25/04/2024 - Edição 540

Poder

Como Paulo Guedes ajuda Ricardo Salles a destruir o meio ambiente

Publicado em 06/11/2020 12:00 -

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“Chega um momento em que o caldo entorna. E o caldo entornou no nosso momento”, declarou o vice-presidente, Hamilton Mourão, ao negar responsabilidade do governo Bolsonaro sobre o aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia.

“Os problemas não aconteceram desde 1º de janeiro”, justificou o presidente do Conselho da Amazônia, em coletiva de imprensa realizada no último dia 5 em Manaus, no segundo dia de viagem de uma comitiva federal ao Amazonas.

Programada para durar três dias, foi planejada com o intuito de mudar a imagem negativa do Brasil frente a governos estrangeiros, que cobram maior proteção à floresta e controle do desmatamento e das queimadas, que bateram recordes em 2020.

A comitiva chegou ao Amazonas no último dia 4, trazendo, além do vice-presidente, que também é presidente do Conselho da Amazônia, os ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles, do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, e da Defesa, Fernando Azevedo. A ida do ministro da Saúde e das Relações Exteriores foi cancelada.

Também embarcaram na viagem os chefes de missões diplomáticas de dez países: África do Sul, Peru, Espanha, Colômbia, Canadá, Suécia, Alemanha, Reino Unido, França e Portugal, além de representantes da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) e da União Europeia e jornalistas estrangeiros.

O descontrole das queimadas e o avanço do desmatamento na Amazônia levou oito países a enviarem uma carta ao governo Bolsonaro, em setembro, ameaçando cortar importações de produtos brasileiros, caso o Brasil não adotasse medidas efetivas de combate à devastação da floresta.

De acordo com dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de janeiro a 4 de novembro foram registrados 94.437 focos de queimada na Amazônia, 5% a mais do que os 89.176 focos identificados em todo o ano passado.

Já os alertas de desmatamento cresceram 34,5% na Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020, em comparação com o mesmo período dos anos anteriores, aponta o Inpe.

Rota exclui áreas críticas

A comitiva fez um sobrevoo na região da BR-163, no Pará, e na Região Metropolitana de Manaus (RMM). O trajeto escolhido pelo governo foi criticado por ambientalistas por não abranger as áreas onde o desmatamento e as queimadas são mais críticas, como a região de Apuí, no sul do Amazonas, que foi ignorada pelo cronograma.

O Greenpeace chegou a divulgar um roteiro alternativo destinado aos representantes dos dez países, que passaria, além do sul do Amazonas, pelo Parna (Parque Nacional) e pela Flona (Floresta Nacional) Jamanxin, pela Esec (Estação Ecológica Terra do Meio e pela TI (Terra Indígena) Cachoeira Seca, no Pará, onde crescem o garimpo ilegal e o desmatamento.

“Apesar do tempo nublado foi possível avistar áreas protegidas e outras atingidas pelo garimpo ilegal e incêndios”, disse Mourão, que justificou o traçado alegando que a Amazônia é “muito grande” e que seria “impossível” mostrar todas essas áreas em apenas três dias.

Por isso, o governo escolheu sobrevoar áreas onde há “cicatrizes” na floresta, como são chamadas as áreas de desmatamento recente e também áreas preservadas e de programas federais, como os de assentamento, explicou o vice-presidente.

No entanto, modelos de produção mais criticados na Amazônia, que são as grandes monoculturas e os grandes desmatamentos para a pecuária, não foram “visitados” no sobrevoo.

Para o ministro Augusto Heleno, os relatos de ambientalistas e jornalistas sobre “incêndios gigantes” na Amazônia “não correspondem à verdade”.

“Temos 85% de floresta preservada. Um incêndio gigantesco na Amazônia, a fumaça chegaria a Londres”, afirmou o ministro, que reconheceu que houve um atraso no combate às queimadas. “Houve um atraso, nossos recursos estavam limitados, estávamos em plena pandemia.”

O caldo entornou faz tempo

Enquanto vários países elaboram estratégias de recuperação e crescimento verdes, associando crescimento econômico à redução das emissões de gases de efeito estufa, Bolsonaro decidiu seguir em direção oposta no Brasil.

Embora Ricardo Salles seja visto (corretamente) como o maior responsável pela grave situação ambiental que o Brasil atravessa, tem passado despercebido o fato que a política econômica de Paulo Guedes é amplamente desfavorável ao crescimento verde.

A equipe econômica do governo aposta numa estratégia de crescimento pautada na redução do estado e na produção de produtos primários, nos quais o país é mais produtivo, desprivilegiando políticas que incentivam a inovação e a produção industrial de alta tecnologia. Essa aposta, porém, corre sério risco de não só elevar o impacto ambiental da nossa economia como também de desacelerar nosso crescimento.

A política econômica do governo Bolsonaro vai contra cinco importantes pilares da proposta de crescimento verde. São eles:

– Indústria high-tech
A política econômica de Paulo Guedes é inteiramente voltada para o aumento da produção primária, mais poluidora, em detrimento de atividades industriais mais limpas e de alta tecnologia. Para entender o tamanho do impacto ambiental das atividades primárias, basta observar que, em 2018, a produção agropecuária brasileira foi responsável por 70% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil (incluídas as emissões por desmatamento), embora com participação direta no PIB de apenas 5%.

– Investimentos em P&D
Inovações tecnológicas são cruciais para reduzir as emissões de gases. Para incentivar inovações verdes, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE ressalta, entre outras medidas, o papel central dos incentivos à pesquisa. No Brasil, contudo, em função da política de contenção de gastos, para 2021, está previsto um corte de 32% nos já reduzidos recursos da área de ciência e tecnologia.

– Infraestrutura
O aumento da eficiência do uso de recursos depende em grande medida de investimentos em infraestrutura, voltados para a melhoria do uso e tratamento da água, para mudanças no sistema de transporte e para a geração de energia limpa. Nesse aspecto, destaca-se a aprovação do novo marco do saneamento, que promete elevar os investimentos nessa área. Contudo, os cortes sucessivos de investimentos públicos têm prejudicado a melhoria da infraestrutura brasileira, ameaçando até mesmo a reposição da depreciação. O investimento público federal e das estatais federais, que foi de 2,4% do PIB entre 2009 e 2014, caiu para 1,3% em 2019, e deve continuar caindo em 2020 e 2021.

Energias renováveis
A geração de crescimento verde passa também pela constante melhoria da matriz energética rumo a energias limpas. Mas Petrobras, sob o governo Bolsonaro adotou a estratégia de focar esforços na extração, no pré-sal, reduzindo suas atividades em energias renováveis. Essa opção significa caminhar em direção contrária às estratégias das grandes petrolíferas europeias, como BP (Reino Unido), Total (França) e Equinor (Noruega), que estão investindo pesado em energias renováveis. O Brasil seguiu a linha de focar na exploração de combustíveis fósseis em detrimento de energias limpas e da mitigação da mudança climática.

– Fiscalização ambiental
A comunidade internacional tem assistido atônita ao aumento das queimadas na Amazônia e no Pantanal, sem que quase nada seja feito para conter esses crimes ambientais. O governo abriu mão do Fundo Amazônia, que colaborava para manter o combate ao desmatamento e, agora, alega falta de recursos para as atividades de controle. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem sido acusado de atuar para dificultar a fiscalização ambiental e, assim como o presidente, tem sido mais aberto às demandas dos mineradores ilegais – atividade altamente poluidora, diga-se de passagem – do que às de ambientalistas e dos indígenas. A proposta de reforma administrativa de Guedes, se aprovada, deverá dificultar ainda mais a atuação independente dos fiscais do Ibama, uma vez que abrirá espaço para maior interferência política nos serviços públicos.

Na contramão do mundo

Estratégias de crescimento verde já vêm sendo adotadas há mais de uma década em diversos países. Alguns exemplos são o plano quinquenal sul-coreano de 2009-2013, o chinês de 2011-2015 e as diretrizes de desenvolvimento verde da Irlanda de 2007-2013. Em particular, destaca-se o programa para crescimento verde da OCDE, iniciado em 2011.

Essas estratégias buscam combinar aumento da produção com redução de emissões de gases por meio de inovações tecnológicas verdes, mudança da estrutura produtiva e da matriz energética e aumento da eficiência no uso de recursos. Essas mudanças levam a ganhos de produtividade, de renda e à geração de empregos de qualidade. A reversão da mudança climática colabora ainda para elevar a produção agropecuária, pois reduz a ocorrência de eventos climáticos que a prejudicam, como enchentes, secas etc.

Diversos estudos têm apontado para a importância de elevar a complexidade da economia, isto é, diversificar a economia e adensar a produção industrial de alta tecnologia como forma de gerar crescimento e ao mesmo tempo mitigar impactos ambientais. Os influentes trabalhos dos professores César Hidalgo, da Universidade de Toulouse, e Ricardo Hausmann, de Harvard, indicam que o aumento da complexidade econômica está ligado ao aumento do crescimento do PIB per capita.

O índice de complexidade econômica capta o conhecimento produtivo presente em cada economia. Nesse sentido, trabalhos recentes têm mostrado que maior diversificação em setores de alta complexidade está também associada a um maior nível de conhecimento relacionado à aplicação de tecnologias mais limpas. Em artigo publicado este ano na revista Research Policy, a pesquisadora Penny Mealy e seu colega Alexander Teytelboym, ambos da Universidade de Oxford, apresentaram evidências que a produção de bens de maior complexidade está associada a mais inovações verdes e a menos impacto ambiental.

Em outra pesquisa semelhante, publicada como texto de discussão do Centro para Economia e Políticas Públicas de Cambridge, eu e Camila Gramkow, pesquisadora da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal, apresentamos evidências que o aumento da complexidade econômica conduz à redução da intensidade de emissões de gases de efeito estufa.

Estagnação cinza

A produção industrial de alta tecnologia, as inovações e os investimentos em infraestrutura são cruciais não só para a redução dos impactos ambientais da produção como também para o aumento da competitividade e do crescimento. Ao incentivar a reprimarização predatória e poluidora da economia brasileira, as políticas econômicas do governo Bolsonaro têm prejudicado também nossa produtividade, que apresentou queda de 1% em 2019. Essa queda foi puxada pela redução da produtividade da indústria e dos serviços, enquanto só a agropecuária apresentou ganho.

Somando todos esses fatores às turbulências da política brasileira e do cenário internacional, não surpreende que esteja ocorrendo fuga de capitais do Brasil, e que o investimento externo direto tenha sofrido forte retração em 2020.

Não é possível fomentar inovações verdes, elevar a produção industrial limpa, melhorar a infraestrutura, a matriz energética e a fiscalização ambiental sem políticas ativas do estado. O Green New Deal da União Europeia, por exemplo, irá destinar quase 2 trilhões de euros para fomentar a redução das emissões do bloco.

No Brasil, o estrangulamento dos gastos públicos pelo teto de gastos inviabiliza a adoção de políticas públicas que permitam combinar crescimento acelerado com mitigação da mudança climática. A adoção de uma estratégia de crescimento verde no país passa pela modernização do teto de gastos para permitir algum crescimento real do gasto e para liberar o investimento público.

Na contramão do mundo, o governo Bolsonaro vem mantendo baixos os investimentos públicos, reduziu os recursos para a inovação, relaxou o combate ao desmatamento, incentivou a produção primária e abdicou de elaborar políticas que incentivem produção industrial limpa e de alta tecnologia. Tudo isso colabora, simultaneamente, para a redução do crescimento e para a elevação das emissões de gases de efeito estufa.

Não é exagero afirmar que a política econômica de Paulo Guedes representa hoje a perfeita antítese da proposta de crescimento verde.


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