvirmos novamente e, para progredir, temos que parar de tratar nossos oponentes como nossos inimigos. Eles não são nossos inimigos. Eles são americanos."

De novo: substituindo-se "americanos" por brasileiros, o discurso poderia ser lido num pronunciamento do presidente brasileiro em rede nacional. Mas não passa pela cabeça de Bolsonaro dizer algo parecido. Sua ascensão à Presidência, assim como a chegada de Trump à Casa Branca, foi uma consequência direta da polarização.

O lógico seria que, depois de eleito, Bolsonaro virasse um presidente de todos os brasileiros, inclusive dos que não votaram nele. Mas ele passou a governar para um terço da população. Trump fazia parecido. Deu no que está dando.

A exemplo do ídolo americano, Bolsonaro coloca na receita do seu pudim raiva e desinformação em doses que podem ser letais. Abusa da sorte. Num instante em que o vírus apresenta a Trump a conta do negacionismo, Bolsonaro faz política com uma vacina contra o coronavírus.

A melhor hora para mudar é quando a mudança ainda não é necessária. Trump perdeu a sua hora. Bolsonaro desperdiça o seu momento desde o dia da posse. É como se desejasse ser engolido pela lógica de um outro conhecido preceito bíblico. Está no mesmo livro de Eclesiastes, no capítulo 1, versículo 9.

Diz o seguinte: "O que foi tornará a ser; o que foi feito se fará novamente; não há nada novo debaixo do Sol." Ao macaquear Trump a ponto de ser derrotado junto com ele, Bolsonaro parece convidar o eleitor brasileiro a mimetizar os americanos que elegeram Biden. O ano de 2022 pode ficar parecido com 2020.


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