19/04/2024 - Edição 540

Poder

STF posterga a decisão sobre terras indígenas e causa desconfiança entre entidades

Publicado em 30/10/2020 12:00 -

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O Supremo Tribunal Federal (STF) pode iniciar, em breve, o julgamento que definirá os rumos das demarcações das Terras Indígenas no Brasil. O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra.

Há duas teses em disputa: de um lado, a chamada “teoria do indigenato”, que reconhece o direito territorial dos povos indígenas como “originário”, segundo os termos da Constituição; do outro lado, está uma proposta que restringe os direitos desses povos às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado ‘marco temporal’. Nessa interpretação, defendida por ruralistas, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, ou que, nessa data, estivessem sob disputa física ou judicial comprovada.

Entidades indígenas questionaram a postura de Luiz Fux, presidente da corte. Para elas, o motivo foi evitar que tribunal afaste o “marco temporal”, e garanta direitos dos povos originários. “Estará à espera do novo integrante do tribunal, escolhido por Bolsonaro e inimigo das pautas progressistas?”, questionou um dirigente indígena, referindo-se ao novo ministro, Kassio Nunes, que toma posse em 5 de novembro.

Entenda o caso

Tramita no STF um pedido de reintegração de posse (Recurso Extraordinário 1.017.365) movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Farma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng, envolvendo a Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional, também habitado por populações Guarani e Kaingang.

O Recurso teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário do STF em 2019. Isso significa que o que for julgado nesse caso servirá para fixar uma tese para todos os casos envolvendo demarcações de terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário.

O que está em jogo?

Por isso, a decisão da Suprema Corte irá impactar o futuro de centenas de populações indígenas, já que a aplicação do marco temporal pode dificultar ainda mais as demarcações, indispensáveis à sobrevivência desses povos, à pacificação de conflitos territoriais históricos, além de coibir a violência resultante de invasões e atividades ilícitas, como grilagem de terras, garimpo e extração madeireira.

A existência dos povos indígenas isolados também estará ainda mais ameaçada caso a votação seja favorável à tese do marco temporal. Isso porque, por seu modo de vida nômade e avesso ao contato, é impossível comprovar a presença desses grupos em 5 de outubro de 1988 nas terras que hoje habitam ou que estivessem reivindicando formalmente o reconhecimento de seus territórios. O Estado brasileiro até hoje não conseguiu confirmar exatamente quantos são e onde estão essas comunidades especialmente vulneráveis.

Na avaliação de indigenistas, juristas, lideranças indígenas e do Ministério Público Federal (MPF), o marco temporal é uma tese perversa, pois legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar.

“O Poder Judiciário está sendo conclamado a estabelecer o fim das violências, dos descumprimentos reiterados das Constituições, dos vilipêndios dos poderes da República contra os povos indígenas”, critica a advogada do ISA Juliana de Paula Batista. “O importante, agora, é identificar o território de ocupação tradicional de cada povo indígena e proceder a sua demarcação. Só assim quitaremos nossa dívida histórica e finalmente serão garantidos aos povos indígenas paz, dignidade e Justiça”, completa.

“Essa posição [do marco temporal] ainda ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. É por esse motivo que o mote para a campanha de mobilização indígena para derrubar a tese do marco temporal é: “Nossa história não começa em 1988”, explica Rafael Modesto, advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O julgamento foi colocado em pauta pelo presidente do Supremo, o ministro Luiz Fux, e será realizado de forma telepresencial, devido a pandemia do novo coronavírus. As partes terão até 15 minutos para se manifestar, já os amici curiae (“amigos da corte”) terão ao todo, 30 minutos para sustentação oral.

STF engaveta ações sobre demarcação de terras indígenas, aponta pesquisa

A pesquisa "Agenda dos Direitos Socioambientais no STF", feita pelo Supremo em Pauta da FGV Direito SP, revela que há 365 ações pendentes de julgamento no tribunal sobre o tema, de 1988 a 2020. Apenas na categoria "terras", que envolve demarcação de territórios indígenas e quilombolas, comunidades tradicionais e reforma agrária, são 72 processos esperando solução.

As ações revelam invasões massivas a terras indígenas, a estratégia política de comunidades indígenas em ocupações para reaver territórios e uma intensa litigiosidade sobre as fases de demarcação.

Praticamente todas as etapas dos processos de demarcação estão em análise no Supremo Tribunal Federal. Há questionamentos sobre: os estudos necessários para subsidiar a delimitação da terra indígena pela Funai; a expedição das portarias declaratórias de posse tradicional indígena pelo Ministério da Justiça; e, por fim, a homologação da demarcação pela Presidência da República.

Por trás de cada um destes processos, há um intenso conflito entre comunidades indígenas e particulares interessados nos processos de demarcação, sobrepostos ainda por interesses dos estados federados e da União.

A posição do Supremo para lidar com estes conflitos tem sido a de não decidir. Não são raros os casos em que pedidos de desintrusão – retirada dos não indígenas das terras – são negados por receio de acirramento do conflito. Na prática, a indecisão do Supremo transfere aos particulares intrusores e aos indígenas a resolução do conflito por seus próprios meios. O resultado, obviamente, é o aumento de violência.

A pesquisa revela também que a União, até 2018, poderia ser vista como garantidora dos direitos socioambientais, implementando políticas públicas mais protetivas aos direitos socioambientais, exceto em casos que envolvem grandes obras de infraestrutura de base, especialmente ligadas ao setor energético.

Em 2019, tudo muda. A União, que aparecia ora como garantidora, ora como violadora de direitos socioambientais, assume definitivamente o papel de vilã: o perfil dos litígios em 2019 e 2020 na matéria socioambiental coloca a União no banco dos réus.

As ações questionam mudança de governança dos órgãos ambientais, alteração de políticas públicas protetivas, desmonte de fundos, ataques a organizações não governamentais e discriminação contra povos indígenas e quilombolas.

Nessa fotografia das ações pendentes de julgamento, além das disputas envolvendo terras indígenas, destacam-se conflitos federativos, competência legislativa e fiscalizatória, litígios interconstitucionais relacionados às normativas pré e pós Constituição de 1988 e, de forma transversal a todas essas questões, a persistência do falso dilema da proteção ambiental versus desenvolvimento econômico e suas variantes com mais ou menos sustentabilidade.

Ainda que se reconheçam boas decisões adotadas pelo Supremo ao longo dos últimos 30 anos em matéria de direitos socioambientais, como a da terra indígenas Raposa Serra do Sol, demarcação de terras quilombolas, negativa de importação de pneus usados e saúde indígena na pandemia de covid-19, a jurisprudência do tribunal parece ainda aquém do grau de proteção dado pela Constituição aos direitos socioambientais.

Neste sentido, o acervo de casos referentes a terras indígenas pendentes de julgamento no tribunal revela, sobretudo, uma dívida histórica com a sociedade e com a Constituição.

Candidaturas indígenas crescem 28%

O aumento do desmatamento, das invasões de garimpeiros ilegais em seus territórios, a paralisação das demarcações sob o Governo Bolsonaro e o avanço da covid-19 nas comunidades originárias são o pano de fundo de um boom de candidaturas indígenas no Brasil nas eleições municipais deste ano. O número de candidaturas dos que se declaram indígenas cresceu 28% em relação ao pleito de 2016. Na ocasião, foram 1715. Hoje, são 2.194, de acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com esses números, os indígenas ultrapassam os candidatos que se declaram amarelos (1.959, ou 0,35% do total) e deixam assim de ser a raça menos representada na disputa por cargos eletivos.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) atribui parte desse resultado ao trabalho feito nos últimos anos para fomentar a formação política nas aldeias. Em 2017, a organização publicou a carta-manifesto Por um parlamento cada vez mais indígena e, em 2018, o movimento dos povos originários conseguiu eleger a deputada federal Joênia Wapichana (Rede – RR), a primeira mulher indígena a conquistar uma vaga no Congresso Nacional.

“A retirada de direitos fundamentais dos nossos povos acontece a partir de articulações no Congresso, então é importante que estejamos nesses lugares. Mas se quisermos chegar lá ou mesmo à Presidência, temos que aumentar a base na esfera municipal”, afirma Sônia Guajajara, presidente da Apib, que concorreu à vice-presidência em 2018, ao lado de Guilherme Boulos (PSOL). Em 2016, 167 indígenas foram eleitos vereadores. Para Sônia, “é muito pouco”. Este ano, dos 545.437 candidatos registrados no TSE, 0,40% são indígenas, uma quantidade percentualmente próxima ao tamanho demográfico de povos originários no Brasil: eles são pelo menos 900 mil, cerca de 0,43% de uma população de 209 milhões.

“Nossa estratégia é diminuir o número de candidatos para concentrar os votos, porque a verdade é que não podemos contar com os votos dos não-indígenas. E também não somos prioridade dentro dos partidos. Nenhum partido, por mais alinhado que esteja com nossas pautas, compreende bem nossas demandas”, diz Sônia.

Por isso, o cacique Ramón Tupinambá, de 35 anos, que concorre a vereador na cidade de Ilhéus, no extremo sul baiano, pelo PSOL, diz que o ideal seria ter um partido indígena a nível nacional. “Aí poderíamos trazer para o jogo nossa visão de governo participativo, algo comum na gestão de nossas aldeias, por exemplo”, diz ele, que já disputou o pleito municipal em 2016 e concorreu como deputado estadual em 2018, sem êxito em ambas ocasiões.

Descendente dos primeiros povos a enfrentar a violência da colonização no Brasil, Ramón pretende atuar na esfera municipal pela demarcação dos territórios tupinambá na região de Ilhéus, autorizada desde 2009 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas barrada pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, que em janeiro deste ano devolveu à Funai (Fundação Nacional do Índio) 17 processos de demarcação. “Vivemos um constante enfrentamento com grandes imobiliárias, que constroem resorts e condomínios perto nas nossas aldeias”, lamenta Ramón.

Apesar de concordar com ele que os partidos existentes não dão conta das reivindicações dos povos originários, Sônia Guajajara tem dúvidas sobre a criação de uma legenda nacional indígena. “Não tenho convicção de que isso resolveria. Afinal, somos 305 povos diferentes em todo o Brasil, então é possível que acabasse caindo na lógica dos partidos tradicionais”, argumenta.

Mais mulheres

O pleito municipal de 2020 também terá um recorde de mulheres candidatas entre os indígenas: elas passaram de 27,5%, em 2016, para 32,4% do total, de acordo com os dados do TSE. Uma delas é Kandara Pataxó, de 39 anos, candidata a vereadora em Santa Cruz Cabrália (BA), pelo PSD. Filha de duas lideranças indígenas —sua mãe foi a primeira mulher chefe de sua aldeia—, Kandara atua na comunidade desde os 16 anos como defensora dos direitos das mulheres, reivindicando que mais delas ocupem espaços de decisão nas tribos. Apesar dessa trajetória, diz que o convite para candidatar-se foi inesperado.

“Venho buscando políticas públicas, mas não venho de uma vida pública. Hesitei quando me propuseram a candidatura. Pensei: Vão mandar me matar. Não quero ser mais uma Marielle”, conta Kandara, que, depois de perceber o apoio de seu povo, decidiu aceitar o desafio. “A maioria de nós não entende muito de partido. Nossa luta não é partidária, é por espaço. Sempre fomos usados de volume nos partidos para apoiar candidatos não-indígenas que prometem defender nossas pautas, mas, chegando lá, somos os primeiros a ser esquecidos”, acrescenta.

Foi essa disputa por espaço que motivou Ariene Susui, membro do povo wapichana, de apenas 23 anos, a candidatar-se a vereadora em Boa Vista (RR) pela Rede. A cidade, apesar de contar com cerca de 20.000 indígenas, nunca teve representação dos povos originários em sua Assembleia. Ariene conta que sua comunidade começou a fazer reuniões para discutir política partidária em 2017, na época em que o povo wapichana preparava a candidatura da deputada Joênia. “Depois que ela foi eleita, não paramos mais. Foi uma chama necessária”.

Ariene diz que a política partidária nunca foi uma prioridade dos povos indígenas, porque eles sempre tiveram que lutar pelo mais primordial, seus territórios. O retrocesso nos direitos desses povos nos últimos anos, no entanto, motivaram-na a entrar para a política. “Para mim, o estopim foi ver que garimpeiros e madeireiros não têm mais medo e invadem cada vez mais nossos territórios, justamente porque se sentem arroupados pelo discurso do Governo Federal”, afirma.

Para Val Eloy, de 39 anos, que milita pelo povo Terena da Terra Indígena Taunay-Ipegue (MS), desde os 11 anos, apresentar-se nas eleições é uma forma de participar de um plano de governo em uma das capitais onde a bancada ruralista é mais forte. Ela é candidata a co-prefeita de Campo Grande pelo PSOL, ao lado de Cris Duarte. “Aqui, os políticos não se intimidam e não se envergonham em afirmar que não gostam mesmo dos povos indígenas”, diz.

De uma linhagem política —seus avós fundaram sua aldeia e seu irmão, o advogado Eloy Terena, que conseguiu no STF a decisão que obrigou o Governo Bolsonaro a adotar medidas de proteção dos povos indígenas contra a covid-19—, Val não hesitou em abraçar a candidatura. Na sua região, ela foi uma das lideranças que coordenaram a construção de barreiras sanitárias nas aldeias, diante da falta de assistência governamental. “Perdemos muitas vidas, mas se pensaram que isso nos faria abaixar a cabeça, só nos incentivou a mostrar que não esperaremos mais por uma política branca que fale por nós”, declara.


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