18/04/2024 - Edição 540

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Aborto: o governo Bolsonaro embarca em cruzada patética

Publicado em 23/10/2020 12:00 -

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O Brasil se juntou oficialmente aos Estados Unidos e a alguns dos governos mais conservadores do mundo para assinar uma declaração contra o aborto e em defesa das “famílias” – mas apenas daquelas formadas por casais heterossexuais, é claro. Isso tudo com um verniz de defesa “do direito das mulheres aos mais altos padrões de saúde”…. o que, nos termos do texto,  se resume basicamente a garantir que elas “passem com segurança a gravidez e o parto”.

A ‘Declaração de Consenso de Genebra’ vinha sendo articulada há meses, foi anunciada em agosto pelo embaixador dos EUA no Brasil, Todd Chappman, e sua assinatura estava prevista para setembro, mas acabou sendo adiada. De ‘consenso’, não tem nada: a adesão foi baixa, com apenas 31 assinaturas. O texto foi apresentado pelo secretário de Saúde dos EUA, Alex Azar, e pelo secretário de Estado, Mike Pompeo. A participação do Brasil se deu com discursos em vídeo enviados pelos ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos).

O compromisso é o de permitir o acesso à “saúde sexual e reprodutiva, sem incluir o aborto”, entendendo que “não há direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto”. Obrigação, não há. Só que se construiu ao longo dos anos uma base internacional para ampliar os direitos sexuais das mulheres, como lembra a matéria do HuffPost Brasil. Dois marcos são a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo em 1994 (que definiu o aborto como grave problema de saúde pública) e a Conferência Mundial Sobre a Mulher, que aconteceu em 1995 em Pequim, e recomendou a revisão de legislações de aborto punitivas. Ambas se desdobraram em definições posteriores, como decisões das cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos.

A declaração não é vinculante, ou seja, os países não são obrigados a modificar suas leis para seguir o texto. Porém, funciona como uma preparação para quebrar entendimentos internacionais sobre o tema. “É como se fosse um cimento. Os países preparam essa argamassa agora, colocam o peso do secretário de Estado dos EUA, de ministros de Estado, e depois tentam mudar o consenso”, explica o advogado Paulo Lugon Arantes, na Folha. A colunista do UOL Maria Carolina Trevisan completa: “Na prática, o governo do Brasil faz uma ofensiva no exterior para defender a postura antiaborto e para deixar claro que o país não aceitará uma agenda nas organizações internacionais que abra brechas para permitir que educação sexual e direitos reprodutivos sejam estabelecidos e fortalecidos como políticas públicas nas dimensões da saúde da mulher e do combate à violência sexual”. 

Uma ofensiva que, por sinal, tem seus antecedentes, como bem enumera a Folha. No ano passado, por exemplo, o Brasil se opôs a que um documento da ONU tratasse do acesso universal a saúde reprodutiva e sexual. Esta semana, apoiou na Organização dos Estados Americanos (OEA) uma proposta para autorizar que pais imponham educação religiosa ou moral a seus filhos. Das fronteiras para dentro, sobram amostras da atuação do governo federal para limar os direitos que hoje já são garantidos – a mais recente e chocante delas, no caso da criança capixaba que engravidou após ser estuprada pelo tio.

Os países que assinaram o texto são, em sua maioria, os que ocupam os piores lugares no ranking de igualdade e bem-estar da mulher, como Egito, Arábia Saudita, Iraque, Uganda e Paquistão. 

Aliás, uma das nações signatárias, a Polônia, foi manchete esta semana no mundo todo por ter apertado ainda mais sua lei de aborto: proibiu a interrupção de gravidez no caso de má-formação grave do feto. “Eliminar os motivos por trás de quase todos os abortos legais na Polônia é praticamente equivalente a bani-los e violar os direitos humanos”, disse a comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, Dunja Mijatovic. Segundo O Globo, os outros casos em que o aborto é permitido no país hoje (estupro, incesto ou ameaça à saúde e à vida da mãe) só respondem por 2% das interrupções legais feitas nos últimos anos. Houve protestos nas ruas de várias cidades após a decisão.


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