26/04/2024 - Edição 540

Comportamento

Um mundo sem cores

Publicado em 27/10/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Algo estava errado no mundo de Michele Croci. Ela parecia bem no emprego e com a família, até que ouviu a frase de uma colega de trabalho: “Cadê sua alegria? Você não costumava ser assim…” Aquele foi para ela um estalo de que algo não ia tão bem quanto imaginava. Ao se olhar no espelho, era como se deixasse de ver as cores do mundo. Estavam de volta os dias difíceis, depois de um tempo em que se habituou a sorrir com a mãe e a irmã, a brincar com seu cachorro Thóbby ou a acordar para mais um dia de trabalho. A dor tornava a invadi-la, um sentimento que não sabia de onde vinha. “É uma falta de esperança total. Parece que o mundo deixa de ser colorido e passa a ser somente cinza e preto”, conta. O peso de seus pensamentos, recorrentes e pessimistas, chegava a doer fisicamente, como se o sofrimento fosse palpável ou sensorial.

Foi em 2017 que viveu a fase mais difícil, quando sobreveio o que define como “vazio”, ao deixar de sentir prazer pela vida, um sentimento difícil de descrever, mas que apertava a alma. “Eu não esboçava nenhuma reação e estava começando a parar de comer”, relata. Retornava a sensação doída que ela conheceu ainda adolescente, mas que então não havia sido capaz de definir. “Na adolescência, eu sabia que algo estava errado, mas não tinha forças o suficiente para pedir ajuda”, relembra. Ao perceber que algo pesava novamente dentro dela, duas motivações levaram-na a procurar apoio. “Em primeiro lugar, eu mesma querer melhorar e sair desse quadro, perceber que não acontece só comigo, que existe tratamento. Em segundo lugar, foi a questão de eu querer estar aqui pela minha família”, ressalta.

Então veio o diagnóstico para o que era, até aquele momento, intraduzível: transtorno afetivo bipolar, um tipo de depressão que se caracteriza pela alternância de humor. E dali a procura para que sua dor fosse ouvida e o mundo recuperasse as cores. Hoje com 27 anos e moradora de Guarulhos, em São Paulo, ela divide o tempo entre o trabalho com atendimento online, sua paixão pela leitura — que vai de livros de suspense à poesia — e o voluntariado na Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), onde compartilha experiências com outras pessoas diagnosticadas com depressão e transtorno bipolar. “Escutar as histórias das pessoas me ajuda muito a complementar a minha própria. Isso é fascinante, ver que a gente tocou o outro e ajudou. Às vezes só de escutar já ajuda”, pontua.

Angústia, tristeza, melancolia, apatia, tédio são nomes que se referem a tonalidades do sofrimento psíquico. Contudo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão é um transtorno mental frequente que acomete mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. Envolta em estigmas e preconceitos que a associam à “preguiça” ou à “falta de vontade”, esse estado da alma pode se tornar uma condição crítica de saúde, ainda segundo a organização, e alterar a rotina no trabalho, na escola ou no meio familiar. A prevalência de depressão ao longo da vida no Brasil está em torno de 15,5%, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Na avaliação da OMS, essa é a principal causa de incapacidade em todo o mundo e, no pior dos casos, pode levar ao suicídio. Mas até que ponto o sofrimento é parte da experiência humana e quando ele passa a ser uma condição preocupante para a saúde?

Michele compreendeu que precisava agir para encontrar novamente as cores do mundo. Ela ansiava por acolhimento e por partilhar o que sentia com quem estivesse aberto para ouvir sem julgamentos. “Durante a fase depressiva, somos assolados por esse vazio que muitas vezes não é real. Ter alguém que escute nos mostra que não estamos sozinhos e que merecemos atenção e cuidado”, diz. Para ela, o apoio e a presença familiar são tintas essenciais para colorir e superar os dias cinzas. “Eu, minha mãe e meus irmãos somos muito unidos. Somente o fato de eu pensar em não estar presente em algum momento na vida deles já foi o suficiente para transformar em combustível para me cuidar”, comenta.

O percurso para superar a depressão também levou Michele ao uso de medicamentos antidepressivos, o que exigiu esforços para “driblar” ou amenizar os efeitos colaterais, como ela conta. “O medicamento atual que estou tomando provoca queda de cabelo. Conversei com o médico e realmente estava me incomodando. Aí eu tomo suplemento capilar, que evita e diminui a queda”, explica. Ela considera importante a interação entre o médico psiquiatra e o paciente para definir a melhor estratégia de tratamento. No entanto, segundo ela, de nada adianta se não houver espaços de escuta, não somente na terapia, mas também em grupos de apoio, além de familiares e amigos.

“Saber que não estamos sozinhos, que não acontece só conosco é libertador. Quanto mais a gente fala, parece que a dor diminui”, descreve. Hoje ela almeja cursar psicologia, a partir do próximo ano, tamanho é o fascínio em estudar o tema e compreender os matizes do sofrimento psíquico. A troca de experiências nas rodas de conversas promovidas pela Abrata também foram fundamentais para vencer estigmas e cobranças — das outras pessoas, mas principalmente de si mesma. “Quanto mais a gente fala sobre a dor da alma, menos estigma a gente tem. Quando a gente verbaliza e tem uma pessoa para escutar, a gente se sente acolhido e pertencente a alguma coisa”, afirma.

Tonalidades do nosso tempo

Sísifo é um personagem da mitologia grega condenado pelos deuses a repetir a mesma tarefa por toda a eternidade: ele rola uma grande pedra de mármore com suas mãos até o alto de uma montanha, porém quando chega ao topo, a pedra cai e retorna ao início anulando todo o esforço. O mito de Sísifo pode ajudar a entender como a sociedade contemporânea gera condições de sofrimento psíquico que provocam “vazios” na alma tão pesados quanto a pedra de mármore do personagem grego. Para Ana Maria Feijoo, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mais importante do que chegar a um diagnóstico fechado de depressão é entender as singularidades que geraram aquele sofrimento. “Na maioria das vezes, o que aparece é um modo de se articular com o mundo. Em um mundo que tem tantas exigências, há a produção de um cansaço, uma tristeza, uma sensação de que nunca se realiza nada. Isso pra mim se chama tédio”, avalia.

Segundo a professora, especialista em luto e suicídio e coordenadora do Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia da Existência (Lafepe/Uerj), existem duas grandes tendências para pensar a depressão. De um lado, está uma vertente, chamada por ela de “biologizante”, que coloca a depressão como doença do corpo — se a pessoa tem determinado número de sintomas estabelecidos pelos manuais de psiquiatria, é fechado o diagnóstico e inicia-se o tratamento. Porém, existe outra abordagem que “se demora na compreensão da situação singular daquela pessoa”: as condições de vida, a história pessoal, as experiências e até as determinações sociais são importantes para entender o que produz o sofrimento. “Então eu saio dessa tendência biologizante — não nego, mas me desvio — de modo a poder pensar como o mundo de hoje acaba facilitando que comportamentos depressivos aconteçam, que eu chamo de tédio. Eu costumo dizer que a tristeza e o tédio são tonalidades afetivas do nosso tempo”, reflete.

As pressões do presente para que se produza de maneira incessante e sem medida, assim como os ideais inalcançáveis de felicidade, podem contribuir para gerar experiências de sofrimento. Ana cita a expressão “sociedade do cansaço” — cunhada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han — para se referir às queixas que chegam aos consultórios e recebem diagnóstico de transtornos. Como no mito grego de Sísifo, é a sensação de produzir, produzir, produzir e não chegar a lugar algum. “Se você não realiza, isso estafa, cansa, entristece”, explica. Enquanto o mundo pede pressa, não sobra espaço para cuidados com a própria saúde mental nem para escutar as angústias do outro. “O ser humano moderno é muito apressado. Nunca está onde está. E essa pressa o deixa cego e surdo. Eu diria que até sem olfato e degustação”, analisa.

O sofrimento é parte da experiência humana? Para Ana, que é autora do livro “Suicídio: entre o viver e o morrer”, é preciso lembrar que a vida não envolve só prazer. “A vida implica alegria e dor. Uma coisa não exclui a outra. Aliás, só temos a alegria, porque existe dor”, pontua. Para a pesquisadora, o mundo diz que precisamos desempenhar inúmeros papéis: é preciso ser bem-sucedido, ter um casamento perfeito, ter muitos filhos ou poucos filhos. Porém, mesmo que queira, ninguém é feliz o tempo todo. “Quando a pessoa tem dor ou é infeliz por algum motivo, ela mesma se diagnostica com alguma patologia, com algum tipo de frustração ou inferioridade. Ela olha para o quintal do vizinho e acha que as flores são mais bonitas, porque ela só vê a aparência”, reflete.

O tempo “apressado” que vivemos também não deixa espaço para ouvir o outro — quando a escuta pode ser um caminho essencial para superar sentimentos comuns na depressão. Ana ressalta o papel dos espaços informais de partilha dos sentimentos, entre amigos, família e pessoas próximas ou em grupos de apoio. “Escutar é não se preocupar com o que você tem a dizer, é recuar para poder ouvir. Normalmente quando alguém diz ‘estou triste’, nós respondemos: ‘Não fique assim. A vida é bela.’ Nada disso. Precisamos ser todo escuta ao outro”, assinala.

Ao se dispor a ouvir, é possível perceber que as cores estavam apenas ocultas e não haviam desaparecido para sempre. “É isso que a clínica faz: escuta para poder ver que aquilo que a pessoa traz não é tristeza. É projeto de vida, é incômodo”, ressalta. Sem negar a importância da psiquiatria e da medicina, Ana alerta para os cuidados com o uso e o abuso de antidepressivos; e chama a atenção para a existência de outros caminhos para dialogar com a dor da alma. “O tédio não precisa ser medicado, ele precisa ser ouvido. Precisamos saber o que ele tem a nos dizer. Se eu medico, ele não vai me dizer mais nada, vai ficar anestesiado”. Dar voz ao tédio, na visão de Ana Maria Feijoo, é abrir possibilidade para que a pessoa possa se articular de outro modo no mundo, para além do modo do cansaço.

“Na medida que eu puxo esse fiozinho que está todo escondido, a pessoa pode descobrir outro modo de se articular com as determinações hegemônicas do nosso tempo”, explica. Ouvir também é uma atitude que ajuda a “desacelerar” o mundo. “Sempre estamos com tanta pressa que não temos escuta à vida nem escuta ao outro”, aponta. Como não ser apressado em uma sociedade que exige tanto de nós? “Precisamos parar com essa ideia de que é preciso produzir, produzir, produzir. Deixar de tomar o ser humano como máquina e a existência a partir dos seus mecanismos”, completa.

Da tristeza à depressão

Tristeza e depressão são estados da alma que se confundem. Contudo, para a médica psiquiatra Elisabeth Sene-Costa, integrante do Conselho Científico da Abrata, é possível identificar quando a depressão não é uma tristeza corriqueira e precisa de tratamento. “A tristeza faz parte da condição humana, assim como vários outros sentimentos. Você pode ficar chateado porque naquele dia não conseguiu produzir o que queria, ou teve uma discussão, mas a tristeza passa”, explica. Já a depressão envolve alterações em outras áreas, como comportamento, psicomotricidade, expressão do pensamento e na área chamada neurovegetativa, ligada ao sono e à alimentação. “Para nós, psiquiatras, fazermos um diagnóstico de depressão é necessário que haja dois sintomas básicos: o que a gente chama de humor deprimido, que é essa tristeza, desesperança, um vazio, uma angústia, às vezes choro, até uma irritabilidade. E segundo, a perda ou diminuição do interesse ou prazer pelas coisas da vida”.

Autora do livro “Universo da depressão: histórias e tratamentos pela psiquiatria e pelo psicodrama”, Elisabeth ressalta que os sintomas podem ser sentidos em diferentes esferas da vida. Um deles é a alteração no sono, seja porque a pessoa passou a dormir em excesso ou a ficar insone. Também podem ocorrer mudanças no apetite. “Outro sintoma que acontece é a apatia, o desinteresse geral, a fadiga, a perda de energia. Isso faz com que a pessoa não queira se levantar da cama, não queira tomar banho”, descreve. De acordo com a OMS, os episódios depressivos podem ser leves, moderados ou graves e existem dois tipos de transtornos: o depressivo recorrente, que envolve episódios repetidos por pelo menos duas semanas; e o afetivo bipolar, caracterizado pela alternância de episódios de mania e de depressão, separados por períodos de humor normal.

“O sofrimento acaba acontecendo quando é um grau mais grave e a pessoa tem a sensação como se estivesse carregando chumbo”, pontua. Para a psiquiatra, a depressão também envolve sentimentos de baixa autoestima, culpa e incapacidade, bem como a sensação de que “eu não presto pra nada” e o pessimismo em relação ao presente e ao futuro, o que acaba gerando a perda de iniciativa. Também afeta os movimentos e o pensamento, que podem ficar mais lentos ou mais agitados. Nos casos mais graves, envolve ainda o risco de ideação suicida, tema que Radis tratou na edição 193, ao considerar o suicídio uma questão de saúde pública. “Temos que citar os pensamentos recorrentes de mortes, que são aquelas pessoas que começam a ter vontade de morrer devido ao grande sofrimento que apresentam”, completa a psiquiatra.

Falar sobre suas dores e compartilhar angústias e frustrações são atitudes que ajudam a lidar com esse problema, na visão de Elisabeth. “Toda pessoa com depressão precisa de alguém que a acolha, a receba e a escute. Às vezes a gente vê casais em que a esposa está deprimida e o marido não tem paciência nenhuma, ou vice-versa. Ou então pais de jovens que também não oferecem nenhum colo para essa pessoa”, afirma. Ela também destaca o papel de grupos de apoio como os promovidos pela Abrata — que continuam ocorrendo virtualmente, na pandemia — em que pessoas com depressão e familiares trocam experiências e relatos.

Sobre o uso de antidepressivos, ela afirma que, quando a depressão é leve, a medicação geralmente não é indicada, somente a psicoterapia. O risco, segundo ela, acontece quando outras especialidades médicas além da psiquiatria, que não sabem lidar adequadamente com os sintomas e não averiguam com mais detalhes o histórico do paciente, começam a receitar antidepressivos de modo indiscriminado. “Eles querem simplesmente acabar com o sofrimento. E aí o que acontece é um abuso do antidepressivo nessas situações em que a depressão é leve e que poderia ser tratada com psicoterapia”, diz. Já sobre os efeitos colaterais da medicação, Elisabeth avalia que depende muito das pessoas. A prescrição varia de caso para caso e pode abranger antidepressivos, ansiolíticos (para ansiedade), hipnóticos ou ainda estabilizadores de humor, no caso de transtorno bipolar.

Sofrimento é humano

Depressão é doença? Para responder a essa pergunta, Paulo Amarante, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) e um dos pioneiros do movimento brasileiro pela reforma psiquiátrica, questiona o próprio uso do termo “doença” dentro do campo da saúde mental. “O termo depressão foi de tal maneira apropriado, no caso do comportamento e da experiência de vida, pela psicopatologia, psiquiatria, psicanálise ou psicologia, que ele se tornou sinônimo de doença”, analisa. Se há uma doença ou desordem (em inglês, disease), deveria existir uma ordem. “E qual é a ordem social, psicológica e subjetiva?”, questiona.

“A depressão, a tristeza, a melancolia são experiências fundamentais do humano. Estão ligadas à consciência de si mesmo e da finitude, coisas que até que se prove o contrário os outros animais não têm na mesma intensidade e da mesma forma. É natural do humano”, reflete. Segundo ele, o conceito de depressão está cada vez mais alargado, o que pode fazer com que ele perca essa dimensão da vivência e da experiência psicossocial do sofrimento e passe a significar simplesmente doença — “ou com o eufemismo de transtorno”. “Não existe um limite preciso ou um marcador bioquímico que possa medir o que é e o que não é depressão — esse é o sonho fracassado da psiquiatria. Não se encontrou até então esse marcador”, afirma o fundador e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

Um comportamento pode ser facilmente interpretado como transtorno mental, segundo o pesquisador. “O que se vê atualmente são pessoas com um distanciamento muito grande daquilo que era o seu projeto de vida, entre aquilo que a sociedade, as instituições e as famílias esperavam delas. Cada vez mais uma sociedade muito competitiva e individualista, que exige muito das pessoas, desde jovens e crianças, para que desempenhem suas tarefas”, avalia. A palavra “desempenho” é uma chave para entender como a psiquiatria tem funcionado na base da patologização daquilo que é considerado “fora dos padrões”, de acordo com Paulo: aí entra o mal desempenho psicológico, sexual, laboral, cognitivo e intelectual. “A psiquiatria vende a ideia de que é possível melhorar a capacidade cognitiva. Para fazer prova, os estudantes tomam psicoestimulantes, o mesmo para melhorar a atividade sexual. Esse tem sido um grande investimento da indústria farmacêutica”, considera.

As pessoas têm crises existenciais e de depressão, avalia Paulo, pois estão aquém daquilo que se espera delas e “tudo isso é facilmente patologizável”, isto é, transformado em doença. “Eu passo a considerar que meu problema não é o meu fracasso, a minha dificuldade, as desigualdades sociais que me impedem de achar um emprego, o racismo, e sim porque eu sou doente. Isso funciona como um álibi para mim e para as outras pessoas que passam a me considerar um doente mental, diagnosticado com um transtorno”, reflete. Outro perigo, segundo ele, é a sugestionabilidade dos diagnósticos, o que leva ao uso e abuso de antidepressivos. “Hoje as pessoas já chegam nos consultórios médicos com diagnóstico obtido com terceiros, com vizinhos e familiares, e inclusive com sugestão de medicamentos. Chegam e falam: ‘Eu tenho depressão e pânico, e conheço ‘não sei quem’ que teve também e está dando muito bom resultado com tal e tal remédio’”, critica.

O alerta do médico psiquiatra, autor e organizador de mais de 50 livros na área de saúde mental, é principalmente em relação ao que chama de “epidemia das drogas psiquiátricas”. Ele cita a pesquisa de Irving Kirsch, professor de medicina na Harvard Medical School, nos Estados Unidos, que demonstrou que os medicamentos antidepressivos de última geração não são superiores aos placebos e a outras medidas, como praticar yoga ou participar de uma oficina de arte, por exemplo. O que há em comum entre todas essas medidas? “É fundamentalmente a disposição interna da pessoa a tomar alguma atitude e isso pode ser feito também com o apoio de outras pessoas”, analisa.

Segundo o pesquisador, os antidepressivos não apenas são uma aposta no escuro como podem causar efeitos colaterais e dependência. “Eles podem dar crises de abstinências tão graves quanto outras drogas consideradas ilegais”, afirma Paulo, que é membro do Instituto Internacional para a Retirada das Drogas Psiquiátricas. Um estudo publicado, em 2019, no International Journal of Neuropsychopharmacology identificou agravamento da ideação suicida em pacientes que faziam uso de antidepressivo. De acordo com Paulo, os medicamentos também podem atrapalhar a chamada “autodefesa”, isto é, a busca interna da própria pessoa por saídas da crise.

“O sofrimento é natural da vida. A gente começa a morrer quando nasce. Perdemos pessoas, possibilidades; temos solavancos, obstáculos, tristezas, desencontros, isso é natural. Seria estranho se nós, com tantos percalços na vida, não sofrêssemos”, reflete. Segundo ele, a sociedade cobra produtividade e desempenho de felicidade — e não alcançar o ideal pode ser um fator de sofrimento. “Esse imaginário da felicidade está muito ligado a uma ideia de consumo, não apenas de produtos, mas em grande parte ligado a um fetiche, como se ter fosse me tornar feliz”.

Outro aspecto que não pode ser negligenciado são as determinações sociais, pois “vivemos em um sistema liberal que além de sufocar os empregos acirra a desigualdade e a concorrência”, acrescenta. “Quem é que rouba meu emprego? É a mulher que está querendo entrar no mercado de trabalho, o negro, o índio, o venezuelano, o sírio. Daí o desespero porque o ser humano não vê mais o próximo como par, mas como inimigo”, avalia. Essa percepção gera desespero e sentimentos de tristeza, depressão e desamparo. “Dizer que tudo isso é doença é produzir um grande mercado para a indústria farmacêutica”, conclui.

A dor de cada um

Foram cinco longos anos de depressão, em sua forma grave, vividos por Eliana Campos Zapparoli. Entre 2003 e 2008, a enfermeira e professora da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) conviveu com impactos profundos em sua rotina, causados pela diminuição de energia, dificuldade de concentração e pouca memória, além de mal estar e dor no corpo. Também não conseguia comer direito nem dormir. No percurso, houve muitas trocas de medicação, ajuda médica e psicológica, mas principalmente apoio de seus colegas de trabalho e familiares. “Tive ajuda de meus pais e principalmente de meu marido e filha, que conviviam diariamente comigo e não cobravam de mim além daquilo que conseguia fazer. Eles diziam: isto vai passar, você vai melhorar”, narra.

O apoio recebido na psicoterapia também foi fundamental para ela conseguir conviver com a depressão, além de ajudar a lidar com as dificuldades para realizar suas tarefas. Desde 2008, os sintomas desapareceram; hoje, aos 56 anos, ela é voluntária da Abrata e realiza Grupos de Apoio Mútuo (GAM) com pessoas que vivem com depressão e transtorno bipolar. “Os participantes são acolhidos e recebem apoio de igual para igual, ao expressar suas inquietações e dificuldades em conviver com o transtorno, dividindo suas experiências e compartilhando medos, inseguranças e também esperança, confiança e encorajamento”, conta. Eliana considera essencial o envolvimento de familiares e amigos para que a pessoa seja escutada e receba apoio. “Quando estas pessoas são bem informadas, contribuem para a aceitação da doença, melhora e tratamento adequado”, considera.

Dor na alma, para ela, é aquela que leva ao sofrimento psíquico, gerando uma tristeza profunda e angústia. “É muito diferente da dor física, quando é possível apontar o órgão que dói e logo tem um remédio para tratar. A depressão causa esta dor, levando a pessoa a perder a capacidade de sentir prazer nas atividades, ter dificuldade de concentração e raciocínio lento, ser pessimista, podendo ter pensamentos suicidas”, pontua. Ela ainda destaca que depressão “não é frescura, nem preguiça e nem problema espiritual”. “Por ser um transtorno afetivo, esta doença é silenciosa e as pessoas dificilmente procuram ajuda devido ao estigma que ela carrega”, completa.

Eliana também descobriu a paixão pela arteterapia, ao atuar como voluntária em um projeto que utiliza essa técnica. “A arteterapia possibilita a expressão dos sentimentos e emoções que muitas vezes são difíceis de verbalizar”, ressalta. Linguagens como a plástica, a pintura e a música são usadas para dar voz ao que se encontra oculto na alma. “A arteterapia dá luz àquilo que não aparece na consciência e mostra a verdade revelada pelo inconsciente, que só se comunica por meio de símbolos. Isto gera autoconhecimento e ampliação da consciência, podendo levar à transformação pessoal e até à cura”, conclui. Cada experiência de sofrimento é única, mas expressá-la — seja por meio da arte, da terapia, da conversa ou de outro recurso — pode ser um caminho para que o sofrer não sufoque o viver.

Retratos da melancolia na arte

“Não aguento o cotidiano. Deve ser por isso que escrevo”. A frase de Clarice Lispector em seu livro “Um sopro de vida” — escrito às vésperas de sua morte, em 1977, pelo câncer — é um registro literário de um sentimento tão humano, a melancolia, que intrigou filósofos, poetas, pintores e romancistas desde a Antiguidade. “Para que eu não seja engolido pela voracidade das horas e pelas novidades que fazem o tempo passar depressa — eu cultivo um certo tédio”, ela continua, na voz de um narrador fictício. A arte com frequência é utilizada para dar vazão às angústias — não apenas como “válvula de escape”, mas para tornar os sofrimentos palpáveis e assim superá-los.

Em seu livro “Saturno nos Trópicos” (Cia. das Letras), o escritor e médico Moacyr Scliar aborda os contornos literários e filosóficos desse sentimento, incluindo a obra “A anatomia da melancolia” (1631) de Robert Burton, até autores como Shakespeare, Machado de Assis e Clarice. Scliar narra que os filósofos gregos entendiam que o sofrimento psíquico poderia ser criativo — uma espécie de combustível para a produção na filosofia, na poesia e nas artes, mas que conduzia com frequência à tragédia, tão recorrente nos mitos gregos. Nos mosteiros da Idade Média, a “dor da alma” torna-se pecado — talvez porque se confundisse com falta de fé. Na modernidade, é enquadrada como doença e precisa ser medicada, extirpada como “um mal”.

Tédio, melancolia e angústia sempre fascinaram (e acometeram) autores de diferentes épocas. “Escrevo sobre melancolia, para manter-me ocupado — e assim livrar-me dela”, afirmou o pensador inglês Robert Burton (1577-1640), citado por Scliar. As cores do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890), que inspiraram a edição da reportagem a seguir, são um contraponto a seus sofrimentos psíquicos: ele tinha episódios psicóticos e alucinações e morreu depois de atirar contra o próprio peito. Na obra de Machado de Assis, o tema também é recorrente: o personagem principal de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” buscava a “a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. “Da melancolia à depressão um longo caminho foi percorrido, um caminho marcado pelas grandezas e misérias da condição humana. Das quais toda a grande literatura inevitavelmente dá testemunho”, escreveu Scliar em artigo publicado nos Cadernos Brasileiros de Saúde Mental. Leia aqui: https://bit.ly/2Sf73X5.

Tempos de depressão?

A pandemia de covid-19 pode ser um gatilho para desencadear comportamentos depressivos? Para Ana Maria Feijoo, da Uerj, é preciso tomar cuidado para não patologizar — ou tratar como doença — reações de tristeza e sofrimento naturais da vida. “Numa pandemia, é natural que a pessoa pense muito mais na morte do que em outras épocas, fique na iminência de perder alguém, sinta-se insegura ou ansiosa, e até lave as mãos incessantemente”, explica. Segundo ela, esse tipo de reação não precisa ser medicado, mas discutido. Para Ana, “esses diagnósticos podem ser muito apressados, porque há uma cegueira frente ao real”: quem foge à regra, é chamado de “doente”. “As pessoas que estão muito ansiosas com a pandemia logo são medicadas ou indicadas para psicoterapia, porque qualquer sinal já alarma e já se indica um tratamento que seja rápido, eficiente e que leve outra vez para a rotina normal. Quando, na verdade, estamos em um momento em que a rotina não é normal”, ressalta.

Ana coordena um projeto de suporte psicológico em contexto escolar nos temas de luto e suicídio, com apoio do programa Cientista do Nosso Estado (Faperj). A equipe de psicólogos e voluntários desenvolve dinâmicas e atividades de grupo com os chamados sobreviventes de suicídio — pessoas que tiveram alguém próximo que se matou, principalmente jovens. A ideia é romper a barreira do silêncio e compartilhar os sentimentos. Com a pandemia, o projeto foi adaptado para trabalhar com situações de luto pela covid-19. A professora destaca que o acolhimento é essencial para compreender as etapas do luto. “Primeiro deixamos eles colocarem para fora todas as indignações, de modo que possam ‘cauterizar’ essas emoções exacerbadas e compreender a situação em que se encontram”, conta. Segundo ela, se o luto é simplesmente “medicado”, ele não é vivenciado e, consequentemente, superado como algo da experiência humana.

Para a psiquiatra Elisabeth Sene, com a pandemia, todos nós fomos tolhidos da rotina que existia anteriormente, fosse ela boa ou ruim — na medida em que perdemos a possibilidade de ir e vir para onde quiséssemos ou de abraçar as pessoas. “Isso fez com que muita gente ficasse triste, angustiada, ansiosa, sem ter noção do que fazer. Teve muita gente com insônia, principalmente aqueles que moram sozinhos”, destaca. Ela pontua que o primeiro passo é o cuidado com o que chama de “autocontaminação emocional”, que é a tendência no contexto da pandemia de “pensar negativamente”. “Assustadas, com medo, angustiadas, algumas pessoas começaram a ter muitos pensamentos e sentimentos negativos e entrar num processo de desespero, como se não tivesse mais jeito”, descreve.

Uma das medidas essenciais, segundo Elisabeth, para lidar com as angústias comuns na pandemia é não abrir mão da comunicação com as pessoas — seja por aplicativos ou telefone. “A gente não consegue viver sem se relacionar e os meios tecnológicos ajudaram muito para que pudéssemos nos comunicar uns com os outros”, afirma. Também existem aprendizados possíveis nos momentos difíceis e ela ressalta que uma das formas positivas de lidar com a saúde mental na pandemia é a experimentação de novos papeis. “Pessoas que não sabiam cozinhar começaram a experimentar fazer algo na cozinha, outras que gostam de planta passaram a se dedicar mais, outras escrevendo, e por aí vai. É preciso falar também da importância do exercício, da meditação, do conhecimento de si mesmo e do outro e da promoção de empatia”, reflete.

Já Paulo Amarante, da Fiocruz, ressalta que não devemos confundir o distanciamento social da pandemia com medidas extremas de enclausuramento produzidas por terceiros, como o encarceramento em massa e a internação compulsória. “Quanto mais tivermos consciência da verdadeira dimensão, e não fantasiarmos com imagens equivocadas, saberemos lidar melhor com isso”, afirma. Paulo também chama atenção para as oportunidades de reestabelecer vínculos com os familiares, mesmo que não seja por meio do contato físico. “Estamos num processo de profunda transformação das nossas relações, com a nossa vida, a nossa casa, o nosso trabalho. Isso tem bons e maus resultados. É um processo de transformação que não é só negativo”, avalia.

Segundo o pesquisador, as vivências da pandemia podem sim implicar em autorreflexão e sofrimento, mas não indicam doença. “Uma das coisas que não devemos fazer é se automedicar. Podemos chorar, rezar, ligar para pessoas, mas não tome a seguinte medida: não acredite que se trate de problema de remédios e não abra a gaveta para pegar aquele velho sonífero ou tranquilizante”, pondera. Para o presidente de honra da Abrasme, as mudanças de rotina provocadas pela covid-19 podem despertar novas percepções sobre o mundo e sobre nós mesmos. “Aproveitem esse momento para recriar, para o processo de redescoberta, reeducação e reencontro, que eventualmente traz sofrimento”, reforça. Na avaliação de Rogério Giannini, coordenador da subcomissão de Saúde Mental e Drogas do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), é preciso tomar cuidado para não tratar como doença as questões de saúde mental advindas com a pandemia. “Nessa pandemia, fundamentalmente, as pessoas sofrem pelo desamparo” [Leia entrevista à repórter Ana Cláudia Peres]. (LFS)


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *