19/04/2024 - Edição 540

Eles em Nós

O céu já caiu

Publicado em 21/10/2020 12:00 - idelber Avelar

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Eu vi algumas das mentes mais brilhantes do meu tempo destruídas por loucura, pandemia, encerro, pauperização e fascismo. Nada presumo saber sobre quem está tendo que tomar dois ônibus para lecionar o dia inteiro, por exemplo (e note-se que isso não é desconhecido para mim: tomar dois ônibus para lecionar o dia inteiro era exatamente o que eu fazia entre 1985 e 1987–claro, sem pandemia).

No entanto, creio, sim, saber um pouco sobre as patologias que assolam uma parte do andar de cima, os acadêmicos próximos ao topo da cadeia alimentar.

Esses acadêmicos jamais se veem como ricos, apesar de o serem, e agarram-se a um pseudo-marxismo mal digerido para se verem a si próprios como oprimidos, e ter uma plataforma (uma desculpa) para exacerbar o seu egoísmo e sua incapacidade de solidariedade. Via de regra, quando um mínimo privilégio desaparece – por exemplo, por motivos de escolha estudantil, a garantia de um público de doutorandos cativos para suas aulas velhas –, eles não pararão para pensar em como lidar com essa perda. Como autômatas egoístas, eles se dirigirão aos mais vulneráveis para impor-lhes uma doação ainda maior de sangue para manter o privilégio. Impor-lhes-ão, por exemplo, um curso obrigatório. E ainda fá-lo-ão com um raciocínio intelectual fake, para dizer que os doutorandos “precisam” daquele curso, quando na verdade é ele que precisa da polícia para ter alunos em sala. É terrível quando vejo acontecer, morro de vergonha da minha categoria.

Mas o irritante dessa elite é a toada de estar sempre ocupada, quando 90% de suas ocupações foram escolhas suas. Eu já nem ligo mais, só dou um sorriso de canto de boca quando ouço os “I'm so busy” que são, para esse setor, uma mistura de medida de prestígio e teatro da autocomiseração. Às vezes respondo com algo verdadeiro-mas-irônico, do tipo “também estou ocupadíssimo. Ontem reli Quincas Borba pela primeira vez em 32 anos, estou em êxtase”.

O caso que segue é verídico, mas a pessoa não será exposta. O objetivo é exemplificar e fazer rir mesmo. Em 2013, brasilianista me diz que tem vontade de expandir seus interesses rumo à Amazônia e eu respondo entusiasmado, dando o começo do caminho: “leia A queda do céu, de Kopenawa e Albert, e comece daí. Depois você dá um jeito de visitar.” O livro havia acabado de sair.

Passam-se dois anos, eu faço mais uma viagem à Amazônia, publico incontáveis denúncias de agressões à floresta e seus povos na internet, publico dois artigos acadêmicos sobre o tema e vejo a pessoa de novo. Eu nem digo nada, ela me diz “estou com sua sugestão de 'A queda do céu', ainda não tive tempo”. O assunto morre. Passam-se mais uns três anos, eu publico mais uns quatro artigos acadêmicos sobre a Amazônia, releio o livro umas duas vezes, dou umas vinte palestras sobre literaturas ou cosmogonias amazônidas nos EUA, Brasil e outros países, vejo a pessoa de novo, e ela me diz “nossa, estive muito ocupado, não li ainda o livro que você sugeriu, A queda do céu”. Naquele momento o negócio já havia virado piada pra mim, porque gosto de rir de professores universitários que “não têm tempo” de ler UM livro.

E aí recentemente, já na pandemia, SETE ANOS depois de eu sugerir o livro, ouvi a mesma frase da mesma pessoa e não resisti:

– Fulano, não se preocupe, não precisa ler mais, não. O céu já caiu.

RESPONDA RÁPIDO: O QUE TÊM EM COMUM O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA E OS TÉCNICOS/ COMENTARISTAS DE FUTEBOL DO BRASIL?

Resposta: ambos são protagonistas recentes, dos últimos anos, dessa invariável brasileira que é a mobilização corporativista para defesa do “profissional brasileiro”, que não está “sendo valorizado”, sempre que concorrência estrangeira de melhor qualidade aparece.

Assistir às mesas redondas de futebol hoje em dia (esses bate-bocas ignorantes de boteco que a TV brasileira chama de mesa redonda) é ser exposto a uma infindável litania de chororô dos Edmundos e Edilsons e Netos, de ciúmes do óbvio fato de que os times que jogaram melhor futebol no Brasil dos últimos anos, como Flamengo e Galo, são dirigidos por técnicos estrangeiros, que chegam e visivelmente transformam a maneira de jogar da equipe.

O ciuminho de corporação superada, tornada obsoleta pela chegada do estrangeiro, se traveste, no caso do futebol, daquele papo furado: “conheço a realidade do Brasil” , “conheço a realidade das quatro linhas” etc.

Pois bem, a choradeira dos técnicos/ comentaristas brasileiros no futebol tem seu perfeito análogo no Conselho Federal de Medicina, que passou anos soltando notas contra o programa Mais Médicos, mas é incapaz de abrir a boca contra os absurdos desferidos por Bolsonaro contra a medicina em plena pandemia.

Sejam quais forem as suas críticas a como Cuba maneja o programa, a discussão que importa aqui é brasileira: quando se trata de impedir que um médico cubano vá atender a um cafundó do Brasil, o CFM faz mobilização em tempo integral.

Em oito meses de pandemia, com Bolsonaro repetidamente dando declarações e implementando medidas que põem em risco a saúde pública, receitando remédio fictício, desqualificando vacina por motivos políticos, literalmente matando gente, e o Conselho Federal de Medicina não tem uma palavra a dizer?

PRECISOU DE UM PAPA PERONISTA PARA A IGREJA CATÓLICA SE ATUALIZAR

Como se sabe, católico que é católico obedece ao Papa, então agora está resolvido. Qualquer católico que vier dizer que casais gays não devem ter o direito de constituir família está contrariando a palavra de Deus. Ou então não é católico. Que se resolvam.

BOLSONARISMO E CORRUPÇÃO

Sobre a relação entre o bolsonarista típico e a corrupção comezinha, vagabunda, de rachadinha e de dinheiro no rabo dos seus líderes, é preciso que se diga algo patente, visível, que não é dito com frequência porque é um tema em que os lulistas ficam muito defensivos. Mas isso não torna a observação menos verdadeira.

Uma parcela substantiva da base do bolsonarismo morre de ressentimento e de inveja dos lulistas, porque já sacou que a corrupção dos dois lados é fundamentalmente diferente. A petista era profissa, no atacado, e incluía um funcionamento estável das instituições.

A corrupção bolsonarista, além de ameaçar a democracia de um jeito que a lulista não ameaçava, ainda por cima tem essa característica: a base de apoio dos corruptos morre de inveja e de ressentimento da corrupção do outro.

É uma miséria total, mesmo.

CRISTÃO

Isso aqui é muito interessante.

No caso da Dilma, acho que na real mesmo ela sempre foi agnóstica (apesar do que andou dizendo e fazendo na Presidência). O Lula era um católico genuíno, de fé. É curioso notar que — não quero agourar, não, viu gente, longe disso — o único presidente católico da história dos EUA levou uma bala no meio das fuças. Seria legal ver Biden vencer e se dar bem na Casa Branca só para varrer esse agouro. O Trump é um ateu total, mentiroso que finge ser cristão. E por aí vai.

Eu jamais escolheria em quem votar baseado na ausência ou presença de fé, mas gosto de observar a história da figura com o deísmo, para saber mais sobre a própria pessoa.

O MINÚSCULO

Quando um bolsonarista te disser, com aquele recorte desonesto ou burro das manchetes, que o mito (o minúsculo) acabou com a "grande corrupção do PT", do estilo Petrobras, creio que a resposta correta não é negar a corrupção dos anos anteriores. A resposta é reconhecer a corrupção dos anos anteriores e simplesmente jogar as cartas na mesa:

— O bolsonarismo é uma corrupção de dinheiro na bunda. A corrupção dos tucanos, dos petistas, do pemedebismo, era uma corrupção conforme às nossas tradições, conservadora, que mantém os costumes desta terra desde Pedrálvares, enquanto o bolsonarismo nos enfia em uma ….

uma corrupção suja, de dinheiro na bunda, de maluco sonegando imposto na Virgínia e praguejando contra o Estado, de ex porta-voz da ditadura encontrando uma boquinha para lamber bota de presidente, daquelas rachadinhas de merda que são literalmente o parlamentar roubando dinheiro do povo, que a corrupção do bolsonarismo é, em suma, mais daninha e mentirosa, porque é mais bandida, mais (literalmente) suja, e que ainda por cima se elegeu com papo mentiroso de que não era corrupto.

Essa é, creio eu, a melhor resposta a se dar a uma bolsonarista do Brasil Profundo que ainda mantenha alguma crença nesse minúsculo mito.

Seguimos a luta, os dias são bastante ruins, e é importante manter-se unidos contra o minúsculo.

Leia outros artigos da coluna: Eles em Nós

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *