19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A ganância e a idolatria ao dinheiro transformaram o Pantanal em terra arrasada, diz Teobaldo Witter

Publicado em 19/10/2020 12:00 -

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A tragédia ambiental e social que atinge o Pantanal nos últimos meses, em decorrência do aumento das queimadas, não é um problema estritamente local do bioma brasileiro, considerado uma das maiores áreas úmidas contínuas do planeta. As causas que levam à destruição do ecossistema são mais profundas e podem ser vistas em nível regional, nacional e global, manifestadas através da "ganância humana".

Teobaldo Witter, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB em Mato Grosso, e integrante dos movimentos religiosos e sociais comprometidos com o cuidado da nossa casa comum, é enfático ao observar esse aspecto. "A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa autossuficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro ('Mamon'). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje", assegura.

Há mais de 40 anos, ele transita entre a Floresta Amazônica, o Cerrado e o Pantanal e relata que as queimadas deste ano são incomparáveis a outros períodos. "Durante duas madrugadas, pássaros do Pantanal vieram se abrigar no cajueiro do pátio e nas árvores das praças. Macacos vieram se alimentar das frutas das mangueiras. Isso nunca havia acontecido. Cinzas, poeira tóxica, calor alto, umidade baixa, o fundo da piscina preto de carvão que vem com o vento", sem falar nas comunidades quilombolas, pantaneiros ribeirinhos, indígenas, como Guató, Xaraiés, Bororo e outros, que são diretamente afetadas.

Na entrevista a seguir, Witter também critica a lentidão do governo federal em tomar uma atitude para conter as queimadas e fala sobre as expectativas acerca do trabalho da Comissão Externa Queimadas em Biomas Brasileiros da Câmara Federal, na criação de "leis justas para a promoção dos direitos humanos e da terra".

Teobaldo Witter é doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso, com a tese "A prática solidária luterana, no Sínodo Mato Grosso-IECLB, MT: dimensões pedagógica e teológica", mestre em Teologia com ênfase em práticas sociais e gestão de redes, pela Escola Superior de Teologia – EST, São Leopoldo, e graduado em Pedagogia pelas Faculdades Integradas de Várzea Grande, MT.

 

Os ambientalistas dizem que o Pantanal vive a maior tragédia ambiental das últimas décadas. Como está a situação na região atualmente e quais foram as áreas mais afetadas pelas queimadas no Pantanal?

Antes de falar ou escrever qualquer palavra, eu expresso minha solidariedade com todas as pessoas que, sensibilizadas, arriscam suas próprias vidas para salvar animais, floresta e a terra. Um gigantesco mutirão de voluntários está nesta luta justa. Chegaram antes de qualquer governo. Em memória do artista plástico Sebastião Mendes, de 54 anos, que morreu, na tarde de 8 de outubro, ao sofrer um infarto enquanto ajudava a apagar o fogo na Serra do Taquaral, em Cáceres, MT. (E Jesus chorou, João 11.35).

Vivo no Mato Grosso e Pará há 44 anos. São duas gerações. Andei por muitas regiões da Floresta Amazônica, do Cerrado e do Pantanal. Era terra de florestas, águas e vegetações rasteiras. Nas áreas da maioria das atuais cidades de hoje se ouvia o cantar das aves, dos pássaros, o rastro dos animais terrestres e o pular dos peixes livres nos rios límpidos. Secas sempre teve. Geralmente, de maio a outubro é essa seca. Mas fumaça havia somente em locais onde foram instaladas as grandes serrarias. Em 1979 foi uma das secas mais longas. Mais de seis meses. Mas havia fumaça aqui e acolá. Havia poeira e ar seco, isso sim. Penso que aí pela virada do milênio, ou um pouco antes, as chamas surgiram mais violentas. E não respeitavam mais o que vinha pela frente: capim, mato seco, animais etc.

O Pantanal é a grande área alagada no Brasil, na Bolívia, no Paraguai. O Pantanal foi o caminho pelas águas para ir à Europa e a outros continentes. Isso foi até a década de 1940. Mas durante as últimas décadas houve vários embates para preservar o Pantanal. Projetos econômicos e de navegação ameaçam a vida do bioma.

14 de novembro é o Dia do Rio Paraguai, de articulação internacional para cuidar do rio, coordenado pela entidade Fé e Vida, de Cáceres, MT. É dia de fazer a síntese das atividades diárias do cuidar: recolher lixo, educar a população, preservar a floresta ciliar, celebrar a vida. Em 2008, o Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama aprovou este “Dia do Pantanal”. Esta data é significativa porque lembra a luta contra a instalação das usinas de álcool e açúcar no Pantanal. Cuidar do Pantanal está sendo difícil e até ameaçador. Talvez isso explique o fogo criminoso.

Aqui na região onde vivo, as áreas de vegetação nos municípios do entorno de Cuiabá e a estrada Transpantaneira foram queimadas. Os animais que ainda vivem vêm para a cidade em busca de água e alimentação. Aves voam durante a noite e se abrigam das ruas. Tragédia. Em outras épocas, já teve fogo no Pantanal, mas nada se compara ao que ocorre nestes dias; é terra arrasada. Por onde o fogo passa, tem cinzas, animais das espécies pantaneiras mortos ou feridos, sem comida e sem água. Os que conseguem fugir do fogo, perambulam pelas cinzas.

Quais são os principais efeitos das queimadas no Pantanal no estado de Mato Grosso, onde o senhor vive?

Eu vivo em Cuiabá, MT. Durante duas madrugadas, pássaros do Pantanal vieram se abrigar no cajueiro do pátio e nas árvores das praças. Macacos vieram se alimentar das frutas das mangueiras. Isso nunca havia acontecido. Cinzas, poeira tóxica, calor alto, umidade baixa, o fundo da piscina preto de carvão que vem com o vento.

Como as queimadas atingem a população que vive no entorno do bioma? Quem são os mais afetados pelas queimadas?

Toda a população é afetada. Mas as pessoas mais afetadas são as que vivem em situação de vulnerabilidade: quilombolas, pantaneiros ribeirinhos, indígenas, como Guató, Xaraiés, Bororo e outros. Alguns ficaram sem caça, pesca e lavoura.

Além da seca, que contribui para as queimadas no Pantanal, que fatores têm contribuído para o aumento das queimadas?

A seca é apenas um facilitador. A ganância humana é que mais contribui para as queimadas. O valor de mercado da terra é tentador. Dominadas pela ganância de ter mais, as pessoas cometem loucuras. Inclusive queimar terras de domínio da União para grilar e fazer lavoura ou pastagem e, posteriormente, legalizar em seu nome ou de algum parente.

Quais são os crimes ambientais em curso no Pantanal?

Pois é. Vários procedimentos, mesmo que legalizados, trazem prejuízos à natureza. Por exemplo, o agrotóxico, jogado no ar e nas lavouras de todo entorno do Pantanal, prejudica. Fica na terra por muito tempo. Pela água das chuvas e dos rios é levado para as partes mais baixas, junto com vegetais e animais mortos. Com a construção das cidades, as fontes e afluentes são entupidos de lixo urbano. Com o assoreamento, com o acúmulo de lixo, os rios e lagos diminuem o fluxo da água. Menos água, menos Pantanal.

Historicamente, o Pantanal serviu como uma esponja que segura as águas das chuvas e as libera aos poucos. A falta de saneamento, além de produzir água tóxica, diminui esse processo natural. Há existência de garimpos em algumas áreas, como em Poconé, onde são cavoucadas enormes crateras. É claro que isso fere e mata o ecossistema da vida. Quanto ao fogo, segundo imagens de satélite, a maior parte é ilegal. É criminoso. Os crimes são facilitados pela impunidade. É proibido usar fogo nesta época, mas quem fiscaliza? Quem pune quem? Parece que o crime compensa. O cara queima, expulsa o pobre e aquele em situação de vulnerabilidade, mata os animais e a natureza. Depois o Estado legaliza terra para ele?

Como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs – Conic e outras instituições ligadas às igrejas estão atuando diante das queimadas no Pantanal?

O Conic tem boa perspectiva e contribuição para colaborar com o cuidado da vida no Pantanal. Reúne igrejas e entidades ecumênicas e pessoas de boa vontade. Temos a Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021. A sua metodologia: ver, julgar, agir, celebrar e continuar é adequada para a realidade do Pantanal. Tem o gesto concreto das ofertas. Comunidade e grupos podem recorrer ao fundo para auxiliar nos seus projetos de promoção da vida humana e da natureza. Tem também a Semana de Oração pela Unidade Cristã, quando diferentes comunidades se encontram para celebrar e assumir compromissos individuais, familiares, sociais e comunitários. A boniteza, como escreve Paulo Freire, se expressa na união de esforços para cuidar mais do Pantanal.

 

Como foi o encontro dos movimentos religiosos e sociais da região do Pantanal com deputados para tratar sobre o enfrentamento das queimadas? Qual seu balanço deste encontro?

O encontro com lideranças de diferentes igrejas, bispo, padre, pastor, pesquisador e entidades que trabalham diretamente na área do Pantanal, do Cerrado e da Amazônia foi muito bom. A Comissão Externa Queimadas em Biomas Brasileiros da Câmara Federal fez e está fazendo pesquisa contextualizada com quem vive nesta região. Com isso, esta comissão percebe o que está acontecendo e cria sensibilidade com a vida ameaçada nos biomas. E recolhe sugestões de leis justas para a promoção dos direitos humanos e da terra.

Os movimentos religiosos e sociais reclamaram da lentidão do governo em lidar com os incêndios. O que poderia ter sido feito?

O fogo é instrumento útil para a humanidade há milênios. Tem seu espaço na vida. Mas ele escapou do controle no Pantanal, na Amazônia, no Cerrado e em outras áreas. Aí, não tem jeito; ele arrasa. No entanto, todo ser humano sabe muito bem disso. A história está cheia deste conhecimento, tem muitas experiências. O que faltou? Faltou respeito do governo brasileiro à natureza e às informações da Ciência, que estava anunciando a tragédia. O Pantanal em chamas, e o ministro continuava negando o perigo. Faltou compromisso. Todo fogo pode ser combatido, desde que se assuma a responsabilidade de fazê-lo. O Estado não se comprometeu, deixou tomar conta. O governo está chegando quando o fogo já queimou e está se apagando; é irresponsabilidade total. O governo tem a força nacional, tem exército e outras forças para agir no combate ao fogo. Por que não agiu?

Tem questões históricas. A ganância humana quer acabar com os biomas. O uso sustentável da natureza deve ser planejado, e podemos tirar dela o sustento humano; isso é direitos humanos. Mas a natureza também tem direito de viver. No entanto o modelo de desenvolvimento é predatório. Até quando a terra vai nos aguentar? É preciso mudar o modelo.

Deseja acrescentar algo?

Sim, desejo lembrar uma bela reflexão que o Concílio da Igreja elaborou no ano 2000, na Chapada dos Guimarães, na região do Pantanal, MT. Não há como negar. O problema é local, mas não é somente local: é regional, nacional e global. A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa autossuficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro (“Mamon”). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje. Somos testemunhas de que esse sistema requer sacrifícios, faz suas vítimas e promove dor, sofrimento e morte. Jesus diz: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (João 10.10).


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