28/03/2024 - Edição 540

Poder

Humilhação de generais vira rotina sob Bolsonaro

Publicado em 30/10/2020 12:00 -

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Deve doer nos integrantes da ala militar do governo a percepção de que fazem o papel de generais desastrados, numa peça confusa, em que o protagonista é um capitão destrambelhado e o epílogo é o centrão. Aos pouquinhos, os generais vão se tornando asteriscos humilhantes de um governo em que imaginavam ser os mais importantes. Jair Bolsonaro humilha-os e permite que sejam humilhados. Resignados, os generais humilham-se a si mesmos.

O paraquedista Eduardo Pazuello assumiu a pasta da Saúde depois que Bolsonaro fritou o ortopedista Henrique Mandetta e tostou o oncologista Nelson Teich. Agora, carbonizado pelo chefe na guerra da vacina, o general tornou-se uma porção de cinzas. E conformou-se com o seu novo estado: "Um manda e outro obedece."

Luiz Eduardo Ramos trocou o prestigioso Comando Militar do Sudeste pelo posto de comandante de uma escrivaninha no Planalto. Assumiu a Secretaria de Governo da Presidência. A vaga era ocupada pelo também general Carlos Alberto dos Santos Cruz, dissolvido nos primeiros seis meses do governo num caldeirão em que se misturavam ataques de um filósofo autoproclamado, Olavo de Carvalho, e de um filho aloprado, Carlos Bolsonaro.

Menos de 24 horas depois da calcinação do amigo Pazuello, Ramos caiu numa fritura sui generis. Quem manuseia o cabo da frigideira não é o presidente, mas o colega civil Ricardo Salles, titular da pasta do Meio Ambiente. Membro do bloco ideológico-apocalíptico do governo, Salles plugou-se às redes sociais para grudar em Ramos a hashtag #mariafofoca. Não se ouviu um pio do general. Tampouco o presidente se manifestou em público.

Relações administrativas são regidas por uma combinação lógica de fatores. Se um ministro executa movimentos que não coincidem com a tática do chefe, ele é mandado embora. Se o presidente desfaz o que estava combinado, aí é o ministro quem pede para sair. Quando um Pazuello prefere bater continência para a humilhação a elevar a própria estatura, reduz o pé-direito do ministério.

Quando um ministro vai às redes sociais para desmoralizar um colega e nada acontece, desmoraliza-se o governo. Se a desmoralização ocorre no Meio Ambiente, esculhamba-se o ambiente inteiro. O fogo não arde apenas na Amazônia e no Pantanal. Há incêndio também nos gabinetes de Brasília. Estabeleceu-se nesse setor um duplo comando que não tem o menor risco de dar certo.

Bolsonaro impôs a Ricardo Salles uma convivência compulsória com o vice-presidente Hamilton Mourão, convertido em coordenador do Conselho Nacional da Amazônia. Subordinado a Salles, o Ibama suspendeu o combate às queimadas sob a alegação de que o Tesouro Nacional não liberou as verbas. Incumbido de melhorar a imagem ambiental do Brasil, o general Mourão abespinhou-se por não ter sido avisado. Entrou em campo para abrir o cofre.

Os generais do Planalto tomaram as dores de Mourão. Salles enxergou as digitais de Luiz Eduardo Ramos numa nota publicada no Globo. Despejou sua insatisfação nas redes sociais: "Tenho enorme respeito pela instituição militar. Como em qualquer lugar, infelizmente, há sempre uma maçã podre a contaminar os demais. Fonte de fofoca, intriga, de conspiração e da discórdia, o problema é a banana de pijama."

Decorridos alguns minutos, Salles decidiu dar nome à banana. Apagou a primeira mensagem e postou algo mais incisivo: "@Min-LuizRamos não estiquei a corda com ninguém. Tenho enorme respeito e apreço pela instituição militar. Atuo da forma que entendo correto (sic). Chega dessa postura de #mariafofoca."

O general Santos Cruz, antecessor de Ramos na coordenação política do Planalto, fez uma avaliação ácida logo que foi expurgado do governo. Definiu o governo Bolsonaro como "um show de besteiras", que "tira o foco daquilo que é importante." No último dia 23, Santos Cruz levou à vitrine do Twitter um ensinamento para os colegas que continuam no governo.

"Hierarquia e disciplina, na vida militar e civil, são princípios nobres", anotou o ex-ministro. "Não significam subserviência e nem podem ser resumidos a uma coisa 'simples assim, como um manda e o outro obedece'… como mandar varrer a entrada do quartel."

O acúmulo de humilhações simplifica a vida dos militares do governo. Para demonstrar alguma altivez, basta que os generais continuem agachados. O "festival de besteiras" logo evoluirá para o estágio da balbúrdia. Se é que já não evoluiu.

Ex-porta-voz critica Bolsonaro: 'Poder corrompe'

Demitido em 7 de outubro da função de porta-voz da Presidência da República, o general Otávio do Rêgo Barros quebrou o silêncio. Sem mencionar o nome do presidente, comparou-o num artigo de jornal a Júlio César. Bateu com vigor: "Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói!"

O artigo foi publicado no Correio Braziliense no último dia 27. Nele, Rêgo Barros anotou que "a estabilidade política do império está sob risco." Insinuou que Legislativo e Judiciário devem manter Bolsonaro sob vigilância.

"As demais instituições dessa República —parte da tríade do poder— precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do 'imperador imortal'. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões."

O título do artigo é uma expressão em latim: "Memento mori". Mal traduzindo, seria algo como "lembra-te que vais morrer." Júlio César tinha um escravo sempre do lado para dizer no seu ouvido: "Lembra-te que és mortal." Era para prevenir contra a megalomania. Nos momentos de aclamação, servia para recordar a César que ele também estava sujeito à condição humana.

"Infelizmente, nos deparamos hoje com posturas que ofendem àqueles costumes romanos", lamentou o general. "Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião."

Num instante em que Bolsonaro renega a Lava Jato e confraterniza com o centrão, Rêgo Barros cutucou: "É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais."

Desprezado por Bolsonaro, o ex-porta-voz fez uma analogia entre o papel que exercia no Planalto e as atribuições de um cochichador de Júlio César. Insinuou que, além de se distanciar dos compromissos de 2018, o presidente faz ouvidos moucos para o "memento mori".

"Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais —escravos modernos— que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos."

Depreende-se do texto do general, que o capitão dá de ombros para todos os que ousam recordar que ele também é mortal. Alguns assessores, escreveu Rêgo Barros, "deixam de ser respeitados". Outros são "abandonador ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas."

O general prosseguiu: "O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal."

Rêgo Barros definiu "discordância leal" como um conceito importado das "forças armadas profissionais". Trata-se de uma "ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso."

Sempre evitando citar o nome do ex-chefe, Rêgo Barros pareceu incomodado com a percepção de que alguma coisa subiu à cabeça de Bolsonaro, transformando-o numa liderança que imagina desempenhar uma missão especial, de inspiração celestial.

"A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias", escreveu Rêgo Barros. "Não aceita ser contraditada. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste."

Além de recomendar atenção aos outros Poderes, o general exalta o papel de um setor que Bolsonaro abomina: "A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César."

Em última instância, declarou o ex-porta-voz, "a população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade."

Abra-se aqui um parêntese. A menção ao Rubicão não é gratuita. Rêgo Barros não disse em seu artigo, mas o lance mais revelador do caráter de Júlio César foi uma traição. General vitorioso, César conquistara as Gálias. Dividia o poder com Pompeu, que ficara na retaguarda.

Uma lei impedia que um general, vitorioso ou não, entrasse em Roma com seu exército, a não ser em casos específicos determinados pelo Senado, o chamado "triunfo". Mal comparando, o "triunfo", era a versão romana de uma escola de samba. Tinha data e hora para acontecer.

Para evitar golpes de Estado, nenhum exército poderia transpor o Rubicão. César cruzou o riacho, que servia como limite moral. Pronunciou a célebre frase: "Alea jacta est" (A sorte está lançada). Perseguiu Pompeu até derrotá-lo. Sozinho no poder, iniciou a era do cesarismo —que os famintos de poder cedo ou tarde copiam. Fecha parêntese.

Nas palavras do general Rêgo Barros, cabe à sociedade demarcar um Rubicão imaginário que Bolsonaro não poderia transpor, sob pena de ser punido "rigorosamente". Ao final, caberia à sociedade assumir "o papel de escravo romano", escreveu o ex-porta-voz. "Ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: "Lembra-te da próxima eleição!".

É como se o ex-porta-voz, após conviver com Bolsonaro, tivesse a convicção de que o capitão não vai ao Rubicão beber água.

Santos Cruz classifica governo de Bolsonaro como “despreparado e boçal”

O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro, criticou o desrespeito cometido, segundo ele, pelo presidente da República com as instituições, os militares e a população em geral. O ex-ministro evitou citar o nome de Bolsonaro e de colegas ligados às Forças Armadas, alegando que os problemas causados pelo governo vão além das pessoas envolvidas.

“O problema não é o tratamento com militares. Não pode haver diferença de tratamento entre militares e civis. Não pode haver esse tipo de discriminação. Isso aí tem que ser visto no contexto mais amplo. É o desrespeito geral aos cidadãos e às instituições. É desrespeito geral, por despreparo, inconsequência e boçalidade”, disse.

Santos Cruz também comentou sobre a reunião ministerial de 22 de abril, que foi tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e expôs pressão de Bolsonaro sobre o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro para interferir na Polícia Federal. “Junta todos os desrespeitos e a reunião de 22 de abril e você vai ter um diagnóstico do padrão de liderança no país e o ambiente criado”, afirmou. O general saiu do governo em junho de 2019 após sofrer fortes críticas de apoiadores radicais do presidente ligados ao escritor Olavo de Carvalho.

Na semana passada, Santos Cruz criticou o episódio relacionado ao ministro Pazuello:

Análise

Com a insanidade em alta, a economia em baixa, o Congresso em pé de guerra, o vírus e o desemprego à solta, o Poder brasiliense parece ter perdido o chão. Sob a presidência de uma caricatura, Brasília vive uma rotina de desenho animado. Nos desenhos, quando acaba o chão, os personagens continuam caminhando no vazio. Só despencam quando olham para baixo e se dão conta de que estão pisando em nada. No momento, as autoridades de Brasília evitam olhar para baixo.

O ministro das queimadas especializou-se em atear focos de incêndio nas redes sociais. Primeiro chamou de Maria Fofoca o general da coordenação política. Nada aconteceu, pois a humilhação de militares virou o novo normal depois que o general paraquedista da Saúde foi desautorizado pelo capitão do Planalto. Impune, o piromaníaco do Twitter contra-atacou o presidente da Câmara, chamando-o de Nhonho. Não fui eu, disse o incendiário depois de ter sido lembrado de que o gordinho de seriado infantil controla a pauta da Câmara.

Abatido, o general Maria Fofoca perdeu o controle sobre o centrão. Desgovernado, o grupo que deveria socorrer o Planalto no Legislativo promove uma desavença que trava o funcionamento da Comissão de Orçamento. E o governo convive com o risco de entrar em 2021 sem Orçamento. O xerife do Banco Central procura o Nhonho para avisar que a política está envenenando a economia. Foi alertado de que o problema está no Planalto, não na Câmara. Quem vazou a conversa?, perguntam-se todos, esquecendo-se do essencial: o teor do diálogo.

O ministro das queimadas continua com o fósforo na mão, o general Maria Fofoca finge ser coordenador, o centrão prepara novos botes, o gordinho da Câmara avisa ao Posto Ipiranga que lavou as mãos. E a caricatura do Planalto continua caminhando sobre o vazio. Não estranha nada, não permite que lhe façam perguntas. As autoridades de Brasília evitam olhar para baixo. O que não é difícil, porque na Capital toda autoridade tem o nariz empinado, não importa o tamanho do abismo que está sob os seus pés.


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