25/04/2024 - Edição 540

Ponte Aérea

Bravatas e o cheiro anacrônico de pólvora

Publicado em 11/11/2020 12:00 - Raphael Tsavkko Garcia

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No último dia 10, em pronunciamento transmitido ao vivo, o presidente Jair Bolsonaro declarou que "quando acaba a saliva tem que ter pólvora". A ameaça direta aos Estados Unidos foi uma resposta a comentários do presidente eleito americano, Joe Biden, sobre a possibilidade de impor barreiras comerciais ao Brasil pelo desmatamento da Amazônia.

Por mais estapafúrdia e inconsequente que seja a declaração do presidente, ela não vem do nada, mas de um medo primitivo do Exército brasileiro. O professor de Relações Internacionais da UERJ, Maurício Santoro, explica que "a principal hipótese de guerra brasileira são os EUA invadirem a Amazônia e como o Exército responderia a isso."

"É um cenário delirante," diz Santoro, acrescentando que "o Exército deveria se preocupar com crime organizado nas fronteiras ou ataques a comunidades de brasileiros em países vizinhos, os dois cenários reais de maior risco. Mas é parte da doutrina que uma potência de fora da região ocuparia a Amazônia."

"A ideia é que a Batalha dos Guararapes do período colonial seria o modelo a ser repetido caso haja uma invasão na Amazônia, ou seja, uma guerra de guerrilha quando os americanos invadirem a Amazônia. É ao mesmo tempo risível e trágico, mas a instituição como um todo está presa em uma visão de mundo que evoluiu de maneira inadequada, lenta com relação aos reais desafios do Brasil. Continua dominado pelo pensamento anticomunista fora da realidade contemporânea, ainda uma vivência da guerra fria, de conflitos internos contra guerrilhas de esquerda. Encaixar uma preocupação com o meio ambiente torna-se complicado," explica Santoro.

Em outras palavras, por mais que as ameaças de Bolsonaro pareçam vazias, há motivos para preocupação, pois a questão toca num dos pontos mais nevrálgicos da estratégia militar brasileira e, como sabemos, Bolsonaro é tudo menos estável e confiável. É discutível se as Forças Armadas embarcariam em uma aventura seguindo as declarações de Bolsonaro, mas é fato que esse "pensamento obsoleto e inadequado", como explica Santoro, é algo sempre presente.

"É um pensamento forte na mentalidade militar que fala da 'cobiça internacional' sobre a Amazônia e se manifesta em uma visão crítica ao papel de instituições internacionais na Amazônia, como missionário, ONGs e no limite esse discurso pode se tornar um discurso xenófobo, paranoico, de ver inimigos em todas as partes e não entender a realidade política e econômica do século XXI, onde fronteiras são porosas, há uma presença maior de redes internacionais de pesquisa e ativismo," diz Santoro.

Não surpreende que recentemente diversas organizações da sociedade civil tenham publicado recentemente uma carta aberta repudiando os planos do vice-presidente, general Mourão, de controlar 100% das ONGs que atuam na Amazônia A intenção de Mourão de controlar organizações se insere na lógica do temor de uma invasão estrangeira. Os discursos de Bolsonaro, mesmo antes das eleições, contra ONGs na Amazônia passa pela mesma lógica nonsense de que existe um plano internacional para invadir o Brasil e roubar suas riquezas.

No ano passado, conversei com Milton Deiró de Mello Neto, professor de Relações Internacionais, sobre a oferta do G7 em ajudar o Brasil na contenção dos grandes incêndios que tomavam conta da Amazônia. O governo recusou, acusando a oferta de ser uma esmola e também de infringir a soberania brasileira. Além disso, a França mantém um relevante contingente militar na Guiana Francesa, o que fez com que o sinal de alerta dos militares acendesse.

Deiró disse então que "os militares, embora concordem com a postura soberanista do presidente da República, reservadamente discordam dos seus métodos de debate e discussão." Ele acrescentou que "por serem instituições de Estado, as Forças Armadas evitam o debate em termos políticos, ao menos na esfera pública. Mas reservadamente (no caso de militares da ativa) ou discretamente (no caso de militares da reserva) eles adotam uma postura soberanista, embora queiram garantias de desenvolvimento sustentável. Essa base de desenvolvimento sustentável da Amazônia está presente inclusive nos documentos fundamentais de orientação da Defesa Nacional no Brasil: a Estratégia Nacional de Defesa e a Política Nacional de Defesa."

Em conversa mais recente, após o episódio de ontem, Deiró confirmou que o sentimento entre os militares permanece o mesmo. Apoio cauteloso, mas buscando proteger todos os flancos – caso do controle de ONGs proposto por Mourão. Mas, se tudo desse errado, o Brasil teria condições de brigar com os EUA? A resposta é não.

"O Brasil não tem condições de brigar de frente com os EUA, nem do ponto de vista militar nem do ponto de vista econômico," explica Deiró. "Militarmente, embora o Brasil tenha um poder relativo, ainda está muito aquém da capacidade de defesa plena do território. Nem mesmo o fato de sermos o 11º maior gasto de defesa do mundo corresponde à realidade estratégica, já que a maior parte desses recursos vai para pagamento de pessoal ou de pensão. Sobra muito pouco para desenvolvimento de tecnologias militares avançadas que possam ser usadas na defesa territorial. Até mesmo a organização das forças no território brasileiro ainda segue uma lógica geopolítica do século XIX e começo do século XX. Nossa Armada está quase toda ancorada no Rio de Janeiro, e as unidades com mais poder de fogo do Exército e da Força Aérea estão no sul do Brasil, zona distante demais de qualquer epicentro de conflito com os EUA ou com qualquer outra potência global."

Então o que pretende o presidente brasileiro?

"Bolsonaro está usando esse discurso para agradar à ala nacionalista das Forças Armadas," explica Deiró. "Mas na falta de noção do presidente, ele falou em 'pólvora', o que automaticamente gera a impressão de ameaça militar, e o embaixador [Todd] Chapman (dos EUA) já respondeu nas entrelinhas ao parabenizar o United States Marine Corps, que é a força expedicionária usada pelos EUA pra atacar países situados fora da proximidade continental americana." Uma forma, diz Deiró, de conter a "verborragia" do presidente agindo de forma diplomática e nas entrelinhas.

Deiró completa afirmando que "mesmo a ala nacionalista e os militares de 'centro' que são soberanistas concordam com a postura soberanista de Bolsonaro, mas até eles ficaram extremamente desagradados com a forma pela qual Bolsonaro fez a afirmação."

As declarações do presidente, enfim, parecem não passar de mera bravata inserida em uma lógica ultrapassada das Forças Armadas brasileiras. No entanto, não podem ser simplesmente descartadas, pois diplomaticamente são relevantes, em particular com o novo governo americano que deverá tomar posse em alguns meses, liderado por um democrata que já deu inúmeras declarações de que adotará posição muito mais firme do que o atual presidente Donald Trump no tema ambiental, em especial a Amazônia – resta, claro, descobrir se Biden retaliará o Brasil por ameaças do tipo ou se questões econômicas prevalecerão.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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