26/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro quer uma Anvisa verde-oliva

Publicado em 13/11/2020 12:00 -

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Jair Bolsonaro trata a Anvisa com raro esmero. Faz o pior para a agência certificadora de medicamentos da melhor maneira possível. Escolheu um militar para substituir uma farmacêutica na diretoria do órgão.

Em dezembro deixará a Agência Nacional de Vigilância Sanitária a diretora Alessandra Bastos Soares. Ela é farmacêutica. Para preencher a vaga, Bolsonaro indicou um defensor de suas posições na área da saúde, o tenente-coronel da reserva Jorge Luiz Kormann.

Reza a lei que, para ocupar uma cadeira na direção da Anvisa, o escolhido deve ostentar notório conhecimento na área e formação acadêmica compatível com o cargo. Precisa ter ralado por dez anos no campo de atividade da agência. Ou ter ocupado um cargo de confiança de alto escalão no setor público por quatro anos.

O preferido de Bolsonaro exibe no currículo uma passagem por um hospital militar de Porto Alegre. Foi assessor de gestão e planejamento. Chegou ao Ministério da Saúde na fase pós-Mandetta. Desde maio, ocupa a poltrona de secretário-executivo adjunto da pasta. Parece pouco. E é muito pouco.

A indicação de Bolsonaro precisa ser avalizada pelo Senado. Se a Casa tivesse juízo, refugaria o nome. Mas bom senso é material mal distribuído. E não há muito no Congresso.

Jorge Kormann é o segundo militar que Bolsonaro empurra para dentro da Anvisa. O primeiro, o contra-almirante Antonio Barra Torres, comanda a agência. Foi aprovado gostosamente pelos senadores, a despeito de ter participado em 15 de março, a tiracolo de Bolsonaro, de aglomeração na qual a multidão reivindicava o fechamento do Congresso e do Judiciário.

Bolsonaro amplia o telhado de vidro da Anvisa num instante em que a agência se equipa —ou deveria se equipar para certificar vacinas contra a Covid-19.

Kormann desembarcou no Ministério da Saúde em maio, no contexto da ocupação militar que buscava tutelar a gestão Nelson Teich. Em junho, já sob Pazuello, ele foi alçado ao cargo de secretário executivo adjunto, um dos mais importantes do ministério. É claro que Kormann não possui formação em saúde, mas em ‘ciências militares’

Tem mais: Kormann endossa nas redes sociais um conjunto de conteúdos problemáticos para alguém que pode acabar supervisionando a Gerência Geral de Medicamentos, como a propaganda da hidroxicloroquina. O levantamento feito pelo Estadão também concluiu que ele compartilha bastante Olavo de Carvalho e Guilherme Fiuza, jornalista que voltou sua atuação para a direita brasileira. Uma das curtidas do tenente-coronel foi dada em um post de Fiuza que afirma que lockdown não tem base na ciência, atribuindo essa decisão de prevenir o espalhamento do vírus como fruto da “parceria saudável” entre a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a “ditadura chinesa”. 

Caso não haja redistribuição de atribuições – o que a Anvisa diz ser possível depois da completa renovação na diretoria colegiada – também ficaria sob a responsabilidade de Kormann a visadíssima Gerência Geral de Alimentos, que vem sendo objeto de lobby pesado da indústria. Para assumir, o tenente-coronel precisa ser aprovado pelo plenário do Senado. Se isso acontecer, dos cinco diretores, dois serão militares. Antonio Barra Torres, atual diretor-presidente da agência, é contra-almirante da Marinha. 

Só para incendiar

O presidente Jair Bolsonaro continua querendo gerar confusão e dúvida a respeito da CoronaVac. A Anvisa já liberou a retomada dos testes clínicos, concordando com os relatórios que indicam não haver relação entre a morte do voluntário de 32 anos e a vacina. A morte foi registrada como suicídio; os laudos do IML e do Instituto de Criminalística divulgados ontem apontam que ela ocorreu em consequência de intoxicação por opioides, sedativos e álcool.

Surgem boatos de que a vacina poderia estar relacionada ao suicídio por induzir à depressão. Embora esse seja um efeito observado em alguns medicamentos, não há nenhum registro na literatura científica relacionando imunizantes a depressão ou ideação suicida. Se o presidente não fosse quem é, neste momento estaria atuando para combater as fake news e fortalecer a confiança da população na ciência. Mas o que temos é  Bolsonaro, e seu modus operandi é espalhar centelhas de dúvidas. “Vão apurar a causa do suicídio. E daí, obviamente, não tem nada a ver com a vacina. Pode ser um efeito colateral da vacina também? Pode ser, tudo pode ser. Não sei se chegaram à conclusão que esclarece para voltar a pesquisar a vacina, no caso a CoronaVac, da China aí”, disse ontem, em transmissão ao vivo no Facebook. 

Mas se os resultados dos testes forem bons e a Anvisa aprovar a CoronaVac, não distribuí-la a todo o país pelo SUS será um problema. Por isso, o mandatário voltou atrás e disse que “havendo a vacina comprovada pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde, a gente vai fazer uma compra”. Só que emendou: “Mas não é comprar no preço que um caboclo aí quer. Está muito preocupado um caboclo aí que essa vacina seja comprada a toque de caixa. Nós vamos querer uma planilha de custo”. O caboclo seria o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

Bolsonaro foi além e disse que só aceita a CoronaVac se a China também a adotar: “Sei que não compete a mim isso aí, mas quero saber se esse país usou a vacina no seu pais. Igual armamento, quando se fabrica armamento em qualquer país do mundo, o país que quer comprar fala: ‘Seu Exército está usando esse armamento? Se está usando, sinal que é bom, então vamos comprar isso aí'”.

Há muito tempo se sabe que a China, numa estratégia bastante controversa, tem oferecido a CoronaVac – e dois outros imunizantes, produzidos pela Sinopharm – a centenas de milhares de seus cidadãos. Recentemente, o governador de São Paulo atestou a segurança da vacina baseando-se justamente nessa aplicação emergencial em 50 mil chineses (com dados que, no entanto, não têm rigor científico, porque não se trata de um ensaio clínico). 

A Anvisa anunciou que vai enviar uma “missão de inspeção” à China, para avaliar as instalações da Sinovac e da Wuxi Biologics – a primeira é responsável pela desenvolvimento da CoronaVac, e a última produz insumos para a AstraZeneca. Os agentes do órgão regulador vão sair do Brasil hoje. Mas, como a China tem medidas para evitar a transmissão do coronavírus, terão que fazer quarentena. As visitas só vão começar no fim do mês. 

No Butantan

O presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, abrandou suas críticas à Anvisa. Elogiou a rapidez da agência em avaliar o caso e disse que o “relacionamento, apesar desse episódio, foi mantido em bom nível. Não houve nenhum estremecimento”, disse ele. E e seguida: “Entendemos que a Anvisa é uma agência de Estado, não de governo. Na sua constituição está previsto independência e contratação de técnicos com relativa estabilidade, portanto aptos a atuar pela população brasileira. E assim tem sido sempre. Se existe um ou dois pontos fora da curva, não quero acreditar que isso seja a norma”.  Mas ele também voltou a criticar a comunicação entre a Anvisa e o instituto de pesquisa: “Não podemos nos comunicar por comunicados de imprensa“, disse – no que concordamos.

De acordo com ele, em breve vai ser anunciada a fase de testes da CoronaVac em idosos, crianças, gestantes e puérperas, o que é importante para ver se a eficácia da vacina varia conforme as características do público.


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