20/04/2024 - Edição 540

Brasil

Os relatos de quem vê crescer número de crianças desnutridas no Brasil: ‘dava para ver todos os ossos do corpo do bebê’

Publicado em 22/10/2020 12:00 -

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Lucas (nome fictício) tinha 8 meses e um aspecto tão franzino e frágil que Maria José não teve coragem de pegá-lo no colo e tirá-lo da rede em que estava deitado.

"O que me impactou, ao abrir aquela rede, foi ver ele gemendo, com o olhar parado, sem nenhuma lágrima", relembra ela. "E a gente podia contar todos os ossos do corpo dele. Não tive reação."

A cena ocorreu em maio de 2019, em uma casa na zona rural de Rio Branco, capital do Acre, onde Maria José Oliveira Sousa Silva é coordenadora estadual da Pastoral da Criança. Desde então, Maria José vê um empobrecimento ainda maior das comunidades atendidas.

"Temos famílias aqui que não têm nenhum salário, que me ligam à noite dizendo que não comeram nada o dia inteiro. Famílias em que o pai volta do dia de trabalho sem dinheiro para alimentar todos os filhos. Na pandemia, recebemos muitos pedidos de ajuda, de gente passando fome e vivendo do mínimo, sem casa para morar. Quem era pobre ficou miserável. A situação está se agravando, e muitos se perguntam: 'como vai ser quando acabar o auxílio emergencial (do governo)?'."

O caso de Lucas acendeu um alerta dentro da coordenação geral da entidade beneficente, que atende crianças em situação de vulnerabilidade no Brasil desde a década de 1980.

"Já no ano passado, mesmo antes da pandemia, a gente vem percebendo que o pessoal (equipes nas esferas estaduais) está voltando a relatar casos graves de subnutridos", diz o médico Nelson Arns Neumann, coordenador da Pastoral da Criança.

"No começo da Pastoral era muito frequente ver crianças de apenas pele e osso, e depois a gente não tinha mais visto isso. Tanto que esses casos (novos) escalaram rápido para a coordenação nacional, porque as equipes tinham perdido a habilidade de lidar com eles."

Embora o calvário do bebê Lucas — que será contado em mais detalhes ao longo desta reportagem — seja extremo e não represente a situação nutricional geral do país, ele reflete uma piora nas condições de vida das famílias mais pobres. Algo que é respaldado tanto por dados estatísticos quanto pela observação de agentes comunitários, como Maria José, que atua na Pastoral da Criança do Acre há 20 anos.

"Esse foi um caso de uma família muito desestruturada, mas, no contexto de pobreza, não acho que seja um caso isolado", diz.

Efeitos para a vida toda

Para fetos, bebês e crianças pequenas, essa desnutrição (ou mesmo a má nutrição) vivenciada no início da vida pode deixar sequelas de longo prazo. Isso porque a ausência da comida muda o metabolismo do corpo infantil, influenciando o funcionamento e o tamanho de órgãos como fígado e coração.

"Desde a fome holandesa (episódio de 1944, durante a Segunda Guerra), vimos que, quando vivida na gestação, a fome tem efeitos para o resto da vida: os holandeses que nasceram naquela época viviam 10% a menos, tinham mais esquizofrenia e doenças metabólicas", afirma Arns Neumann.

"No Brasil, a criança que nasceu com baixo peso tem o dobro de chance de ser diabética e ter pressão alta, (justamente comorbidades associadas a) quem morre mais de covid-19. As crianças de 40 anos atrás (que tiveram má alimentação) estão morrendo mais por covid hoje", conclui ele.

Isso não quer dizer, no entanto, que não seja possível minimizar esses danos nem proporcionar uma vida plena a essas crianças — principalmente se as intervenções ocorrerem cedo, quando a chance de eficácia é maior.

Arns Neumann explica que o corpo também cria mecanismos próprios para preservar o cérebro da desnutrição. "Temos relatos do início dos trabalhos da Pastoral, de crianças ultradesnutridas, que com um ano de vida, pesavam menos do que quando tinham nascido. E elas se recuperaram, passaram (no vestibular) de universidades federais. Mas, em compensação, aos 40 anos, tinham colesterol alto e obesidade, efeitos ligados (ao que tinham vivido nos) seus primeiros mil dias de vida."

Agora, a esperança é de que o bebê Lucas supere essas perspectivas. Maria José ainda o acompanha de longe: hoje, com pouco mais de 2 anos, ele "está tão lindo, caminha e fala normalmente", conta ela.

Uma grande diferença em relação ao ano passado, quando a agente comunitária o acompanhou durante semanas de internações hospitalares, e quando ele chegou a pesar 4 quilos — metade do peso médio de um bebê de nove meses, a idade que tinha na época.

Durante uma das internações, Maria José lembra que viu o bebê desfalecer. Naquele dia, a equipe médica alertou que ele corria risco de morrer.

"Além da nutrição, a gente achava que ele sentia falta de afeto", conta ela. "Então eu abraçava e beijava ele o tempo todo. Ele dormia em cima da gente (voluntárias). A gente via a vida dele indo embora do corpo, mas ele continuava com um olhar vivo."

Aos poucos, o menino foi recuperando o peso até conseguir a alta hospitalar, e Maria José e as demais voluntárias da Pastoral se revezavam para visitá-lo e alimentá-lo em casa.

Mas a família de Lucas, que tem outros seis irmãos, ainda vive em grande vulnerabilidade e segue sendo monitorada pelo conselho tutelar em Rio Branco.

Empobrecimento nos centros urbanos

A piora na nutrição infantil também é observada nas grandes áreas urbanas das cidades mais ricas do país — e uma das ausências mais sentidas dos últimos meses é a da merenda escolar, que tem um papel muito importante na vida das crianças mais pobres.

Desde 2009, uma resolução do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão do Ministério da Educação, determina que as refeições escolares supram 70% das necessidades nutricionais diárias das crianças de zero a três anos que estudem em período integral, e 30% das que estudem meio período.

Essa ausência, junto ao empobrecimento das famílias, a mudanças (para pior) nos hábitos alimentares e à dificuldade no acesso à saúde pública básica — que teve serviços diminuídos ou suspensos por causa do coronavírus —, tem criado um contexto preocupante na saúde física, mental e nutricional das crianças, afirma Maria Paula de Albuquerque, gerente médica do Centro de Recuperação Educação Nutricional (Cren).

A ONG, conveniada à Prefeitura de São Paulo, atende crianças e adolescentes em má situação nutricional que moram em áreas vulneráveis da capital paulista.

"Tem havido um consumo de mais alimentos processados (como salgadinhos e doces), porque muitas mães têm dificuldade em cozinhar", afirma a médica.

Esses alimentos, além de serem pobres em nutrientes, têm sal, açúcar e gordura em excesso. "As nossas crianças com excesso de peso pioraram muito."

E essa nem é a questão mais urgente, prossegue Albuquerque.

"Embora não tenhamos os dados estatísticos, percebemos claramente duas coisas durante a pandemia: 1) as famílias estão bem mais desorganizadas quanto à oferta, frequência e quantidade de alimentos em casa. 2) Todos estão com a saúde mental muito prejudicada, principalmente as mães e os adolescentes. E, no Brasil, a desnutrição não é só resultado da falta de acesso à comida: se o cuidador não tem como cuidar das crianças, a situação delas fica muito complicada."

Ela também teme que as crianças sejam prejudicadas para além da duração da pandemia.

"O impacto da desnutrição é muito ruim na primeira infância. As crianças anêmicas têm pior rendimento escolar. E tanto o excesso de peso quanto a perda de peso estão programando adultos mais doentes: teremos mais hipertensão, diabetes e obesidade daqui a três décadas."

Tanto a Pastoral quanto o Cren tiveram que reduzir drasticamente suas ações presenciais por causa da pandemia, o que dificultou a coleta de dados importantes, como peso e altura das crianças. Albuquerque afirma também que há um "apagão" de parte dos dados da primeira infância — alguns estão desatualizados há anos, dificultando diagnósticos mais amplos.

Mas um conjunto de números disponíveis traz razões para preocupação.

Insegurança alimentar no Brasil e no mundo

Metade das crianças com menos de cinco anos (6,5 milhões) do Brasil vivia em lares com algum grau de segurança alimentar, segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, divulgada no último mês de setembro pelo IBGE.

No total, 10,3 milhões de brasileiros moram em casas onde houve privação severa de alimentos em pelo menos alguns momentos de 2017 e 2018.

Em julho, o Unicef (braço da ONU para infância) e o Ibope perguntaram a 1,5 mil famílias sobre como seus hábitos alimentares haviam mudado na pandemia. E a resposta é que um em cada cinco brasileiros com 18 anos ou mais passou por algum momento em que não tinha dinheiro para comida quando os alimentos da casa acabaram.

Nas casas com crianças ou adolescentes, um terço dos entrevistados declarou ter aumentado o consumo de comida industrializada, como macarrão instantâneo, biscoitos recheados e enlatados.

No mundo, um estudo publicado em julho na revista científica The Lancet estimou que a pandemia levará à desnutrição 6,7 milhões de crianças a mais neste ano.

Ações à distância

E como combater isso, sem poder realizar visitas domiciliares e tendo de diminuir os atendimentos presenciais por causa da pandemia?

"Estamos apostando muito no fortalecimento da economia local", afirma Albuquerque, do Cren, em São Paulo. Com a ajuda financeira de parceiros e doadores, a entidade está ajudando a comprar de agricultores orgânicos que antes vendiam sua produção para escolas.

"Com isso, conseguimos fazer cestas básicas de frutas, verduras, legumes e ovos orgânicos" para famílias em vulnerabilidade nutricional, diz a médica.

"Daí fizemos vídeos curtos para ajudá-las na nova rotina da casa, ensinando desde a fazer uma omelete até a acessar os benefícios oferecidos pelo governo."

Na Pastoral da Criança, a principal ferramenta para trabalhar à distância tem sido um app próprio de celular, que a entidade fez para passar informações às famílias — por exemplo, dicas de brincadeiras, alimentação e higiene com as crianças em casa — e para ajudar a capacitar as equipes de voluntários, explica a nutricionista Caroline Dalabona.

Como o app precisa ser sincronizado com os dados nutricionais das famílias atendidas, a Pastoral pleiteia com as empresas de telefonia que permitam que o aplicativo rode sem precisar usar dados dos planos de celular.

A entidade também conta com os olhos e ouvidos de agentes comunitários e voluntários locais para identificar os casos mais graves e ajudá-los.

"Em Campo Grande (MS), temos uma líder comunitária que ela própria estava passando dificuldades (por estar sem emprego). Mas, quando ela conseguiu uma cesta básica para si, a dividiu com uma mãe, que passava fome com duas crianças e já falava em suicídio", afirma Nelson Arns Neumann.

"Então temos muita solidariedade entre os mais pobres. O problema é que é pobre dividindo com pobre."

Combate à corrupção reduz mortalidade infantil

Auditorias anticorrupção realizadas em municípios brasileiros entre 2003 e 2015 reduziram a mortalidade infantil. Esta é a principal conclusão de um estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que relacionou o programa de fiscalização randômico da Controladoria Geral da União (CGU) a uma melhora de índices sociais no país.

Os dados ainda são preliminares e foram disponibilizados em uma plataforma de pré-prints científicos – ou seja, são passíveis de revisão entre os pares –, mas indicam que as auditorias "foram muito importantes para reduzir corrupção e melhorar a alocação de recursos e o uso de recursos públicos nos municípios brasileiros", afirma um dos autores do estudo, Antonio Pedro Ramos.

"A novidade do nosso trabalho foi mostrar que essas auditorias também tiveram efeito muito positivo na saúde infanto-maternal, principalmente entre crianças não brancas. De acordo com nossas estimativas, os efeitos são duas vezes maiores para crianças não brancas. As auditorias também aumentaram o número de visitas pré-natais e reduziram o número de nascimentos prematuros", afirma Ramos, que é psicólogo, estatístico e cientista político, pesquisador na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e professor visitante na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

Quando os pesquisadores aplicaram um modelo matemático para checar os impactos atribuídos às auditorias realizadas pela CGU no período analisado, constataram que, após as investigações, tais dados tendiam a melhorar nos municípios, o que pode ser entendido como consequência das ações anticorrupção.

O modelo concluiu que, excluindo outras variáveis, os índices tiveram uma redução adicional de 6,7% para a mortalidade neonatal (mortes no primeiro mês de nascimento) em relação aos municípios não auditados; 7,3% para a mortalidade infantil (aqueles que não sobrevivem ao primeiro ano de vida); e 7,3% para a mortalidade de crianças de 1 a 5 anos.

Separando os dados entre brancos e não brancos, a melhoria foi cerca de duas vezes superior no caso dos não brancos: 8,1% contra 3,3% para mortalidade neonatal; 8,2% contra 3,6% para mortalidade infantil; e 8,2% contra 4% no caso de crianças de até cinco anos.

Quanto ao atendimento pré-natal a gestantes, houve uma redução adicional de 12,1% nos casos de grávidas que ficaram sem nenhuma consulta nas localidades que passaram por auditorias em relação às não auditadas. A modelagem matemática também indica que as auditorias contribuíram para uma redução extra de 7,4% os nascimentos prematuros – ou seja, com menos de 37 semanas de gestação. 

Os pesquisadores falam em redução adicional, pois o Brasil como um todo apresentou melhora em tais índices desde a década passada. De 2003 a 2015, a mortalidade neonatal caiu de 13 para 10 por cada mil nascidos vivos. Já a mortalidade infantil caiu de 20 para 14 por mil. A mortalidade de crianças de 1 a 5 anos diminuiu de 23 para 17 por mil. 

Grupo de controle

O estudo considerou o recorte temporal de 2003 a 2015 porque foi nesse período que tais auditorias da CGU ocorreram nesse formato. Os municípios eram escolhidos por sorteio público, no mesmo sistema das loterias da Caixa Econômica Federal. No total, foram aferidas 1.949 localidades. A partir de então, o programa foi reorganizado, e a seleção das cidades passou a obedecer critérios demográficos e estatísticos.

Ramos acredita que o formato anterior tinha uma abordagem mais correta, do ponto de vista científico. "É importante ressaltar que o fato de haver um sorteio é crucial para avaliarmos o efeito das auditorias. Sem o sorteio, não seria possível fazermos uma análise causal crível. O sorteio automaticamente cria dois grupos: o de tratamento, no caso os municípios auditados, e o grupo de controle, ou seja, os municípios que não foram auditados", explica.

"Esses grupos são idênticos em todos os aspectos, exceto o tratamento [as auditorias]. É uma situação muito parecida com ensaios clínicos na medicina, que são feitos para avaliar a eficácia de novos remédios."

"Pandemia oculta"

O estudo usa a expressão "pandemia oculta" para falar sobre como a corrupção interfere em questões de saúde. "A corrupção é uma preocupação premente no Brasil contemporâneo", enfatiza o texto preliminar, citando como exemplo a operação Lava Jato.

Em seguida, os pesquisadores destacam casos em que desvios de recursos públicos afetaram diretamente o setor da saúde, como no escândalo conhecido como "sanguessugas" – que veio a público em 2006, sobre uma quadrilha que desviava dinheiro destinado à compra de ambulâncias – e investigações em curso de corrupção durante a pandemia de covid-19.

"Não podemos inferir que o único mecanismo [descoberto pelas auditorias] seja a retirada dos recursos da saúde via corrupção, apesar de este ser um importante mecanismo", diz Ramos. "Há outros possíveis mecanismos: má alocação de recursos por parte dos gestores, ainda que sem a má-fé; ou uma melhora [decorrente das auditorias] na 'qualidade' dos políticos que então passariam a adotar políticas públicas mais voltadas para a saúde infanto-maternal."

Para o pesquisador, um ponto importante é que tais auditorias estimulam a transparência e a responsabilidade de governança das contas públicas por meio dos políticos locais. "No caso da saúde, os resultados corroboram e explicam algo que já suspeitávamos: só enviar recursos para regiões pobres não é efetivo e pode não promover melhorias na saúde."

Procurado para comentar a pesquisa, o jurista Carlos Ary Sundfeld, professor da FGV-Direito e especialista em direito público, explica que a CGU é consequência de sucessivas estruturações realizadas desde os anos 1930 pelo Estado brasileiro com o objetivo de racionalizar a administração, em um esforço em deixar para trás "aquela administração patrimonialista e improvisada". "Nos municípios e nos estados mais desorganizados, a penetração de problemas de corrupção tendem a ser maiores", ressalta 

"Eles [os auditores] não são xerifes que vão descobrir irregularidades. [As auditorias] são, no fundo, um esforço geral do governo federal de aumentar a qualidade das políticas públicas", contextualiza o jurista. "Provavelmente temos um conjunto de causas que produzem esse impacto positivo."


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