20/04/2024 - Edição 540

Especial

O Poder contra os índios

Publicado em 02/11/2020 12:00 -

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A Funai disse que nada tem a acrescentar em consulta realizada pelo Ministério da Justiça sobre um decreto que está sendo preparado pelo governo Jair Bolsonaro que prevê a abertura de uma faixa de 16 mil quilômetros de extensão e 150 quilômetros de largura – passando por 11 estados – para exploração de minérios por empresas estrangeiras. A área abrange 177 territórios indígenas.

Segundo informações de Lauro Jardim, no jornal O Globo no último dia 28, o Planalto tem pronta a minuta do decreto, que flexibiliza as regras para a mineração na faixa da fronteira, um antigo desejo de Bolsonaro. A área representa 16% do território brasileiro.

Atualmente, para explorar minérios no Brasil a empresa precisa ter pelo menos 51% de capital nacional, dois terços de mão de obra e a maioria de cidadãos brasileiros na administração. O decreto de Bolsonaro prevê a revogação das regras para liberar a exploração por grupos estrangeiros, de preferência dos Estados Unidos.

O próprio Bolsonaro externou este desejo ao compartilhar um trecho do documentário alemão “O Fórum” em que aparece com Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA, dizendo que quer explorar a Amazônia com aquele país. Gore é defensor de causas ambientais, pelas quais chegou a receber um Prêmio Nobel da Paz.

Ao lado do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o presidente afirma: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.

Interesses internacionais

O decreto preparado pelo presidente é apenas mais uma da série de ações contra as populações indígenas brasileiras financiadas pelo poder político e econômico, nacional e internacional.

Seis empresas financeiras dos Estados Unidos investiram mais de US$ 18 bilhões (cerca de R$ 101 bilhões na cotação atual) desde 2017 em nove companhias acusadas de impactar negativamente povos indígenas brasileiros ou que têm planos de iniciar operações dentro de territórios desses povos, afirma relatório publicado no último dia 27 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a ONG americana Amazon Watch.

Ao evidenciar esses laços, a terceira edição da publicação "Cumplicidade na Destruição" busca pressionar investidores internacionais a adotar e fortalecer mecanismos internos de controle para "garantir que não haja investimentos em áreas de destruição ambiental, violações de direitos humanos e conflitos em Territórios Indígenas".

As seis empresas financeiras citadas no relatório são as duas maiores gestoras de recursos do mundo (BlackRock e Vanguard), três bancos (Citigroup, J.P. Morgan Chase e Bank of America) e uma gestora de investimentos (Dimensional Fund Advisors).

Segundo o levantamento todas elas têm investimentos em Vale, Anglo American, Cargill, Cosan, Eletrobras, Energisa e JBS — companhias que o relatório acusa de ter provocado sérios danos aos povos indígenas no passado ou de ter planos para iniciar atividades que terão impacto negativo nos seus territórios.

Quatro dessas corporações (BlackRock, Vanguard, J.P. Morgan Chase e Dimensional Fund Advisors) também investiram na Equatorial Energia, que é acusada por Apib e Amazon Watch de não respeitar direitos do povo Krikati ao construir duas linhas de transmissão sobre seu território, no Maranhão.

Além disso, o relatório destaca o investimento da BlackRock na mineradora Belo Sun, que planeja instalar um dos maiores projetos de exploração de ouro a céu aberto da América Latina na Volta Grande do Xingu, no Pará. O projeto sobre críticas de ambientalistas e enfrenta questionamentos do Ministério Público na Justiça.

Procuradas pela BBC News, as empresas citadas negaram as acusações feitas por Apib e Amazon Watch e informaram suas iniciativas para atuar com sustentabilidade.

Elas também ressaltaram que não tiveram acesso à íntegra do relatório antes de sua publicação. A reportagem forneceu a cada uma delas os trechos específicos em que eram feitas as acusações para que pudessem se posicionar.

Entenda melhor a seguir essas acusações e a resposta das companhias e de seus investidores.

Mineradoras

Três mineradoras são citadas na publicação — Vale, Anglo American e Belo Sun.

A Vale é acusada, por exemplo, de ter contaminado o rio Cateté, principal fonte de água da Terra Índigena Xikrin, que fica localizada a poucos quilômetros de empreendimentos da mineradora na região da Serra do Carajás, no Pará.

"Já a Estrada de Ferro Carajás afeta diretamente quatro Terras Indígenas: Rio Pindaré, Mãe Maria, Xikrin e Arariboia. A empresa é acusada por indígenas de descumprir seguidamente os acordos firmados para amenizar os impactos na região", diz ainda o relatório.

A publicação diz também que a mineradora tem centenas de requerimentos para explorar dentro de Terras Indígenas na Amazônia — hoje essas operações não ocorrem dentro dos territórios, mas o presidente Jair Bolsonaro enviou ao Congresso uma proposta de regulamentação para tentar abrir esse mercado.

"Entre os 236 pedidos, destacam-se os que incidem sobre o Território Indígena (TI) Trombetas/Mapuera, que está localizado entre Roraima, Amazonas e Pará, com 68 requerimentos; a TI Munduruku, no Pará, com 52 requerimentos; a TI Xikrin do Rio Catete (PA), com 37; a Kayabi (PA), com 35; e a Menkragnoti/Baú (MT/PA), com 26", afirma o relatório.

Essa é a acusação que recai também sobre a Anglo American. O relatório não aponta atividades da empresa que já tenham impactado territórios indígenas, mas diz que a mineradora representa uma grande ameaça aos povos por suas tentativas de explorar minério dentro de suas terras.

"Junto com duas subsidiárias brasileiras, a Mineração Itamaracá e Mineração Tanagra, a Anglo American tem quase 300 requerimentos de pesquisa registrados na Agência Nacional de Mineração que incidem sobre Terras Indígenas na Amazônia. Os requerimentos atingem 18 Terras Indígenas, algumas com a presença de povos em isolamento voluntário", diz o documento.

"O mais recente alvo da Anglo American é a TI Sawré Muybu, no Médio Tapajós, onde vive o povo Munduruku. Cinco pedidos são de 2017 e 2019, o que mostra que a mineradora não parou de atuar mesmo sabendo da proibição de exploração em Terras Indígenas. Parece que a empresa está contando com as mudanças legislativas propostas pelo governo de Bolsonaro para que sejam validadas suas licenças de prospecção", acrescenta o relatório.

Já a Belo Sun "tem atualmente 11 processos de pesquisa abertos na Agência Nacional de Mineração que incidem diretamente sobre os TIs Arara da Volta Grande do Xingu e Trincheira Bacajá", segundo a publicação.

A mineradora tinha planos de iniciar a exploração de ouro no Pará em 2015, mas até o hoje o projeto não saiu do papel devido a decisões judiciais que atenderam pedidos do Ministério Público contra o empreendimento. O caso segue em tramitação na Justiça.

Respostas das mineradoras às acusações:

Ao ser procurada, a Vale disse que o relatório tem "informações equivocadas" e lamentou não ter sido ouvida pela Apib e a Amazon Watch antes da publicação "uma vez que está sempre aberta ao diálogo e reconhece o importante papel das entidades de defesa dos direitos indígenas".

Sobre a acusação de contaminação do rio Cateté, a Vale afirmou "que o empreendimento Onça Puma, localizado a mais de 20 km de distância da Terra Indígena (TI) Kayapó, e fora dos limites da TI Xikrin, está licenciado pelos órgãos competentes e que retomou suas atividades regulares a partir da autorização do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2019, ratificada pelo Pleno do Tribunal".

"A decisão foi baseada em sete laudos elaborados por peritos judiciais especializados em diversas áreas científicas, com destaque para os de limnologia, geologia e metalurgia, os quais demonstraram cabalmente a inexistência de relação entre as atividades da empresa e a suposta contaminação do Rio Cateté", acrescentou.

A empresa informou ainda que tem cumprido ordem judicial do TRF-1 relacionada ao empreendimento Onça Puma e que, "até o momento, já depositou aproximadamente R$ 130 milhões" referentes ao Termo de Ajuste de Conduta (firmado com as associações indígenas e o Ministério Público Federal para a mitigação de danos causados à comunidade pela atuação da empresa).

Quanto aos requerimentos para explorar dentro de comunidades na Amazônia, a Vale respondeu "que não realiza atividades de pesquisa mineral ou lavra de qualquer natureza em terras indígenas no Brasil e respeita rigorosamente a legislação vigente".

A empresa também reforçou "que respeita o princípio do consentimento livre, prévio e informado junto às comunidades indígenas", conforme estabelece o Artigo 169 da convenção da Organização Internacional do Trabalho que prevê a consulta aos povos sempre que forem impactados por empreendimentos. A Vale disse ainda "que em seu plano de produção atual não estão sendo considerados recursos minerais ou reservas minerais em terras indígenas no Brasil".

Quanto à Estrada de Ferro Carajás (EFC), a Vale afirma que desde sua construção, no início da década de 80, "realiza atividades de apoio aos povos indígenas, incluindo ações nas áreas de saúde, educação, atividades produtivas, entre outras". Como exemplo, a empresa disse que há um "Termo de Compromisso em vigor que estabelece o valor de R$ 14 milhões anuais repassados mensalmente para as associações indígenas do Povo Gavião, que são responsáveis pela execução do recurso no seu etnodesenvolvimento".

"Todas as atividades da ferrovia são realizadas em conformidade à legislação vigente, respeitando os direitos dessas populações. Cabe esclarecer que a EFC não tem influência nas Terras Indígenas Araribóia e Xikrin do Cateté", acrescentou.

Procurada pela BBC News Brasil, a Anglo American disse que "não possui atualmente planos de exercer atividades minerárias em terras de povos indígenas no Brasil".

A empresa afirma que "desistiu de todos os requerimentos de pesquisa mineral localizados dentro das terras indígenas, mas diversos desses pedidos ainda constam do cadastro da Agência Nacional de Mineração (ANM)".

A mineradora informou também que "alguns requerimentos de pesquisa vigentes podem margear terras indígenas, apresentando blocos com pequenas interferências nesses territórios. Em casos assim, é papel da AMN demarcar esses blocos fora dos territórios indígenas".

A Anglo American acrescentou ainda que "se compromete a só explorar terras indígenas com Consentimento Livre Prévio e Informado (FPIC) dessas comunidades. Além disso, a empresa se compromete com um impacto positivo líquido sobre a biodiversidade em todos as regiões onde atua".

Já Belo Sun disse que "é infundada a ideia de que a empresa pretende explorar minério em terras indígenas, pois os títulos minerais estão fora das terras indígenas, a mais de 10 km da TI Paquiçamba e a mais de 14 Km da TI Arara da Volta Grande"

A empresa afirma ter um relacionamento "respeitoso e colaborativo" com esses povos e disse que "o licenciamento do Projeto Volta Grande segue todos os ritos pertinentes".

"O projeto continua com a Licença de Instalação (LI) suspensa pelo TRF-1 e a Belo Sun concluiu e submeteu com sucesso o Estudo de Componente Indígena (ECI) à FUNAI (Fundação Nacional do Índio), no final de fevereiro deste ano, seguindo os protocolos estabelecidos pela entidade, incluindo a coleta de dados primários e a consulta às comunidades indígenas em consonância com as diretrizes da Convenção 169 da OIT", informou ainda a mineradora.

Agronegócio

O relatório aponta Cargill, JBS e Cosan/Raízen como empresas de agronegócio que receberam investimentos de grandes corporações financeiras americanas.

Citando dados da organização europeia Trase, que rastreia o impacto ambiental de cadeias de produção agrícola, o relatório acusa a produtora e processadora de alimentos americana Cargill de continuar como "um dos traders de soja mais expostos a risco de envolvimento em desmatamento", apesar de a companhia "ser signatária da Moratória da Soja na Amazônia e afirmar que cerca de 95% da sua safra 2018-19 é livre de desmatamento e conversão".

Ainda segundo o levantamento, a Cargill foi em 2018 "a segunda trader de soja que mais exportou o grão produzido nos 15 municípios com maior área de soja em fazendas associadas com desmatamento ilegal no Mato Grosso.

O relatório diz ainda que a atuação da Cargill na região do Tapajós (Pará), o que inclui a construção de um complexo de portos para escoar produção, é apontada como "um fator decisivo para o crescimento da produção de soja que tem acirrado disputas locais e aumentado a pressão sobre as Terras Indígenas".

Segundo a publicação, a produção de soja com uso de agrotóxicos no Pará por fazendas que seriam fornecedoras da Cargill tem impactado o povo indígena Munduruku, que ainda não tem seu território demarcado, devido a ameaças por parte de fazendeiros e por causa de contaminação e assoreamento de rios e igarapés.

No caso da JBS, maior processadora de carne do mundo, o relatório acusa o grupo de continuar comprando gado de produtores que invadem terras indígenas, mesmo já tendo se comprometido no passado a eliminar essa prática.

A publicação cita um relatório da Anistia Internacional de julho que indicou que a cadeia de fornecimento da JBS adquiriu gado de fazendas sobrepostas à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, na Amazônia. Além disso, destaca uma reportagem de agosto da Agência Pública denunciando o mesmo problema com uma fazenda que cria gado ilegalmente dentro da Terra Indígena Kayabi, no Mato Grosso.

Já a Cosan é citada no relatório devido a uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal em 2017 com um pedido de indenização de R$ 129,83 milhões ao povo Xavante da TI Marâiwatsédé pelas violações de direitos humanos sofridas com a construção sobre as Terras Indígenas do projeto agrícola Suiá- Missu. São réus na ação a Funai, o estado do Mato Grosso e nove herdeiros da família Ometto, sócios da Cosan.

"Na década de 1960, a família Ometto, dona da Cosan na época, recebeu autorização do governo federal para criar a Agropecuária Suia-Missú S/A. O empreendimento na região compreendia entre 800 mil e 1,7 milhão de hectares, e é considerado o maior latifúndio do Brasil. Sua implementação envolveu a remoção forçada da comunidade Xavante da Terra Indígena Marãiwatsédé, que foi submetida a um regime de trabalho análogo à escravidão, ao serem utilizados como mão de obra na fazenda. Apenas nos anos 2000, os Xavante tiveram parte de sua área demarcada e homologada", acusa o relatório.

Embora o grupo Cosan não possua mais terras na área da TI Marâiwatsédé, a publicação diz ainda que "as ramificações do caso são sentidas até hoje", com a continuidade de invasões de produtores rurais. "A TI Marâiwatsédé é a Terra Indígena mais desmatada da Amazônia Legal, com perda de 75,5% de sua cobertura vegetal original", destaca o documento.

Respostas do agronegócio às acusações

Procurada pela reportagem, a Cargill disse que "sempre busca atuar com base em princípios éticos e em conformidade com a legislação das localidades onde atua, a fim de fortalecer os sistemas alimentar e agrícola".

A empresa lista como compromissos essenciais: demonstrar integridade, ética e transparência; operar cadeias de abastecimento sustentáveis; proteger os direitos humanos; promover a inclusão e a diversidade; e garantir a segurança das pessoas, animais e do sistema alimentar.

A empresa disse ainda que apoia "o consentimento prévio, livre e informado" dos povos indígenas quanto a atividades que impactem seus territórios, como elemento fundamental para proteger seus direitos.

A Cargill destacou também seu papel como um dos principais apoiadores da "Moratória da Soja na Amazônia", pacto voluntário entre produtores e ONGs ambientais contra o desmatamento firmado em 2006.

"Com a assinatura do documento, a indústria se comprometeu a não comprar soja de terras desmatadas após 2008. Esse esforço já contribuiu para a queda de 80% do desmatamento na Amazônia na última década e, em 2016, foi prorrogado indefinidamente", ressalta a Cargill.

"Também temos o compromisso público de eliminar o desmatamento em nossas cadeias produtivas até 2030. Para atingir essas metas, temos planos de ação focados nas cadeias prioritárias, incluindo a soja na América do Sul", destacou também.

Em resposta às acusações, a JBS ressaltou "que tem o propósito de produzir de uma maneira cada dia mais sustentável e trabalha há mais de uma década na linha de frente para promover mudanças significativas e responsáveis na região amazônica".

Segundo a empresa, "o sistema de monitoramento da JBS garante que 100% de seus fornecedores diretos estão em conformidade com rígidos critérios socioambientais da Política de Compra Responsável, que rege o relacionamento da companhia com seus fornecedores".

A companhia disse ainda que "apresentou em setembro a Plataforma Verde JBS, que permitirá estender o monitoramento que já faz de seus fornecedores aos demais elos da cadeia e a criação do Fundo JBS pela Amazônia, dedicado a financiar ações e projetos para ampliar a conservação da floresta e o desenvolvimento sustentável das comunidades que nela vivem, com aporte inicial de R$ 250 milhões nos primeiros cinco anos e meta de chegar ao total de R$ 1 bilhão até 2030".

A empresa lembrou ainda seu programa Boi na Linha, desenvolvido em parceria com o Ministério Público Federal e a ONG brasileira Imaflora, para "desenvolver estratégias setoriais que podem ser aplicadas a toda a indústria de carne bovina".

A Cosan, por sua vez, disse que "nunca teve titularidade das terras mencionadas no documento nem qualquer atuação nesses eventos", ao responder sobre as acusações relacionadas ao impacto do projeto agrícola Suiá-Missu sobre o povo Xavante.

"Os fatos de que tratam o relatório são de mais de 50 anos atrás e já foram resolvidos com a demarcação (da Terra Indígena). As outras empresas do grupo, citadas inadvertidamente no documento, também não possuem nenhuma relação com os episódios. Em relação ao sr. Rubens Ometto Silveira Melo, ele nunca teve qualquer participação na empresa que adquiriu as terras", disse ainda o comunicado da Cosan.

Empresas de energia

A Eletronorte, subsidiária da Eletrobras, foi incluída no relatório devido à tentativa da empresa "de viabilizar a construção de uma linha de transmissão entre os estados de Roraima e do Amazonas que passará diretamente sobre as terras do Povo Indígena Waimiri-Atroari", grupo traumatizado pelo massacre sofrido nas décadas de 1970 e 1980, com a construção da estrada BR-174 durante a ditadura militar.

Esse povo, por sua vez, exige o cumprimento da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que prevê às comunidades atingidas por empreendimentos o direito a serem previamente consultados de forma livre e informada.

Segundo a publicação, os Waimiri-Atroari estão preocupados com o Projeto de Lei Complementar 275/2019 em tramitação no Congresso, que visa desburocratizar esse tipo de empreendimento em terras indígenas. O povo teme esse projeto repita o impacto de outras grande obra já feitas na Amazônia como imigração descontrolada, disseminação de doenças, aumento da violência, conflitos e invasões de terras.

Já a Energisa Mato Grosso foi citada no relatório devido a ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal contra a empresa por sua atuação dentro da Terra Indígena Urubu Branco, do povo Tapirapé. Na avaliação do MP, a empresa contribuiu para o processo de grilagem e desmatamento do território ao promover a eletrificação para posseiros ilegais que estão na área indígena. Por outro lado, a empresa teria se negado a fornecer energia para os indígenas, ainda segundo a ação.

A Equatorial Energia Maranhão, por sua vez, é acusada no relatório de ter um "histórico de conflitos com indígenas no estado do Maranhão, em disputas sobre instalação de linhas de energia".

Segundo a publicação, o Ministério Público Federal denunciou em 2018 a Equatorial (antiga Cemar) "por firmar um acordo nulo e insuficiente com o Povo Indígena Krikati e a Funai por permitir a passagem de duas linhas de transmissão sobre a TI Krikati".

Além disso, o relatório diz que a empresa tenta "acelerar o processo de instalação da linha de transmissão Miranda do Norte-Três Marias, cujos impactos afetam os indígenas Akroá-Gamella – uma etnia que busca há quatro décadas a demarcação de suas terras no Maranhão".

Respostas das empresas de energia às acusações:

A BBC News Brasil entrou em contato na segunda-feira por email com a Eletronorte e o grupo Equatorial Energia, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem

A Energisa Mato Grosso disse que são "inverídicas as acusações" de que contribuiu com grileiros da Terra Indígena Urubu Branco, em prejuízo do povo Tapirapé. A empresa afirma que "as 164 ligações de energia feitas na Terra Indígena" foram realizadas no âmbito do programa Luz para Todos, do governo federal. Desse total, segunda a companhia, 124 são indígenas ou unidades consumidoras que atendem os indígenas, como escolas e postos de saúde públicos, não sendo verdade que houve recusa em atender a esse grupo.

"Todas essas informações foram prestadas à Justiça Federal, em abril de 2020, pela Energisa Mato Grosso, com documentos que respaldam a posição da empresa. A Energisa Mato Grosso lamenta que só tenha sido procurada pela APIB na noite do último dia 22 de outubro, mesmo a entidade admitindo que a coleta das informações que embasam o relatório foi feita em junho de 2020", criticou a companhia.

"A Energisa Mato Grosso reafirma que atua com absoluto respeito à legislação para prover energia elétrica com segurança, conforto e qualidade a 1,5 milhão de clientes. A empresa cumpre o papel primordial de levar energia a grande parte da Amazônia Legal, com respeito aos pactos e acordos internacionais de proteção aos povos indígenas e ao meio ambiente", finalizou a empresa.

As acusações e as respostas dos investidores

BlackRock:

Maior gestora de ativos do mundo, a BlackRock investiu US$ 8,2 bilhões no total nas empresas Anglo American, Belo Sun, Cargill, Cosan, Eletrobras, Energisa, Equatorial, Vale e JBS, desde 2017, segundo o relatório.

A publicação destaca que "muitos dos ativos que a BlackRock administra internacionalmente são mantidos em fundos indexados (que rastreiam índices de mercado), e são oferecidos a investidores em todo o mundo" e que, "no Brasil, a maioria desses investimentos acontece via 'índices representativos', que são selos de qualidade da B3, a Bolsa de Valores brasileira, e funcionam como um guia para o investidor, indicando ativos mais promissores em cada segmento".

Procurada, a BlackRock informou que trata dos riscos sociais, ambientais e de governança com as empresas nas quais investe e se posiciona em votações de acionistas contra as administrações quando o diálogo não é suficiente.

"O desmatamento e os direitos indígenas são questões críticas, que também trazem riscos para o retorno do investimento. Nós nos envolvemos com empresas sobre estes e outros riscos sociais, ambientais e de governança. E, onde eles não estão sendo adequadamente gerenciados ou o progresso não é suficiente, nós votamos contra a administração", disse um porta-voz da empresa.

No caso da JBS, por exemplo, a BlackRock votou em abril contra a eleição de três membros do Conselho Fiscal porque "o nomeado não demonstrou capacidade de representar efetivamente os melhores interesses dos acionistas", segundo registro público da votação. Não está claro, porém, se isso teve relação com questões socioambientais.

A empresa BlackRock é acionista minoritária na maioria das empresas citadas no relatório, não tendo peso sobre decisões estratégicas. Seus clientes podem optar por investir, por exemplo, em índices de ações e fundos de ações que incluem papéis dessas empresas.

No caso da Cargill, os investimentos dos clientes da BlackRock podem ser feitos em títulos de dívida, que não dão direito de voto como no caso dos acionistas.

J.P. Morgan Chase:

O banco J.P. Morgan investiu no total US$ 2,4 bilhões desde 2017 nas empresas Anglo American, Cargill, Cosan, Energisa, Vale, JBS, Equatorial e Eletrobrás, de acordo com o relatório.

Procurado, o banco não fez comentários específicos sobre o relatório ou as empresas que financia, e destacou suas iniciativas no campo da sustentabilidade.

No caso de transações que podem impactar potencialmente povos indígenas, um documento do banco para questões sociais e ambientais diz esperar que seus clientes demonstrem alinhamento a padrões de conduta estabelecidos pelo Banco Mundial, prevendo que haja "consentimento prévio, livre e informado" dos povos atingidos pelos empreendimentos.

O banco também diz aderir às melhores práticas para questões sociais e ambientais, como os Princípios para Investimento Responsável da ONU.

A regras internas do J.P Morgan Chase também proíbem empréstimos ou outros serviços do banco a algumas atividades, como "empresas que conspiram ou estão conscientemente envolvidas na extração ilegal de madeira" e " que utilizem intencionalmente o incêndio descontrolado como meio de desmatamento".

Citigroup:

Segundo a publicação da Apib e Amazon Watch, o Citigroup investiu quase US$ 2,2 bilhões de dólares entre 2017 e 2020 na Anglo American, Cargill, Cosan, Eletrobras, Energisa, JBS e Vale. O banco não quis comentar o relatório.

Em suas diretrizes para questões ambientais e sociais, o Citigroup "reconhece que proteger e conservar áreas de habitat crítico, biodiversidade significativa e/ou alto valor de conservação, incluindo áreas legalmente protegidas, é fundamental para uma gestão de risco ambiental e social de alta qualidade".

"Somos guiados por padrões que exigem que os clientes evitem ou mitiguem ameaças à biodiversidade decorrentes das operações dos clientes e gerenciem de forma sustentável os recursos naturais", diz ainda o documento.

No caso de ações que impactem florestas, as regras do banco requerem "avaliações robustas de risco ambiental e social para todos os clientes florestais anualmente e se aplica a todos os clientes que estão diretamente envolvidos na extração de madeira ou processamento primário de madeira de florestas naturais ou plantações, independentemente da relação bancária, tipo ou montante da transação".

Bank of America:

O Bank of America também não quis comentar o relatório. Segundo a publicação, o banco contribuiu com US$ 1,45 bilhão entre 2017 e 2020 para Anglo American, Cargill, Cosan, Eletrobras, Energisa, Vale e JBS.

Em sua página sobre compromisso com sustentabilidade ambiental, o Bank of America diz que "mobilizou mais de US$ 158 bilhões em financiamento para atividades de negócios sustentáveis e de baixo carbono em todo o mundo", dentro da sua Iniciativa de Negócios Ambientais.

O banco diz ainda que investe no desenvolvimento de soluções para as mudanças climáticas e outros desafios ambientais, como "energia de baixo carbono, eficiência energética e transporte sustentável, além de abordar outras áreas importantes como conservação de água, uso da terra e resíduos".

Dimensional Fund Advisors:

A Dimensional Fund Advisors investiu pouco mais de US$ 1 bilhão na Anglo American, Cosan, Energisa, Equatorial, Eletrobrás, Vale, Cargill e JBS, de 2017 a 2020, segundo o relatório.

A empresa informou a reportagem que gerencia fundos mútuos e outras carteiras em nome de clientes, administrando "mais de US$ 500 bilhões em ativos com mais de 15.000 ações listadas publicamente, representando amplos mercados de ações em muitas carteiras".

Sobre as acusações, a Dimensional respondeu que "projetou processos inovadores para integrar considerações ambientais, sociais e de governança em soluções de investimento sistemáticas amplamente diversificadas e de valor agregado".

A empresa também disse que lançou seus primeiros "fundos sustentabilidade" há mais de uma década, oferecendo hoje aos clientes "portfólios de (investimentos em ativos com) sustentabilidade com foco em ações dos Estados Unidos, internacionais e de mercados emergentes, bem como títulos globais".

Vanguard:

Segunda maior gestora de ativos do mundo, a Vanguard investiu US$ 2,7 bilhões de 2017 a 2020 nas empresas Anglo American, Cosan, Cargill, Eletrobras, Energisa, Equatorial, Vale e JBS, de acordo com o relatório.

Procurada pela reportagem, a Vanguard destacou ter mais de 30 milhões de investidores em todo o mundo e manifestou estar "profundamente preocupada com os impactos de longo prazo das mudanças climáticas e transgressões dos direitos humanos".

"Compreendemos a importância de abordar essas questões complexas, ao mesmo tempo em que permanecemos comprometidos em fornecer valor de longo prazo aos detentores de fundos", disse também a gestora de ativos.

A Vanguard ressaltou ainda que danos aos indígenas também são arriscados para seus clientes. "Se as práticas de negócios ou produtos de uma empresa causam danos às comunidades indígenas ou colocam em risco a saúde, a segurança ou a dignidade das pessoas, eles também apresentam riscos financeiros de longo prazo. Por meio de nossos compromissos, buscamos a garantia de que os conselhos (das empresas) fiscalizem e assumam esses riscos e tomem as medidas adequadas para mitigá-los e divulgá-los ao mercado", acrescentou a Vanguard.

As violências contra os povos indígenas são estimuladas pelo governo

Ao longo das décadas, os povos indígenas viram seus territórios serem invadidos, loteados e explorados por aqueles que desejam implementar grandes projetos econômicos de mineração, garimpo, criação de gado e plantio de soja em suas terras. Viram a imposição de uma política predatória e devastadora dos bens ambientais e das águas. Uma política propositadamente implementada para aniquilar direitos, o modo de ser dos povos e suas perspectivas de vida e de futuro. As violências e violações contra os povos indígenas são, no Brasil, práticas sistemáticas. Elas formam a base sobre a qual, desde 1964, projetos desenvolvimentistas avançaram, ao custo de expropriações forçadas, redução ou eliminação de territórios, epidemias induzidas e assassinatos de lideranças.

Nos últimos anos, porém, temos assistido a uma escalada sem precedentes nos ataques aos territórios, inclusive com a venda de lotes de terra em áreas demarcadas. No ano de 2019, primeiro sob a presidência de Jair Bolsonaro, o recém-lançado relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou um crescimento inédito das invasões e danos ao patrimônio indígena: foram 256 casos, 135% a mais do que no ano anterior, que atingiram 143 povos e 151 terras indígenas em 23 estados. Essas invasões referem-se a uma série de danos, tais como exploração ilegal de madeira, garimpos, pesca e caça predatórias, incêndios, loteamento ilegal de terras, grilagens; invasões para formação de fazendas agropecuárias e para empreendimentos de infraestrutura rodoviária, ferroviária e energia elétrica. Também houve contaminação de águas e alimentos por agrotóxicos e 35 registros de conflitos territoriais. Além disso, houve 113 assassinatos, 24 tentativas de assassinatos e 33 ameaças de morte contra indígenas. Dos 133 suicídios registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a maioria afeta jovens, entre 14 e 29 anos, do sexo masculino. A desassistência à saúde resultou em 825 mortes de crianças entre 0 e 5 anos por causas tratáveis, na maior parte dos óbitos.

Além do registrado em 2019, o descaso em relação à saúde desses povos também tem se refletido de maneira bastante severa no combate à pandemia de covid-19. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, até o dia 20 de outubro havia 37.219 indígenas de 158 povos infectados pelo novo coronavírus e 856 óbitos ocasionados pela doença. No Mato Grosso do Sul, um dos estados com os maiores índices de contágio, são 2.400 infectados; no Maranhão foram, até o momento, 1.533 casos e 27 mortes. As lideranças indígenas do Maranhão relatam problemas como a falta de medicamentos, remédios vencidos, má distribuição de recursos e de equipamentos de proteção individuais. Faltam inclusive caixões para enterrar os mortos.

Desde a década de 1980, quando começou a registrar regularmente as violências cometidas contra os povos originários, o Cimi utiliza as informações sistematizadas pelo Relatório em defesa das comunidades, fazendo denúncias aos poderes públicos no Brasil e a organismos nacionais e internacionais.

“A cada publicação, percebemos que as violências e violações são uma constante invariável, praticadas por agentes ávidos pela destruição e pela apropriação dos recursos naturais dos territórios indígenas em nome do lucro e de uma racionalidade econômica desenvolvimentista – uma perspectiva segundo a qual o desejo de trabalhar a terra em consonância com as necessidades familiares e com a transcendência que une matéria, espírito e cosmos é apenas uma expressão do ‘atraso’”, diz Lúcia Helena Rangel, assessora antropológica do Cimi e professora de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Esta visão unicista de produtividade, que irmana empresários, grileiros e assaltantes ilegais da madeira, do minério e dos peixes, reconhece apenas o valor das grandes plantações e dos grandes negócios. Onde vivem povos e comunidades indígenas existem mais recursos naturais e mais árvores em pé, mais água, mais animais, isso os satélites já mostraram. Mas nelas há uma também realidade dramática, composta por diversas formas de expropriação, esbulho e espoliação de terras, sustentada por uma política de Estado composta por princípios depredadores e destruidores de vida. As agressões ao patrimônio indígena – que muitas vezes se desdobram, também, em agressões às pessoas que vivem nesses territórios – continuam a evidenciar o quanto as terras indígenas são vulneráveis às ações desses agentes que cobiçam os recursos e as riquezas nelas existentes.

Os dados de 2019 demonstram o aumento significativo das omissões do governo federal em relação às suas obrigações constitucionais no que tange aos povos indígenas. Tais omissões contam com a complacência do mais alto dirigente do país, Jair Bolsonaro. Assim ocorre quando o próprio presidente da República deixa de cumprir o artigo constitucional que determina que se demarquem e titulem terras indígenas e quilombolas. Assim ocorre quando o próprio presidente da República esvazia o órgão indigenista oficial, retirando de seu quadro especialistas e técnicos, trocando-os por indicações políticas dos ruralistas.

O governo fez de seus órgãos e ministérios – Funai, Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Incra – instâncias que passaram a contestar os direitos constitucionais dos povos indígenas, propagando discursos inclusive sobre a necessidade de revisão destes direitos e propondo que as terras tradicionais fossem disponibilizadas para a especulação econômica.

Concomitante a essa perspectiva de governo, houve a imposição de limites assistenciais aos indígenas pela Funai, determinando-se que somente seriam assistidos aqueles que não estivessem requerendo e/ou lutando por demarcação. O governo acabou por transformar o órgão indigenista oficial em uma espécie de agência reguladora de negócios dentro de terras indígenas demarcadas, firmando acordos com latifundiários. Além disso, determinou a suspensão de todos os estudos demarcatórios e mandou rever os que estavam em andamento.

“Há uma intencionalidade expressa do presidente da República em promover a desconstitucionalização dos direitos indígenas; em desencadear um intenso processo de desterritorialização dos povos, retirando-os de seus lugares originários e transferindo-os para cidades e reservas; em estabelecer, como política de Estado, a integração dos indígenas à sociedade envolvente. Não é de hoje. Ainda como deputado federal, Bolsonaro apresentou propostas contrárias aos direitos indígenas, a exemplo do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 170, de 1992, que pretendia revogar a demarcação Terra Indígena (TI) Yanomami”, afirma Roberto Antonio LIebgott, missionário e coordenador do Cimi Regional Sul, graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (Fafimc) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

A lógica de pensamento do grupo que está no poder carrega consigo outras três graves características: a desqualificação dos povos indígenas enquanto sujeitos de direitos, fato amplamente propagado pelo presidente da República ao longo do ano de 2019, chegando a dizer que “índio não precisa de terra” e que deve ser integrado à sociedade; a desvalorização das formas e dos processos de produção dos povos indígenas, reativando os estereótipos que retratam estas populações como improdutivas, indolentes e obsoletas – que servem, por sua vez, para justificar que as terras que seriam demarcadas para o usufruto exclusivo destes povos sejam disponibilizadas aos produtores não indígenas; a desumanização da pessoa do indígena, retomando a imagem de que são um estorvo, empecilho, um problema a ser removido – conceituação com base na qual  se promovem as mais variadas formas de agressões.

Ao se analisar o conjunto de medidas e de discursos de integrantes do governo Bolsonaroconsegue-se entender o esfacelamento das políticas assistenciais de educação, de saúde, de proteção aos povos livres (também conhecidos como isolados) e de demarcação de terras, bem como a imposição de um clima de insegurança e violências em todas as regiões onde há presença indígena.

No âmbito da política de educação, as afirmações do presidente e de seus ministros, de que os povos indígenas devem ser integrados ao mercado, que devem assumir formas de viver e pensar da sociedade majoritária para se tornarem, no dizer do presidente da República, “humanos como nós”, desrespeitam premissas constitucionais previstas nos artigos 231, 232, 210 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim, a perspectiva assimilacionista é reavivada, nos moldes do regime ditatorial, e a oferta de educação escolar visa, portanto, romper com as perspectivas de consolidação de uma política pautada na diferença, a partir de um amplo conjunto de leis que garantem a educação escolar indígena específica, diferenciada, plurilíngue, organizada de modo a respeitar as pedagogias e os processos de aprendizagem de cada povo. Esse direito constitucional foi desrespeitado e os dados do Relatório indicam o abandono da educação, das escolas e dos professores. Não há infraestrutura, não há material didático, não há formação.

A política de proteção aos povos livres ou em situação de isolamento voluntário foi esvaziada e suas estruturas físicas e de pessoal destruídas ao longo de um ano. As informações apontam que está em curso o extermínio programado dos povos indígenas livres. Não se trata tão somente de uma omissão do governo Bolsonaro, mas de ação deliberada no sentido de possibilitar a invasão dos territórios, o que, historicamente, significou a violência e o massacre desses povos. Faz parte desse plano depredador e genocida a desconstrução de todo o sistema de proteção da Funai, ao mesmo tempo que, ora de forma velada, ora de forma explícita, respalda os invasores de seus territórios.  Os levantamentos feitos pela Funai e pelo Cimi dão conta da existência de 116 registros povos isolados, grande parte dos quais em áreas sem qualquer providência em termos de demarcação e proteção de suas terras.

As demarcações, paralisadas desde o governo Michel Temer, sofreram ainda maiores retrocessos com o governo Bolsonaro. É o que mostram as mudanças quanto ao papel do Estado na condução da política de demarcação de terras, bem como a sua proteção e fiscalização. O governo, no atual contexto, age como legalizador ou autorizador das invasões e da exploração destas terras, na medida em que atua para inviabilizar qualquer possibilidade de que elas venham a ser demarcadas. Contrariando preceitos constitucionais, o governo abre mão da responsabilidade de preservação dos bens do Estado e lança mão de discursos e de medidas administrativas que estimulam a expansão agropecuária, o garimpo, a mineração, a exploração de madeira, a caça e pesca predatória, o loteamento e a grilagem das áreas que deveriam ser preservadas.

No ano de 2019, houve, logo depois da posse do presidente Bolsonaro, a iniciativa de se transferir a Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, por meio de Medida Provisória. A função principal do órgão indigenista – a demarcação de terras – foi transferida para o Ministério da Agricultura. Frente ao veemente posicionamento e pressão dos povos indígenas e das entidades indigenistas, essas mudanças foram rejeitadas por decisão do Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As atribuições de demarcação, proteção e fiscalização das terras voltaram a ser integralizadas na Funai, sob o comando do Ministério da Justiça, mantendo-se a estrutura anterior. No entanto, isso não implicou num realinhamento das propostas e perspectivas fundiárias do governo.

E para dar forma de legalidade a todas as medidas contrárias aos povos indígenas, o governo se amparou no Parecer 001, da Advocacia Geral da União (AGU), que vigora desde 2017. Neste parecer, se adotou uma lógica de desqualificação dos direitos constitucionais indígenas, aplicando de forma enviesada as 19 condicionantes do julgamento da ação popular contra a demarcação da TI Raposa Serra do Sol, o qual estabeleceu que elas se referiam tão somente àquele caso concreto, não sendo vinculantes a outros procedimentos demarcatórios.

Além das condicionantes, a AGU também impôs a tese do “marco temporal” nos procedimentos de demarcação de terras futuras, o que também contraria o julgamento referido e as decisões do STF sobre o tema. Esta tese restringe as demarcações apenas àquelas terras que estivessem sob posse comprovada dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988. Ao fazer isso, legaliza e legitima as violências que atingiram os povos originários antes desta data, ignorando as violações da Ditadura Militar e o fato de que, até então, estes povos eram tutelados pelo próprio Estado que violava seus direitos.

“Há, com a promoção dessa desestruturação das políticas, um propósito muito evidente do governo Bolsonaro: o de intensificar a exploração primária das terras onde há recursos ambientais, minerários, hídricos, bem como identificar as potencialidades produtivas para se colocar mais boi nos pastos e plantar soja transgênica. Nesse contexto, a promoção de incêndios criminosos na Amazônia, a retirada ilegal de madeira, o avanço de garimpeiros e a grilagem de áreas de florestas são, do ponto de vista do governo, essenciais para consolidar a transferência do patrimônio público para a iniciativa privada”, diz Rangel.

Parte das forças políticas e econômicas que dão sustentação ao governo Bolsonaro são, nas regiões, as mesmas forças que agridem e deslegitimam as lutas dos povos indígenas por seus territórios. Esse foi o caso do assassinato de Paulo Paulino Guajajara, ocorrido no dia 1º de novembro de 2019 na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, onde a ausência e a omissão absolutas do Estado levaram os indígenas a colocar suas próprias vidas em risco para fiscalizar e proteger seus territórios através de grupos de Guardiões da Floresta. A atuação dos Guardiões desperta reações violentas de madeireiros, grileiros e invasores.

Os povos indígenas enfrentam essa realidade de violência articulando ações e cobrando medidas para combatê-las no âmbito dos poderes públicos. Mas há de se fazer mais. Precisamos intensificar as campanhas em defesa destes povos, das terras e do meio ambiente junto aos organismos internacionais, requerendo também deles que se voltem para o Brasil e exijam do governo o respeito aos direitos humanos. Os gritos de dor e as lutas dos povos denunciam as variadas formas de violência e constituem-se em apelo em defesa da vida e pela garantia e consolidação dos direitos indígenas no Brasil.


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