18/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Brasil é um país feminino e negro, mas não se reconhece assim, diz antropóloga

Publicado em 19/10/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Por trás do maior grupo populacional brasileiro ― os autodeclarados pardos, que correspondem a 46,7% da população, segundo o IBGE ―, há uma política de embranquecimento do País, na avaliação da antropóloga Jaqueline Conceição, fundadora do Instituto de Pesquisa sobre Questões Étnico Racial e de Gênero Coletivo Di Jejê. Em entrevista ao HuffPost, a especialista em questões raciais afirma que essa é uma estratégia sociopolítica de que pouco se fala no País, mas que acabou escancarada em casos recentes de racismo

“O Neymar, eu, que sou filha de uma relação inter-racial, a Anitta, e várias outras figuras negras, como a Camila Pitanga, são frutos dessa política de embranquecimento da população negra. Mas nós somos negros, mesmo com esse processo de embranquecimento”, ressalta. ”[O pardo] É essa população mestiça, entre indígena, europeu e negro.” 

Neymar, apesar de ter o tom de pele mais claro e olhos verdes, sofreu racismo durante um jogo do campeonato francês. Para muita gente, a discriminação foi o gatilho para perceber Neymar como um homem negro. E, nesse sentido, o caso foi importante para refletir sobre as diferentes camadas de debate racial no País. Para Conceição, existe uma falsa ideia de que se não falar sobre determinada questão, ela não existe.

“É igual machismo; as mulheres é que denunciam, e ele passa a fazer parte da vida cotidiana. É o mal-estar da denúncia. Acho que é para esse lugar que a gente tem que caminhar cada vez mais no Brasil: o mal-estar da denúncia de ficar apontando e dizendo ‘olha, o Brasil é um país racista, é um país homofóbico, é um país violento’”, diz. 

A antropóloga ressalta que o Brasil é um país feminino e negro — segundo a PNAD Contínua, do IBGE, são 51,8% de mulheres e 48,2% de homens. Na raça, 56,2% dos brasileiros são pardos ou pretos e 42,7%, brancos. Ainda assim, pesquisas do instituto de Conceição mostram que homens e mulheres negras não percebem essa realidade.

“A figura do homem branco, do patriarca, do senhor de engenho, ainda é nosso local de referência, ainda é para onde a gente se volta”, reflete. 

Por isso, ela entende que o combate ao racismo é uma tarefa de todos — brancos, pardos, pretos. “Não é esperar que homens e mulheres negros deem a resposta, é pensar junto, com intelectuais negros, com filósofos negros, com professores, pesquisadores, artistas. Isso destrava o olhar do óbvio”, diz. 

 

O movimento de combate ao racismo no Brasil ganhou uma força com a repercussão internacional do Black Lives Matter. Nos Estados Unidos parece estar mudando paradigmas, esses efeitos chegarão ao Brasil?

Toda mudança do ponto de vista da estrutura social, sempre se dá nesses processos. Tanto que quando o Haiti fez a revolução, mais vou menos em 1780, e libertou os haitianos da escravidão francesa, a historiografia apagou isso da memória social para que outras nações também marcadamente africanas no contexto de escravidão não fizessem o mesmo processo. Houve vários procedimentos logo após a revolução haitiana para que isso não se disseminasse pelas Américas. Então, todo processo social tem um reflexo. Hoje, com a mídia alternativa, com a internet, essas experiências vão chegando. A tendência é que isso se afirme no Brasil.

Quais as diferenças entre o movimento negro norte-americano e o brasileiro?

O movimento negro no Brasil é muito mais combativo do que nos Estados Unidos, por mais incrível que isso possa parecer. A gente é mais organizado, mais sistematizado, mais politizado do que o movimento negro norte-americano. Tanto que as bandeiras deles são de outra ordem, diferentes das nossas, mas eles são mais responsivos, no sentido de que a violência acontece e eles conseguem dar uma resposta violenta proporcional, igual ao que aconteceu [no Black Lives Matter, após o assassinato de George Floyd], e essa não é a tradição do movimento negro no Brasil, mas a tendência é que isso se aflore aqui também. 

Hoje mais do que nunca estamos falando sobre racismo, falando nas novelas, nos sites de fofoca, a polêmica do Neymar é um exemplo. Essas coisas estão colocando cada vez mais a discussão…

A polêmica do Neymar toca em uma coisa que é a ideia do colorismo, que tem a ver com a miscigenação aqui no Brasil. Esse foi um projeto político que tem a ver com o embranquecimento da população. Então, o Neymar, eu, que sou filha de uma relação inter-racial, a Anitta, e várias outras figuras negras, como a Camila Pitanga, são frutos da política de embranquecimento da população negra. Mas nós somos negros, mesmo nesse processo de embranquecimento. Tanto que houve racismo com o Neymar. 

O caso do Neymar traz à tona essa outra dimensão que a gente fala pouco, que é esse processo de embranquecimento, que eles chamam de pardo. É essa população mestiça, entre indígena, europeu e negro. É horrível sofrer racismo. Todo mundo que já sofreu sabe o que o Neymar sentiu, mas por outro lado, achei fantástico no sentido de que trouxe esse debate sobre como o racismo opera de fato, especialmente aqui no Brasil.

É possível mudar esse cenário?

Uma coisa que a gente tem insistido é que não dá para discutir a ideia de machismo que está atrelada à noção de patriarcado no Brasil sem pensar o racismo porque é resultado do modelo social do engenho de açúcar, que foi durante 380 anos o modelo social da vida cotidiana no Brasil. Quer dizer, a figura centrada no senhor de engenho e as pessoas que trabalhavam para ele, os escravos. Com a abolição, isso não foi culturalmente superado. A figura do homem branco, do patriarca, do senhor de engenho, ainda é nosso local de referência, ainda é para onde a gente se volta. Isso do ponto de vista do simbólico, e não dá para a gente pensar o machismo e o racismo sem pensar no que é simbólico, do que está na cultura, na mídia, no jornal, na novela. 

E o Brasil é um país muito machista por conta dessa herança e também muito racista, então isso inclui desde pensar práticas escolares na formação das pessoas que discutam essas duas questões, com uma educação antirracista e antissexista até como a cultura produz essas percepções, como essa cultura vai moldando a mentalidade das pessoas sobre isso. É curioso porque o Brasil é um país feminino e é um país negro, mas a gente tem visto nas pesquisas que a gente tem feito que de alguma maneira pessoas negras, mulheres negras não percebem que o Brasil é um país negro e feminino. O que é um problema.

Saiu uma pesquisa que mostra que boa parte das denúncias de violência contra as mulheres não lista a raça da vítima. Por que isso não acontece?

Aqui em Santa Catarina, a gente tem um fenômeno da europeização, que o Brasil todo sofre, mas parece que aqui é um dos lugares mais perversos. E uma das coisas que existe é a falsa ideia de que, se você não falar sobre a coisa, ela não existe. Então eu acho que o que faz as pessoas não notarem o item racial da vítima da violência de gênero é a falsa ideia de que se a gente não tipificar, isso não vai existir. É aquela narrativa: só tem racismo porque as pessoas negras ficam falando de racismo. É claro… É igual machismo; as mulheres é que denunciam, e ele passa a fazer parte da vida cotidiana. É o mal-estar da denúncia.

Acho que é para esse lugar que a gente tem que caminhar cada vez mais no Brasil: o mal-estar da denúncia de ficar apontando e dizendo “olha, o Brasil é um país racista, é um país homofóbico, é um país violento”. E o que a gente faz com isso? A gente não tem pensado que nosso país tem uma cultura violenta, centrada na figura do homem, do coronel, do senhor de engenho… E o que isso impacta? Para onde a gente vai com isso?

Fico pensando que cada vez mais a gente precisa ampliar as discussões raciais no Brasil e de gênero para além do fla-flu, do branco versus negro. A gente precisa criar espaços de discussão seguros para pessoas negras para que elas não se sintam violentadas, ao mesmo tempo onde pessoas brancas possam também ampliar o seu repertório teórico. Profissionais precisam pensar mais sobre isso. Acho também que a sociedade naturalmente vai caminhar para esse lugar. Essa é a resposta à extrema-direita que está no poder.

Historicamente, quanto mais autoritário o governo, mais células de resistência e enfrentamento vão surgindo, alternativas. Quando isso afrouxa, quando tem um governo mais democrata, mais popular, como foi na gestão do ex-presidente Lula, isso diminui porque dá a falsa impressão de que está tudo bem. Esse é o movimento da História. É assim que a História se constrói. À medida que intensifica a violência e a miséria com esse governo atual, a própria comunidade negra, de mulheres, indígenas, LGBT, de qualquer ordem que for, vai encontrando respostas e formas de pressionar e construir outras maneiras. Acho que é importante a gente pensar nesse lugar de esperança que a gente vai construindo.

Qual conselho você dá para a população branca interessada em se aliar na luta de combate ao racismo?

É importante que elas apoiem coletivos negros, é importante que busquem conhecimento. Não é esperar que homens e mulheres negros deem a resposta, é pensar junto, com intelectuais negros, com filósofos negros, com professores, pesquisadores, artistas. Isso destrava o olhar do óbvio, do comum, do vício do cotidiano. Isso é muito importante. E sobretudo, em um país desigual como o nosso, o apoio financeiro também é importante. Consumir produtos produzidos pela comunidade negra, pela comunidade indígena, pela comunidade quilombola, pelos territórios periféricos, fazer essa cruzada da economia porque a renda está concentrada na classe média alta e classe alta, e a periferia e espaços não-brancos estão imersos em uma pobreza. Apoiar essas iniciativas negras, indígenas, quilombolas, periféricas, são esses territórios de resistência que vão apontar o caminho do amanhã.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *