29/03/2024 - Edição 540

Poder

Senadores dispensam para o STF qualidades que exigiriam de uma doméstica

Publicado em 16/10/2020 12:00 -

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"A verdade vos libertará", diz o Evangelho de João no versículo preferido de Jair Bolsonaro. Tomado pelo currículo, Kassio Marques, o escolhido do presidente da República para ocupar uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal é super-qualificado. Possui formação acadêmica superior e títulos obtidos em universidades europeias. O único problema é que o candidato mente um pouco.

Os títulos do doutor não ficam em pé. E sua dissertação de mestrado inclui a cópia de generosos trechos de texto escrito por um amigo. Aproveitaram-se até os erros de português. Mesmo conhecendo a verdade, Bolsonaro avaliou que não seria o caso de se libertar da indicação. E os senadores, que têm a atribuição constitucional de aprovar o nome, acorrentam-se gostosamente ao candidato.

Relator do processo de preenchimento da vaga suprema, o senador amazonense Eduardo Braga, do MDB, apresentou seu parecer. Nele, anotou que as inconsistências curriculares do candidato pesariam "muito pouco no exame dos requisitos constitucionais" exigidos para o emprego vitalício de ministro da Suprema Corte.

O senador escreveu: "Mirar abstratamente o curriculum do indicado significa retirar a dimensão humana dos conhecimentos que ele adquiriu, das reflexões que produziu e da prudência que exercitou ao longo de sua trajetória."

Mais do que um simples relator, Eduardo Braga é matéria-prima para o futuro ministro. Corre no Supremo inquérito em que o senador é acusado de receber ilegalmente R$ 6 milhões da JBS. É nesse ambiente que se forma no Senado uma maioria suprapartidária a favor da aprovação do indicado de Bolsonaro. Até anti-bolsonaristas do PT e do PDT se equipam para dizer sim.

Uma empregada doméstica que se candidatasse a uma vaga na casa dos senadores com alguma referência falsa decerto seria refugada. Mas para o emprego de ministro do Supremo, a verdade vale menos do que a conveniência. Bolsonaro conseguiu piorar o Supremo.

Fux e Bolsonaro

Um mês após assumir o comando do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux já dá sinais de que terá uma relação bem menos amistosa com o Planalto durante seu mandato do que teve seu antecessor, Dias Toffoli. Antes de ele tomar posse como presidente da corte, as apostas entre interlocutores eram de que Fux manteria postura “propensa ao diálogo”, mas não teria o mesmo perfil de seu antecessor ― muitas vezes considerado até pelos pares “excessivamente próximo” do presidente Jair Bolsonaro.

Fux até esteve com Bolsonaro no fim de agosto para entregar-lhe o convite da sua posse, mas parou por aí. Como reforçou na própria posse, o novo presidente do Supremo pretende manter uma relação institucional e, nos bastidores, confirma não ter interesse em participar de eventos sociais e de “confraternização” com o presidente.

O distanciamento foi evidenciado, por exemplo, na indicação do juiz federal Kassio Nunes para assumir a vaga que será deixada nesta semana pelo ministro Celso de Mello, que adiantou sua aposentadoria compulsória (ele faz 75 anos em novembro). Fux não participou das negociações, não foi informado previamente e tampouco foi consultado pelo presidente para concretizar o nome do provável novo membro da Corte. 

A prioridade nas conversas coube a Gilmar Mendes, relator de um caso crucial para a família Bolsonaro na Suprema Corte ― a ação que quer garantir foro especial ao senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), suspeito de participação em esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). 

Toffoli também participou de jantar com Nunes, Bolsonaro e Gilmar, e, no último dia 3, recebeu o recém-indicado em casa para assistir a um jogo de futebol, com a presença, inclusive, do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Neste jantar, Bolsonaro teria reclamado que o próprio Fux não dava espaço para que ele se aproximasse para tratar, por exemplo, de uma indicação ao STF.

Nesta semana, Fux também submeteu ao plenário um recurso da Advocacia-Geral da União (AGU) contra a decisão do decano Celso de Mello de que o presidente deponha pessoalmente no inquérito sobre sua suposta interferência na Polícia Federal (PF). Antes de deixar oficialmente o STF, Mello sustentou seu posicionamento contrário ao depoimento por escrito e a sessão foi suspensa. Ainda não há previsão para a retomada.

O caso é um dos cruciais para o presidente, bem como o que envolve Flávio, e pressiona o Planalto a emplacar rapidamente a posse de Nunes para tentar garantir que não haja troca de relatoria – e que o indicado do presidente passe a tocar o processo. Nada garante, contudo, que Fux não remeta os autos a outro ministro.

Existe precedente, aliás, para isso: em 2017, a então presidente Carmén Lúcia redistribuiu a Edson Fachin a relatoria da operação Lava Jato após a morte do ministro Teori Zavascki. Na época, ele foi substituído por Alexandre de Moraes, indicado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), a quem caberia cuidar dos processos em questão.

Para ser de fato nomeado, contudo, Nunes ainda precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo plenário do Senado.

Diferenças sobre a Lava Jato

Enquanto Bolsonaro dá declarações de que “acabou com a Lava Jato”, Fux adotou uma medida na última quarta-feira (7) que, na prática, deve favorecer a operação: mudando determinação de 2014, pautou o envio ao plenário de todas as ações penais tramitando na Corte e obteve o apoio de todos os 11 ministros. Com isso, os processos referentes à força-tarefa saíram da Segunda Turma. 

Naquele colegiado, formado por cinco ministros, a operação vinha sofrendo derrotas. A mais recente delas foi em agosto, quando a Segunda Turma retirou a delação do ex-ministro Antonio Palocci de um processo contra Lula. Incluído pelo ex-juiz Sergio Moro na ação penal às vésperas da eleição de 2018, sem sigilo, o depoimento causou polêmica e, inclusive, motivou críticas públicas de Gilmar e Ricardo Lewandowski durante a votação no STF.

Apesar da mudança de procedimento regimental ter sido apontada como uma vitória para a Lava Jato, a operação também já sofreu derrotas substanciais em plenário: a revisão da prisão em segunda instância, por exemplo, em 2019, e a decisão de que réus delatados têm de ser ouvidos por último no processo. 

De qualquer maneira, ao sair das turmas, as ações penais passam a ser pautadas por decisão de Fux, que, na condição de presidente, decide o que vai ou não a julgamento. Esta, aliás, é outra das apostas anteriores à posse que, até agora, vêm se confirmando: a tendência de que o novo presidente leve decisões polêmicas ao plenário, especialmente as que envolverem supostos excessos nos métodos dos investigadores.

Também vale lembrar que, embora Celso fosse um dos membros da Segunda Turma e por isso, em tese, daria lugar a Nunes, os ministros mais antigos podem pedir para mudar de turmas e, com isso, havia uma expectativa de que Toffoli pedisse para sair da Primeira e reforçar o grupo crítico à operação. Na prática, a mudança regimental impede que essa manobra enfraqueça algumas das pautas lavajatistas.

Há ainda a expectativa quanto ao rumo da atuação do próprio Nunes em plenário, e as apostas majoritárias são de que ele se una a Gilmar, Lewandowski e Toffoli na ala crítica à operação. 

A postura “lavajatista” de Fux vem, em parte, da defesa pública que ele sempre fez para que a Corte saiba “ouvir a sociedade” na hora de decidir e pautar processos. Ele já disse em mais de uma ocasião que é preciso que os ministros levem em conta o “sentimento constitucional do povo”. A última pesquisa Datafolha a medir o apoio popular à Lava Jato, divulgada em dezembro do ano passado, apontou que 81% dos entrevistados defendiam a manutenção da operação.

Sem sinalizações a Bolsonaro, Fux, que também acumula a função de presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), escolheu como seu primeiro ato na função, revogar resolução que orientava a adoção de penas alternativas a presos que integram o grupo de risco do novo coronavírus. 

A resolução foi fundamental para que o ex-assessor de Flávio e amigo da família Bolsonaro, Fabrício Queiroz, conseguisse se manter em prisão domiciliar no caso das rachadinhas. Ele foi beneficiado por decisão do ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha ― em um movimento interpretado, nos bastidores, como uma tentativa de afago ao presidente justamente para conseguir uma vaga no Supremo.


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