26/04/2024 - Edição 540

Cultura e Entretenimento

A palavra de Alessandro Sputnik

Publicado em 20/10/2020 12:00 -

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Chega Palavra Venérea ao cenário das artes do Mato Grosso do Sul balizada por grandes ícones da nossa literatura, Raquel Naveira, Fernando D’Andreia e Carlos Djandre Rolim. Três poetas de primeira grandeza, cujo domínio e maestria da palavra conferem crédito à poética de Alessandro. De modo que, por todos os motivos, quer pela magnitude mesma da obra, quer pela força de sua crítica, é uma obra que dispensa apresentação. Mas não dispensa celebração, especialmente em um cenário onde tantos escrevem e raramente somos surpreendidos por uma literatura de alto valor estético.

Palavra Venérea fala por si mesma, pela sua força transgressora e provocativa, que surpreende o leitor, já no título de abertura, quando emparelha um substantivo a um adjetivo de campo semântico tão diverso. Adjetivo que causa impacto e expectativa porque, de algum modo, anuncia o teor da palavra que virá. Venérea pode remeter a Vênus, como indagou Raquel Naveira em sua apresentação, não se arriscando a nenhuma afirmação, exatamente porque conhece a polissemia que cada palavra carrega na alma. Especialmente, se ela vem cercada de um aparato decisivamente instigante como a cor negra da capa e das páginas, em contraste com as letras brancas e o título em vermelho. Só nesse ato, o poeta quebra toda a intimidade que o mundo mantém com a poética tradicional. São cores e contrastes icônicos da vida, morte e paixão, que levam o leitor à desconfiança de que venérea remeta à doença. Qual seria? Na dúvida e na impossibilidade da transposição fácil desse primeiro marco, vai-se aos poemas, anunciados pela profusão de formas inéditas que dançam no papel em liberdade plena, obrigando o leitor a entrar no ritmo dissonante das letras em tipos e tamanhos desiguais, a enfrentar a desobediência à obrigatoriedade lacônica de  atribuir título a cada poema. São múltiplos os recursos utilizados por Alessandro para vivificar a palavra que vai nascendo, a cada página, dos escombros da velha e carcomida poética que, nitidamente, o incomoda no ato da criação.

Com esta obra, o autor vem, na esteira do grande Manoel de Barros, somar com Carlos Djandre Rolim, o filão de uma poética que causa “overdose na palavra”. Overdose que mata toda e qualquer possibilidade de acerto com o que está posto na literatura banal que não tem mais o que dizer e nem sabe mais como fazê-la. Aí está o motivo do louvor, da celebração.

A palavra é o componente fundamental de nossa humanização, por meio dela é que nos tornamos humanos. Desde os imemoriais tempos bíblicos, é por ela que a vida escoa. E ecoa. No princípio era o verbo, o verbo era com Deus, o verbo era Deus. Depois, Deus se foi e ela, humana, permaneceu na terra, na história, com sua estranha potência. “Ai palavras, ai palavras, que estranha potência a vossa”, cantou Cecília Meireles. Na obra de Alessandro, a palavra ganha potência, no mais alto grau. Chega venérea, entranhada de silêncios mal comportados, desafinações, lamentos e atrocidades, amor em carne viva, urubus, escárnio. Como a desafiar a palavra bem comportada, sem substância, o verso passadiço, com o qual, desde Baudelaire e Rimbaud, os poetas audaciosos, buscam a ruptura. Alessandro rompe com maestria e virtuosidade.  Todavia, romper com o que está posto e dado como padrão literário não é fácil, requer a coragem de versos suicidas. Alessandro a tem. De sobra. Seus versos inaugurais, de “parnasiano perneta”, são feitos de fragmentos, de ausências, rupturas e silêncios.

Silêncios que falam alto, quando a verve do poeta assim exige. Silêncios que murmuram às vezes, docemente, nos farelinhos de chão, a costurar chuviscos e rabiscar perfumes. Então o leitor sente o lirismo vir à tona, para, logo em seguida, se deparar com um poeta que “arde de inadequação”. É essa inadequação do poeta a um mundo obsoleto, em suas instituições, relações, pensamento e arte, a um lirismo ultrapassado e manco,  que faz Alessandro, nas entrelinhas e fragmentos, carnavalizar o mundo, romper com todas as sanidades, trocar a palavra sedutoramente vazia e  bem comportada  pelo verso insano, pelo desejo de descerebrar o homo sapiens, de envenenar a razão de um mundo caduco que sutilmente vai minando as almas poéticas e as de toda gente. Alessandro se faz arauto de um novo mundo, de um novo tempo, de uma nova poética.

Vive-se no mundo da decadência e da barbárie de uma civilização. Que se expressa sob a forma de uma contemporaneidade cultural em crise, saturada, na qual a energia e a força criadora, ao longo do tempo, vai perdendo progressivamente sua plenitude vital. Por consequência, essa força se enfraquece e estiola. Sobre a saturação cultural, diz Moser, a degradação produz literalmente dejetos. E sobre os restos de épocas precedentes se elabora num campo de restos, de fragmentos, de escombros, de ruínas, materialmente presentes sobre a forma de destroços inúmeros, espalhados por toda parte, fazendo do campo cultural um campo de escombros. E essa é a razão porque, no campo das artes, a barbárie se expressa na quase totalidade da produção humana. De modo específico, na literatura, a tarefa de anunciar um novo tempo, uma nova literatura fica restrita a poucas obras produzidas, que se banham nos escombros, nos restos, nos dejetos, mas não se contamina porque tem saúde. Adquirem magnitude exatamente aquelas obras que conseguem registrar o acirramento da contradição civilizatória. Conseguem assinalar que uma nova sociedade, uma nova língua, uma nova literatura vão surgindo dos escombros da velha sociedade e da velha literatura.

Considera-se uma grande obra aquela capaz de expressar a diluição, a desconstrução, o desmanche, de tal forma que ao realizá-lo já seja ela mesma a nova forma em construção. Assim, a diluição, o desmanche, a desconstrução se expressam de forma contundente nas obras “daqueles artistas que melhor conseguiram intuir a qualidade da experiência humana própria de sua época…” (Malcom Bradbury  e James McFarlane).

Assim percebo a obra de Alessandro. Por isso a louvo. O poeta, com Palavra Venérea, inscreve-se na tradição dos que foram capazes de ouvir os gritos e sussurros de um mundo em decomposição, e sem se deixar seduzir, rompem com seus preceitos e nos conduz assim a um patamar histórico mais alto. É preciso rasgar as entranhas de uma sociedade, expor sua putrefação, dessacralizar seus cânones com coragem suicida para que a arte se liberte e com ela, liberte a humanidade dos grilhões que ainda a prendem à condenação, à coisa feita, à petrificação. Alessandro com a faca afiada da sua obra, nos aponta os novos rumos da poética e assim contribui com a nossa humanização.

Gratidão, caro poeta.

Ana Arguelho – Doutora em Literatura, professora e pesquisadora-UEMS   


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