27/04/2024 - Edição 540

Poder

Ataque às Católicas pelo Direito de Decidir é ensaio para Estado teocrático

Publicado em 30/10/2020 12:00 -

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O Tribunal de Justiça de São Paulo mostrou que está "sobrando tempo" e faltando bom senso no sistema de Justiça ao impor censura ao nome de uma organização de defesa dos direitos das mulheres. O detalhe é que a entidade existe no Brasil desde 1993, ou seja, há 27 anos. Mas só agora, em meio a um ensaio de implementação de Estado teocrático, é que será obrigada a mudar o nome.

Os desembargadores da 2ª Câmara de Direito Privado decidiram que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, formada, veja só, por mulheres católicas, não poderá mais utilizar o termo "católicas" no nome.

Atendendo a uma ação de uma entidade conservadora, o relator do caso, José Carlos Ferreira Alves, afirmou que não é "minimamente racional e lógico o uso da expressão 'católicas' por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele".

A organização feminista, como o nome já diz, defende os direitos reprodutivos das mulheres, incluindo o direito ao aborto nos casos previstos pela Justiça (estupro, risco de morte da gestante, anencefalia do feto).

Em sua crença pessoal, os desembargadores podem discordar dessa linha de atuação, mas suas decisões não podem ferir direitos civis por cercear a liberdade de expressão e de associação.

Se há um grupo de CATÓLICAS e elas se reúnem com um objetivo específico, e nem a Cúria Metropolitana de São Paulo, nem Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, nem o Vaticano reivindicaram na Justiça a "marca registrada", quem é a organização conservadora ou os magistrados para dizerem que elas não podem se autodenominar católicas? Até onde se sabe, não foram excomungadas.

O desembargador, contudo, afirma que pode "a associação requerida defender seus valores, inclusive o aborto, como bem entender, desde que utilize nome coerente". O TJ-SP virou sommelier da fé alheia.

Não é "minimamente racional e lógico" um magistrado receber acima do teto do funcionalismo público, ou seja, o salário de ministros do Supremo Tribunal Federal – R$ 39,2 mil. Mas isso não parece provocar o mesmo assombro, pois é mais difícil encontrar quem nunca foi além do limite do que o contrário.

Mas uma sociedade em que uma menina de dez anos (que engravidou após ser estuprada durante quatro anos pelo próprio tio) é ameaçada de morte por fundamentalistas por ela desejar interromper a gestação, em que os médicos que realizaram o procedimento também foram ameaçados de morte e sitiados no hospital em que trabalhavam, em que o governo federal mandou representantes para tentar dissuadir a família da menina de realizar o aborto, já é uma sociedade em que mulheres são tratadas como cidadãs de segunda classe.

Nesse contexto, a negação do direito à identidade é apenas mais um passo em direção ao abismo.

Algumas decisões judiciais, por outro lado, nos levam a crer que o sistema de Justiça é que deveria utilizar "nome coerente" com a natureza que, por vezes, assume. Tipo, Clube do Bolinha, Patriarcado ou, nos piores casos, Handmaid's Tale.

A decisão pode ser alterada após recurso. O que será bem mais fácil do que alterar o curso do país.

Internet reage

Políticos, entidades e internautas reagiram à decisão da Justiça de São Paulo. O deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) afirmou, ao comentar a decisão do colegiado da 2ª Câmara de Direito Privado, que “a censura nunca tinha ido tão longe!”.

Já a deputada federal Sâmia Bonfim (Psol-SP) afirma que “a organização é uma das mais respeitadas na promoção dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres”. Para ela, a “decisão absurda” é “motivada por fundamentalismo”.

A atitude do desembargador, para a professora de Direito da UNB, Debora Diniz, “merece uma denúncia à Corregedoria e ao CNJ”. A professora afirma ainda que “a decisão é uma grave violação do Estado laico e do direito à livre associação política”.

O presidente do Psol, Juliano Medeiros, afirmou que a decisão é “mais um absurdo num país cada dia menos democrático”. Medeiros ainda manifesta a total solidariedade do Psol ao movimento Católicas Pelo Direito de Decidir, “alvo de censura por parte do desembargador José Carlos Pereira Alves, que decidiu proibir o uso da palavra ‘católicas’ pelas ativistas”.

Aborto em caso de estupro

O Ministério da Saúde não cumpriu uma série de etapas legais adotadas normalmente para edição de normas e não apresentou fundamentos técnicos para publicar as portarias que limitam o aborto legal em caso de estupro. Documentos obtidos pelo HuffPost Brasil via LAI (Lei de Acesso à Informação) mostram mudança de entendimento da área técnica da pasta e motivação política e religiosa para os documentos assinados pelo ministro Eduardo Pazuello.

De acordo com a pasta, “quanto à justificativa e à fundamentação para a edição da referida norma, cabe esclarecer que o Ministério da Saúde foi provocado por meio de diversos ofícios da Defensoria Pública da União e de entidades da sociedade civil”. A resposta faz referência a pedidos feitos pelo Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) e pela Associação Virgem de Guadalupe, representada por um defensor público. 

Em janeiro, o defensor público-geral federal Gabriel Faria Oliveira designou Danilo de Almeida Martins para prestar assistência jurídica à Associação Virgem de Guadalupe no âmbito da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442. A entidade é amicus curiae (“amigo da corte”) na ação sobre descriminalização do aborto em tramitação no STF (Supremo Tribunal Federal). O termo é usado para organizações especializadas no tema que fornecem informações para contribuir com o julgamento.

A portaria que nomeou Martins para representar a entidade religiosa é alvo de um processo no Conselho Superior da Defensoria Pública da União (DPU). Qualquer ato do defensor-público geral federal “que se revestir de suposta ilegalidade” poderá ser revisto pelo Conselho, de acordo com integrante da cúpula da DPU ouvido pelo HuffPost. Esse tipo de questionamento só é acolhido pelo colegiado em casos de ilegalidade ou desvio de poder.

Eventuais procedimentos na Corregedoria-Geral da DPU também precisam do aval do Conselho para prosseguirem. De acordo com a assessoria de imprensa da Defensoria, o tema não está sendo analisado pela Corregedoria.

Além da pressão para mudança normativa, a Associação Virgem de Guadalupe atuou para tentar impedir o aborto legal de uma menina de 10 anos nos Espírito Santo em agosto, caso que ganhou repercussão nacional após intervenção da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. A entidade também foi beneficiada com repasses do programa Pátria Voluntária, presidido pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, de acordo com o jornal O Globo.

Em email enviado em 13 de fevereiro ao defensor Danilo de Almeida Martins, a presidente da Associação Virgem de Guadalupe, Mariangela Consoli de Oliveira, pediu “providências para revogação da norma técnica” do Ministério da Saúde referente ao aborto legal. “A revogação dessa norma se faz urgente, pois evitará fraudes em relação à comunicação de estupros e consequentemente salvará vidas humanas”, diz o texto. 

No mesmo dia, Martins enviou um ofício ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em que pediu a revogação da portaria nº 1.508, de 2005. Ele argumentou que ela estaria em desacordo com a Lei 13.718, de 2018, que tornou pública incondicionada ação penal em caso de estupro. 

 “Cientes de que este governo tem reiteradamente manifestado seu compromisso com a defesa da vida e que a exigência de boletim de ocorrência associada à previsão da obrigatoriedade de o médico comunicar a autoridade competente a existência de um crime contra a liberdade sexual resultará em um maior controle desse tipo de procedimento”, afirma o documento.

O que mudou nas portarias sobre aborto legal?

Citada no ofício enviado pela DPU, a portaria nº 1.508, de 2005, teve seu texto incorporado a outra norma do Ministério da Saúde editada em 2017 para orientar os serviços de saúde nos atendimentos de aborto legal. 

Em vigor desde 1940, o Código Penal não considera crime a interrupção da gravidez em caso de estupro ou de risco à vida da gestante. Decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2012 ampliou esse direito para casos em que o feto é anencéfalo.

Nos casos de violência sexual, de acordo com a previsão legal, não é necessário que a vítima prove a agressão por meio de um boletim de ocorrência, por exemplo. Basta procurar o serviço de saúde. Na prática, contudo, muitas mulheres e meninas nessa situação já tinham o direito negado, mesmo antes das portarias assinadas pelo ministro Eduardo Pazuello.

Em 27 de agosto, o Ministério da Saúde editou uma portaria que tornou obrigatória a notificação à autoridade policial pelos serviços de saúde nos casos de interrupção de gravidez resultado de estupro. Outras duas inovações também dificultam o procedimento. A norma previa que a equipe médica deveria informar à vítima sobre a possibilidade de ver o exame de ultrassonografia e o termo de consentimento apresentava uma lista com uma série de riscos do abortamento.

Após reação negativa de parlamentares, juristas e movimentos sociais, o governo recuou, em parte. Uma nova portaria sem a previsão sobre a ultrassonografia e a lista de riscos foi publicada em 23 de setembro. A redação da nova norma é menos explícita em relação à obrigatoriedade da notificação, mas, no entendimento de juristas, ela ainda está presente.

A mudança normativa é alvo de duas ações no STF que tramitam em conjunto. O julgamento em caráter liminar estava previsto para ser iniciado no plenário virtual da corte em 25 de setembro. Com a manobra do ministério na véspera, a análise foi adiada e não há previsão de quanto o tema será analisado pelo Supremo. O relator, ministro Ricardo Lewandowski, aguarda manifestação do Ministério da Saúde e da Procuradoria-Geral da República (PGR).

O passo a passo da nova portaria sobre aborto

Em resposta ao ofício enviado em fevereiro pela Defensoria Pública da União em nome da Associação Virgem de Guadalupe, o Ministério da Saúde emitiu em 8 de abril o parecer técnico nº 55/2020, do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, ligado à Secretaria de Atenção Primária à Saúde.

O texto assinado pelo então diretor do departamento, Maximiliano das Chagas Marques, alerta que “é recomendável que manifestações dessa natureza tenham como destino o Conselho Nacional de Saúde, órgão pareado com o Ministério da Saúde (MS), responsável pela representação coletiva da participação da comunidade junto à União”.

O documento também nega o pedido de revogação da portaria. “Não é possível transigir, nesse momento, o peticionado, em função que a supressão de atos infralegais que dão curso ao que a lei determinou, pode significar hiato normativo gerador de barreiras de acesso ao cuidado, nas circunstâncias em que o Poder Legislativo já afirmou o interesse da coletividade brasileira”, diz o texto. 

Este é o único parecer técnico que consta na resposta do Ministério da Saúde via Lei de Acesso à Informação, obtido pelo HuffPost. A pasta não apresentou documentação que comprove que houve análise técnica de outras áreas, incluindo a Consultoria Jurídica, tampouco consulta à Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e ao Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Nem o CNS nem a CIT, composta pelos secretários de saúde estaduais e municipais, participou de qualquer debate sobre alterações normativas de acesso ao aborto legal.

Para o advogado sanitarista e vice-presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDISA), Thiago Campos, “se há alteração da política de saúde, precisa ser pactuada nas instâncias intergestoras até porque há necessidade de ajuste dos próprios entes subnacionais, que são executores [das políticas públicas] conjuntamente”. “É dever das consultorias jurídicas dos ministérios avaliarem, sob o aspecto formal, mas também sob o aspecto material, o conteúdo das normas que são editadas”, enfatiza Campos.

De acordo com o ex-integrante da Secretaria de Atenção à Saúde do ministério, o fluxo normal para adoção de uma nova norma é o seguinte: diretorias temáticas produzem pareceres técnicos, em geral debatidos com gestores estaduais e municipais, antes da aprovação do ministro. Além da análise da CIT, as portarias passam pela consultoria jurídica da pasta.

Campos afirma que se uma portaria tem vícios de procedimento, ela pode ser questionada por uma ação civil pública ou por ação popular. “O ato administrativo precisa ter motivação, elementos que o compõem que são essenciais para sua validade. Um ato produzido sem respeito a essas obrigações é inválido”, afirma. “As manifestações dos órgãos de assessoramento sempre são formais, seja uma parecer ou uma nota técnica. E há uma necessidade pelo processo administrativo que deve gerar atos continuados num fluxo, de ele ser também publicizado”, completa o jurista.

Outros ex-integrantes do Ministério da Saúde reforçam que “sempre houve esse acordo” para todas as regras serem aprovadas na Comissão Tripartite.

Na avaliação de Vanja Andréa Reis dos Santos, coordenadora da Comissão Intersetorial de Saúde da Mulher, do CNS, o órgão técnico funciona como um dos braços do SUS (Sistema Único de Saúde) e age para dar subsídios ao funcionamento pleno do Ministério da Saúde, o que foi ignorado na portaria que limita o aborto.

“O conselho funciona não apenas como monitorador de como estão os trabalhos da área da Saúde, mas também como avaliador, propositor e tem um papel muito importante para, neste momento, não ser levado em consideração”, diz. 

Hoje, a cúpula do Ministério da Saúde é formada por pessoas sem experiência em gestão do sistema de saúde, devido a um processo de militarização interno. Durante o lançamento da Campanha do Outubro Rosa de 2020, nesta semana, o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, disse que só conheceu o SUS “neste momento da vida”.

“Quando o ministério não nos envolve nesse debate, e prefere fazer isso sozinho, ele desumaniza a saúde. Já houve episódios em que as assessorias técnicas nem sequer foram levadas em consideração, mas sim, servidoras foram demitidas. É desagregar e não construir a saúde como deveria ser, com a participação social, com os órgãos regulatórios, com uma base sólida construída há anos”, critica a coordenadora da comissão de saúde da mulher do CNS.

Vanja Andréa avalia que a repercussão nacional do caso da menina capixaba de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada durante quatro anos pelo tio deveria ter mobilizado outro tipo de resposta da pasta. 

“Hospital é lugar de acolhimento, hospital não é delegacia. O Ministério da Saúde, ao invés de garantir que outras meninas não passem pela mesma vulnerabilidade que ela, garantindo a aplicação da lei e do atendimento adequado, escolhe outro caminho. Está muito claro que a portaria não foi feita para melhorar o serviço, mas sim, para penalizar as mulheres e dificultar ainda mais o acesso a este serviço”, argumenta.

O lobby das instituições antiaborto

Após a negativa na gestão Mandetta, o defensor Danilo de Almeida Martins tentou de novo emplacar uma mudança na norma sobre aborto legal. Em 29 de abril, ele enviou outro ofício, dessa vez para Nelson Teich, então ministro da Saúde, com o mesmo pedido.

Na resposta dada pela pasta em 14 de maio, a então secretária-substituta de Atenção Primária à Saúde, Daniela de Carvalho Ribeiro, encaminhou o parecer técnico do mês anterior em que o ministério nega a mudança na portaria.

Quando o terceiro titular da Saúde neste ano assumiu o cargo, Martins fez uma terceira tentativa, dessa vez bem-sucedida. Em 3 de junho, ele enviou um ofício ao ministro Eduardo Pazuello com o pedido para derrubar as normas de acesso ao aborto legal. 

Em 9 de julho, houve uma mudança na posição da área técnica da pasta. Um despacho do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde não cita o parecer anterior do próprio departamento contra a mudança normativa, e a resposta ao pedido da DPU muda de tom.

“Tendo em vista a relevância dos conteúdos produzidos por este departamento, atualmente [o departamento] vem de forma gradual identificando o conjunto de ações vinculadas aos Ciclos de Vida e à Saúde Mental. Nesse sentido, tem se empenhado em avaliar e reavaliar conteúdos, materiais, manuais, entre outros instrumentos e ferramentas de indução e articulação das políticas públicas de saúde de modo a garantir que disponham da maior atualização possível em relação à literatura tecnocientífica para que não gere ambiguidade de interpretação, alinhamento com o arcabouço jurídico-normativo brasileiro, e centralidade nas necessidades do cidadão e da população”, diz o texto assinado pela então diretora-substituta da departamento, Maria Dilma Alves Teodoro.

A psiquiatra foi nomeada como coordenadora-geral de Saúde Mental do Ministério da Saúde, cargo comissionado, em abril de 2019. Em abril de 2020, foi designada como substituta eventual do diretor de Ações Programáticas Estratégicas.

Esse posicionamento foi enviado ao defensor Danilo de Almeida Martins em um documento de 12 de julho, assinado pelo secretário de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente. O médico nomeado na gestão Pazuello é conhecido pelo histórico de ativismo antiaborto. 

Ao participar de uma audiência pública no Supremo em agosto de 2018, no âmbito da ADPF 442,  que pede a descriminalização do aborto, Câmara contestou os dados sobre abortamento apresentados pelo Ministério da Saúde e desqualificou estudos científicos e evidências de que mulheres negras são as principais vítimas da criminalização do aborto no Brasil porque acabam procurando opções clandestinas menos seguras. 

O ginecologista foi indicado pelo Instituto Liberal de São Paulo e por outros cidadãos para participar da audiência no STF. O médico era presença constante também em eventos da bancada pró-vida no Congresso Nacional.

Foi no mês que em Câmara assumiu a Secretaria de Atenção Primária à Saúde que Pazuello exonerou funcionários da pasta responsáveis pela formulação de uma nota técnica que defendia que “as unidades que oferecem serviços de SSSR (Saúde Sexual e Reprodutiva) são consideradas essenciais, e os serviços não devem ser descontinuados durante a pandemia”, conforme orientação da OMS (Organização Mundial da Saúde).

A falta de acesso a esse tipo de serviço está diretamente ligada a uma série de problemas de saúde no Brasil, como mortalidade materna, gravidez precoce e disseminação de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).

O documento sobre SSSR foi desqualificado pelo presidente Jair Bolsonaro. Em 3 de junho, ele classificou a nota, que ainda não havia sido publicada no Diário Oficial, de “minuta de portaria apócrifa sobre aborto que circulou hoje pela internet” em uma rede social.

A cruzada contra o aborto da menina de 10 anos

Depois da repercussão do caso da menina de 10 anos que engravidou após anos de violência sexual no Espírito Santo, organizações conservadoras reforçaram a ofensiva para alterar as normas de acesso ao aborto legal. Em 19 de agosto, o Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDVF) envia um ofício a Eduardo Pazuello, em que pede a revogação das normas sobre o tema sob o argumento de que haveria “vício de ilegalidade” após a mudança legal de 2018 que transformou as ações penais sobre o crime de estupro em incondicionadas.

Nesse tipo de ação, o Ministério Público atua sem necessidade de autorização da vítima. Esse argumento de combate à violência sexual por profissionais de saúde é frequente nos diálogos do Executivo com parlamentares, mas especialistas que trabalham com violência contra as mulheres apontam falhas.

“A mudança da ação penal simplesmente obriga o sistema de Justiça. Ela não tem como obrigar profissionais de saúde e é nessa confusão que eles estão tentando insistir. Só não precisaria do consentimento da vítima uma vez que os fatos chegam ao Ministério Público, que tem o dever de seguir adiante. No sistema de saúde, os profissionais têm outro dever constitucional, que é preservar o sigilo e atender à mulher”, afirmou em entrevista ao HuffPost Brasil a advogada Gabriela Rondon, pesquisadora e consultora jurídica da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

O documento do IDVF é assinado pelo assessor jurídico da instituição, Marcos Antônio Favaro, e por João Carlos Biagini, que se identifica como autor do livro Aborto, Cristão e Ativismo no STF. A entidade é amicus curiae tanto na ADPF 442 quanto na ação que contesta as portarias assinadas por Pazuello.

O lobby da entidade conservadora não se restringiu ao Ministério da Saúde. O mesmo ofício foi enviado neste dia ao presidente Jair Bolsonaro. Em 24 de agosto, o gabinete presidencial encaminhou o documento à pasta comandada por Pazuello e ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Funcionários da pasta chefiada por Damares Alves atuaram para inviabilizar a interrupção da gestação da criança no Espírito Santo.

Após passar pelo Planalto, o pedido do IDVF chegou até o Departamento de Ações Programáticas Estratégicas da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, que reiterou o conteúdo do despacho assinado por Maria Dilma Alves Teodoro em julho, e acrescentou que “a matéria abordada na referida solicitação já se encontra em estudo e segue no curso dos fluxos administrativos do Ministério’. Esse documento de 27 de agosto é assinado pelo diretor do departamento, Antônio Rodrigues Braga Neto. 

No mesmo dia, Pazuello assinou a nova portaria, que tornou obrigatória a notificação à política por parte dos serviços de saúde nos procedimentos de aborto legal quando há violência sexual. 

Na prática, a medida dificulta ainda mais o acolhimento às vítimas desse tipo de agressão. Dados do Anuário de Segurança Pública, do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) mostram que uma pessoa foi estuprada a cada 8 minutos no Brasil em 2019. 86% das vítimas eram mulheres, e mais da metade delas tinha até 13 anos de idade. Em 84,1% dos casos, o autor era conhecido das vítimas.

O Ministério da Saúde não respondeu a questionamentos sobre por que a Comissão Intergestores Tripartite e o Conselho Nacional de Saúde não foram consultados para mudança nas normas de acesso ao aborto legal. A pasta também não respondeu qual a justificativa técnica para mudança do posicionamento da Secretaria de Saúde Primária e por que ela não está formalizada na documentação do trâmite das portarias nem por que a Consultoria Jurídica não se manifestou no processo.


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