24/04/2024 - Edição 540

Poder

Elogio de Mourão a torturador envergonha o país

Publicado em 16/10/2020 12:00 -

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O diabo mora nos detalhes, principalmente naqueles que não são ditos. Questionado sobre o fato de Jair Bolsonaro considerar o finado torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra um herói nacional, o vice-presidente, Hamilton Mourão, afirmou que ele "era um homem de honra, que respeitava os direitos humanos de seus subordinados".

De seus subordinados. E só.

O açougueiro Ustra foi chefe de um dos principais centros de repressão da ditadura, o DOI-Codi, em São Paulo, acusado de tortura, desaparecimento e morte de presos políticos. Chegou a ser declarado pela Justiça como responsável por casos de tortura e também condenado a pagar indenização por conta da morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Fez escola e seus métodos são, hoje, repetidos pela banda podre da polícia.

A opinião do general da reserva, dada ao canal de TV alemão Deutsche Welle, não é novidade. Até porque ele também já chamou o finado coronel de "herói" mais de uma vez. Como em 28 de fevereiro de 2018, em seu discurso de aposentadoria do Exército. Certamente o finado chefe do DOI-Codi não foi incensado por seus belos olhos ou pela forma pela qual fazia um guisado de frango ou jogava tranca.

Ou no dia 08 de setembro do mesmo ano, em meio à campanha eleitoral, em sabatina na GloboNews, quando Mourão disse que "heróis matam" ao falar do torturador. Considerando que Ustra espancava e matava quem não podia reagir por já estar preso e sob tutela do poder público, diria que o exemplo de herói do vice foi um sujeitinho bem covarde.

Mas, se não é novidade, por que o caso ainda choca? Talvez porque o vice-presidente deu uma passada de pano "tipo exportação" em um torturador. Ou porque, diante da inação de instituições que deveriam questionar esse tipo de declaração, a indignação é a única coisa que resta.

E por que algo que aconteceu há tanto tempo é tão importante? Por continuar se repetindo.

Durante as sessões de tortura realizadas no 36º Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi), na capital paulista, durante a ditadura militar, os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema nunca para por conta própria.

A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo. Dizem que os carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano. Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram por aquele prédio amavam sua "profissão". Ustra era um deles.

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. E a metodologia desenvolvida durante esse período, junto à certeza do "tudo pode", continua provocando vítimas pelas mãos do Estado nas periferias das grandes cidades, nos grotões das regiões rurais, onde a vida vale muito pouco. Principalmente se ela for negra.

"A maioria é tudo cascata para ganhar indenização." Foi assim que Jair Bolsonaro chamou as denúncias de tortura ocorridas durante a ditadura, em conversa com seus fãs, na porta do Palácio do Alvorada, no dia 29 de março deste ano. Negar que houve tortura, apesar de torturadores atestarem o que fizeram (alguns com orgulho), de sobreviventes revelarem as marcas em seus corpos e as sequelas em suas mentes, das fotos, dos registros, dos cadáveres, seria um absurdo em qualquer lugar decente. Mas, no momento em que estamos no Brasil, é apenas parte do cotidiano.

O presidente reclama dos que afirmam que a abominável facada que ele levou, em setembro de 2018, foi uma cascata para ganhar a eleição. Mas não se importa em dizer que denúncias de tortura são cascatas de quem quer receber compensações.

É inacreditável que ainda precisemos explicar o porquê disso tudo estando, em tese, em uma democracia. O que nos leva a crer que podemos estar sonhando – um pesadelo, claro. Ou a democracia foi mesmo sequestrada no Brasil e presa a um pau de arara.

Em tempo: Em textos como este, normalmente surgem seres que bradam que ditaduras de esquerda também torturaram e mataram, como se isso justificasse o horror cometido pela direita. Sim, torturaram e mataram e, infelizmente os envolvidos não foram punidos. Mas se não há tempo para eles, talvez ainda haja para que pessoas que relativizam o terror com o terror do outro possam se despir de sua ignorância.

Elogio de Mourão a torturador envergonha o país

Ao elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, Mourão envergonhou o Brasil no estrangeiro e constrangeu o brasileiro dentro do seu país. A fala é vergonhosa porque estrangeiros esclarecidos, como o entrevistador que ouviu Mourão, sabem que o militar elogiado por ele é uma espécie de símbolo da tortura no Brasil. A declaração é constrangedora porque a chapa eleita em 2018 como uma opção à esquerda representada pelo PT se esforça para demonstrar ao eleitorado do seu país que não é conservadora, mas atrasada, arcaica.

A dupla Bolsonaro-Mourão prevaleceu na sucessão passada porque 57 milhões de brasileiros quiseram dar uma guinada à direita. Beleza. Um dos princípios mais belos da democracia é a alternância no poder. O problema é que, sempre que falam sobre o período militar, o presidente e o vice agem como se cuspissem no prato em que comeram para chegar ao poder. Bolsonaro e Mourão negam a própria existência da ditadura. Tratam Brilhante Ustra como herói nacional.

Estava entendido que a chapa vencedora em 2018 levaria o governo para a direita. Mas é improvável que todos os 57 milhões de eleitores que votaram na dupla avalizem a tentativa de dar uma marcha à ré na história. "Ustra era homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados", disse Mourão. Ora, não há honra na tortura.

Em 2013, arrastado a contragosto para um depoimento na Comissão da Verdade, o coronel Ustra disse aos membros do colegiado: "Quem deveria estar aqui é o Exército brasileiro, não eu". Ustra nunca foi repreendido em sua carreira militar. Isso é uma parte da história com a qual o Exército tem que lidar. O que não parece razoável é que Mourão queira acrescentar ao constrangimento uma dose de desfaçatez.

Mourão declarou que é preciso "esperar que a história faça a sua parte." Enquanto espera, o vice-presidente do Brasil deveria cogitar a hipótese de fazer imediatamente a sua parte. Se, como general, admira o torturador, convém confessar sua idolatria apenas para o espelho.

Quem foi o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão

A tortura de adversários da ditadura militar de 64 foi adotada como política de Estado, segundo admitiu Ernesto Geisel, o terceiro general-presidente de um ciclo de 21 anos do regime da farda, do choque elétrico, do pau-de-arara, da unha arrancada a alicate, do rato introduzido em vaginas e da cobra posta em cela para assombrar os seus ocupantes e não deixá-los dormir.

Há prova abundante de tudo isso, inclusive um HD com 43 documentos produzidos pela inteligência americana entre os anos 1967 e 1977 e entregue por Joe Biden, à época vice de Barack Obama, a presidente Dilma Rousseff. Biden, hoje, com 77 anos de idade, está a um passo de derrotar Donald Trump e de ser eleito presidente dos Estados Unidos no próximo dia 3 de novembro.

Geisel provou na pele quanto pode ser incômodo um presidente americano a pressionar para que se respeite os direitos humanos. O presidente Jimmy Carter foi uma pedra no sapato do governo do general. A mulher de Carter, Rosely, veio ao Brasil tomar satisfações em nome do marido. Eu era repórter no Recife quando ela reuniu-se com missionários americanos vítimas de tortura.

A situação mudou. O Brasil não tem mais presos políticos, só presos comuns torturados ante à indiferença da maior parte dos brasileiros. Biden, se eleito, vai incomodar Bolsonaro e Mourão por outro motivo: o desprezo ao meio ambiente. Biden já prometeu sanções econômicas contra o Brasil caso a Amazônia continue a ser destruída. É também o que prometem países europeus.

Boi-bombeiro, como sugeriu a ministra Tereza Cristina, da Agricultura, não é solução para baixar o fogo no Pantanal, nem na Amazônia. Se fosse, a expansão da pecuária nas duas regiões teria diminuído os focos de incêndios. O Brasil não está ok, como garantiu Mourão ao entrevistador da televisão alemã. Entrevista que foi um primor para quem quiser saber como se faz uma.

O que Mourão disse sobre Ustra foi de envergonhar e de dar nojo aos que ainda são capazes de sentir as duas coisas. “Ele foi meu comandante no final dos anos 70, e foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos dos seus subordinados”, testemunhou o general. Jamais esteve em questão se Ustra comportou-se bem ou mal com seus subordinados.

É de supor que militar não tortura nem executa militar, a não ser em guerras. No caso de Ustra, a questão sempre foi o uso da tortura que ele fez pessoalmente contra presos políticos. E que avalizou. Ustra foi um torturador brutal, que se valeu de todos os meios para arrancar confissões ou simplesmente humilhar os prisioneiros aos seus cuidados. Não havia limites para ele.

Certa vez, nos porões do quartel-general do Exército, em São Paulo, ele suspendeu o suplício dos presos na antevéspera do Natal. Autorizou-os a tomar banho, cortar o cabelo, e deu-lhes roupas limpas. O dia 24 de dezembro foi de descanso para os presos e seus algozes. Perto da meia-noite, eles foram levados para um salão onde seria servida uma ceia de Natal.

Puderam comer peru, arroz, farofa com passas e beber refrigerantes. De repente, Ustra irrompeu no salão e foi de mesa em mesa desejar feliz Natal. No dia seguinte, a tortura recomeçou. Essa história me foi contada por uma mulher que participou da ceia. Ustra, o herói de Bolsonaro e o homem honrado de Mourão.


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