20/04/2024 - Edição 540

Poder

Duas das 4 organizações da sociedade civil deixaram Conama por ter virado ‘faz de conta’

Publicado em 09/10/2020 12:00 -

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A lista de presença da última reunião do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), no dia 28 de setembro, tem apenas duas ausências registradas: a da Associação Rare do Brasil e da Comissão Ilha Ativa (CIA). Mas apesar de não listar as ocorrências como faltas justificadas, o Conama e o Ministério do Meio Ambiente (MMA) já sabiam o motivo pelo qual as duas organizações da sociedade civil não participaram das discussões. Ambas renunciaram às respectivas cadeiras e seguem sem ser substituídas.

A reunião em questão terminou com a revogação de quatro resoluções de proteção ambiental que incluíam a delimitação de áreas de proteção ambiental (APPs) de manguezais e restingas do litoral brasileiro.

Juntas, as duas instituições respondem por 50% da já reduzida participação das entidades da sociedade civil organizada no colegiado, cuja função é editar normativas que orientam as políticas públicas e leis a respeito do meio ambiente no país. Restaram, para fazer frente ao governo federal e à Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e à da Indústria (CNI), apenas dois representantes do setor ambientalista: a Associação Novo Encanto e o Instituto de Pesquisa e Responsabilidade Socioambiental Chico Mendes.

Em maio do ano passado, um decreto do presidente Jair Bolsonaro mudou a composição e a correlação de forças do conselho. O texto diminuiu de 96 para 23 o número de membros do Conama, aumentando representantes do governo federal e reduzindo a participação da sociedade civil – que passaram de 23 assentos para 4. 

O HuffPost Brasil teve acesso aos ofícios das duas instituições que renunciaram aos postos no Conama. A primeira a deixar o colegiado foi a Ilha Ativa, em 5 de agosto, seguida pela Rare que, em 21 de setembro, se recusou a permanecer no seu assento por mais seis meses — por causa da pandemia do novo coronavírus, os mandatos que se encerrariam originalmente em setembro foram estendidos até março de 2021.

Apesar de a renúncia já ter sido formalizada, as duas instituições ainda figuram entre as quatro que compõem o conselho no site do Conama.

À reportagem, representantes das duas entidades justificaram a renúncia. “O Conama virou um faz-de-conta”, criticou Luciano Galeno, presidente da Ilha Ativa. “Honestamente, se a CIA e a Rare estivessem nesta reunião, o resultado seria o mesmo”, completa Monique Galvão, vice-presidente da Rare.

Mais que esvaziado, o Conama, na avaliação dos dois, tem se tornado uma instituição que não cumpre mais seu papel de fórum de debate dos variados interesses da sociedade em questões que envolvem o meio ambiente. Eles citam não só a questão da representatividade, mas ainda o esvaziamento das atividades e o atropelo das discussões.

Monique explica, por exemplo, que entre outubro do ano passado e março deste ano, não houve outras reuniões deliberativas do conselho. Com o início da pandemia, as 4 ONGs pressionaram o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para que o regulamento permitisse a realização de reuniões remotas. Desde então, a polêmica reunião do dia 28 foi a segunda a ser realizada.

Nesta última, conta ela, a Rare, apesar de já ter comunicado que não se manteria no conselho, tentou articular com outras entidades para pedir vistas da resolução, mas a solicitação foi colocada em votação e negada. “Não houve sequer tempo para avaliar o que estava em discussão, nos avisaram na sexta (25) que elas seriam votadas, não deu tempo nem para quem é conselheiro. São várias leis envolvidas, são discussões complexas”, disse.

“Aceitamos compor o conselho, apesar da pressão, com a ingenuidade de que poderíamos fazer a diferença. Entendemos que a diminuição da quantidade de membros do conselho buscava diminuir a ineficiência do processo, mas o Conama deixou de ser um espaço técnico para ser um espaço político”, afirmou.

No ano passado, elas foram escolhidas por sorteio, entre todas as que têm o Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas (CNEA). “Nós unimos [as quatro entidades homologadas] para tentar ter voz ativa e expor a desestruturação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisama)”, explicou Luciano.

“O governo tem maioria dentro do conselho e todos os absurdos que eles quiserem, o Salles vai conseguir. A gente não tem mais para onde correr, se não for a Justiça, nada vai ser contido”, acrescentou. “Em alguns casos se faz a reunião só porque está no regimento, porque, se não estivesse, o Salles faria tudo a portas fechadas. Ele não quer dialogar, o governo não está nem aí.”

Representantes das outras duas entidades cobraram uma discussão mais aprofundada das questões em pauta. 

“Tínhamos que ter tido mais tempo para discutir isso não só em câmaras técnicas, como em consultas públicas; Bioma não é coisa que se recupera, é preciosidade”, declarou Guilherme Neto, do Instituto Chico Mendes. “Tem que haver discussão.” 

Para Carcius Azevedo, da Novo Encanto, os trâmites estão sendo cumpridos e é “necessário que o Conama imprima um ritmo para que as resoluções aconteçam”. “Mas a gente entende que você esperar um ou dois meses para tomar uma decisão segura é importante, pela complexidade dos temas.”

“Precisamos é ter bom senso, não dá pra discutir uma pauta e não ter entendimento, mas também não dá pra ser na velocidade que eles colocaram”, criticou.

Normas revogadas

No total, foram quatro resoluções revogadas. Elas tratavam da garantia de preservação de áreas de restinga e manguezais, bem como no entorno de reservatórios d’água; do licenciamento ambiental de projetos de irrigação; e da queima de resíduos de agrotóxicos e de lixo tóxico em fornos de produção de cimento.

A resolução 302/2002, dos reservatórios, determinava que pelo menos 30 metros a partir deles deveriam ser definidas como Áreas de Preservação Permanente (APPs), que não podem ser exploradas economicamente e pelo mercado imobiliário, por exemplo.

A 3030, do mesmo ano, também definia como APPs toda a extensão de manguezais e das faixas de restinga do litoral brasileiro. A 284/2001 criava parâmetros para o licenciamento, priorizando equipamentos e métodos de irrigação mais eficientes. Por fim, a 264/1999 proibia a queima de tóxicos em fornos.

No último dia 29, a Justiça Federal no Rio de Janeiro suspendeu liminarmente a reunião em que as resoluções foram derrubadas. No último dia 2, contudo, o desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), acatou recurso da União e restabeleceu as decisões.

‘Passando a boiada’

A revogação das resoluções causou polêmica por constituir, na prática, mais um episódio de desregulamentação na esteira da já clássica declaração de Salles durante reunião ministerial em 22 de abril deste ano sobre “passar a boiada”. 

Na ocasião, ele defendeu que o governo federal aproveitasse que as atenções da imprensa estavam voltadas para o novo coronavírus e editasse uma série de normas infralegais (decretos, resoluções, portarias etc) para “mudar todo o regramento e simplificar normas”. Ele trata a declaração como uma defesa pela “desburocratização” do governo para “acabar com “emaranhado de regras irracionais” que, na sua opinião “atrapalha investimentos, a geração de empregos e o desenvolvimento sustentável no Brasil”.

Ex-diretor jurídico da Sociedade Rural Brasileira, contudo, Salles não é exatamente o mais ferrenho defensor do meio ambiente a comandar a pasta que cuida do tema. A atuação dele, aliás, já motivou uma nota conjunta de oito ex-ministros do meio ambiente, ainda em 2019, denunciando um “desmonte da governança socioambiental”.

Foi justamente com uma regra infraconstitucional, um decreto, o 9.760/2019, que criou o “Núcleo de Conciliação Ambiental”, uma entidade que tem a palavra final quanto a multas ambientais ― podendo alterar ou mesmo anular sanções aplicadas por fiscais. Segundo os termos da norma assinada por Bolsonaro, a realização de audiências de conciliação será “estimulada”, “com vistas a encerrar os processos administrativos federais relativos à apuração de infrações administrativas por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.”

Mas as críticas a Salles têm outros motivos: só em 2019 ele já anistiou proprietários de terra que desmataram Áreas de Proteção Permanente (APPs) da Mata Atlântica até julho de 2008, extinguiu coordenações regionais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), tentou aprovar medida provisória que legalizava a apropriação de terras públicas ocupadas há menos de cinco anos e que caducou na Câmara após pressão e ganhar o apelido de “MP da grilagem”. 

Ele também é frequentemente atacado pelos constantes recordes do Brasil em queimadas e desmatamentos de diversos biomas do país — mas atribui as críticas e a pressão internacional à “visão ideológica” e pressão de entidades ambientalistas. 

Túnel do tempo

O Brasil pode ter 'voltado no tempo' em quase 500 anos nos esforços para a conservação dos manguezais. A revogação, por articulação do governo de Jair Bolsonaro, das três resoluções sobre temas ambientais – uma delas, a de nº 303, de 2002, tratava da proteção das áreas de mangues (além de restingas e dunas) – coloca em risco o bioma alagado que é a área protegida mais antiga no Brasil: a primeira norma protegendo os manguezais é um Regimento editado pela Coroa portuguesa em 4 de fevereiro de 1577, há 443 anos e oito meses.

E esta não foi a única norma criada pela antiga metrópole portuguesa para defender as áreas inundadas. Os mangues também foram protegidos por um Decreto de 1664 e por uma Carta Régia de 1678.

As informações foram levantadas pela bióloga Norma Crud Maciel, morta em 2018, e são citadas no Atlas dos Manguezais do Brasil, editado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Naquele momento, o objetivo dos monarcas portugueses não era exatamente manter o equilíbrio ambiental, conceito inexistente à época. A ideia era preservar o bioma para garantir o acesso à casca das árvores do mangue, da qual é extraído tanino. A substância é usada no tratamento do couro, e tinha importância econômica para a então colônia.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil são unânimes: o fim da resolução do Conama vai impactar as áreas de mangue. Mesmo que estas estejam formalmente protegidas pelo Código Florestal, os detalhes de como se dava esta proteção eram dados pela resolução.

Agora, esta regulamentação não existe mais.

"A maior parte da carcinicultura (criação de camarões), no Brasil, ocorre na área de apicuns. O apicum é uma área que existe dentro do ecossistema de manguezal, é uma área intersalina (com água doce e salgada). Não é ocupada por floresta. Então, eles (criadores) pegam essa área que é plana, e fazem ali a escavação dos tanques. E como tem um acesso natural da maré, que sobe e desce, isso acaba inundando os tanques, o que facilita a parte hidráulica", explica o geólogo e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Pedro Walfir, que é especialista no bioma.

"A consequência disso (revogação da resolução) é que você pode ter um aumento do uso dessas áreas para a aquicultura. E com isso você acaba ameaçando esse ecossistema dos manguezais como um todo. Que envolve tanto as florestas, os arbustos do mangue, quanto o apicum. Que é um ecossistema que no Brasil está bem conservado até o momento, graças a todos os esforços que foram feitos", diz Walfir.

O professor da UFPA explica que, pela lei atual, até 35% das áreas de apicuns fora da Amazônia podem ser ocupadas pela aquicultura — embora, na realidade, ninguém saiba qual é a área efetivamente ocupada por esta atividade.

"Com certeza isso (a expansão da atividade) tem um risco enorme para a biodiversidade, né? Porque, para chegar ao apicum, você precisa passar pelo manguezal. Então, isso pode acabar causando um desmatamento para esse ecossistema", diz ele.

Na semana passada, o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso, disse que um dos motivos do "revogaço" de resoluções do Conama era atender a indústria da carcinicultura.

Em 2020, o Brasil produziu 90 mil toneladas de camarão cultivado. Os maiores produtores são os Estados do Ceará (35 mil toneladas) e do Rio Grande do Norte (26 mil). Os dados são da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC). Em 2020, a entidade projeta um total de 120 mil toneladas, e a meta é chegar a 200 mil toneladas em 2022.

Mangue é bem mais que só 'berçário'

É lugar-comum destacar a função do manguezal como "berçário" para diferentes espécies de peixes e animais.

Mas, na verdade, o bioma cumpre uma série de tarefas bem mais ampla — quando está próximo das cidades, o mangue ajuda até mesmo a "filtrar" os resíduos que são jogados nos rios, antes que estes alcancem o mar.

"De fato, se a gente perguntar para as pessoas qual é o papel principal do mangue, logo surge a história do berçário, né? Mas o berçário, como local de manutenção da biodiversidade, é apenas um dos serviços que presta o manguezal para a sociedade", diz à BBC News Brasil o biólogo Clemente Coelho, professor da Universidade de Pernambuco (UPE). "A lista de serviços prestados (pelo mangue) é bem grande", frisa.

O fato do mangue cumprir outras funções não anula sua importância enquanto berçário, claro. Além de fornecer um ambiente protegido para os filhotes, o manguezal também é fonte de alimento para esses animais, explica Coelho.

"Então, estima-se que em torno de 70% das espécies marinhas, inclusive aquelas de importância econômica, utilizam em pelo menos uma fase da vida esse berçário", diz.

"Esse é um serviço (prestado pelo mangue). É aquele que a sociedade mais conhece, e que acaba tendo importância econômica. Mas há outros serviços".

"O mangue (…) serve também como filtro biológico. Ou seja, muitos dos efluentes, principalmente efluentes domésticos que são lançados (nos rios), a floresta do mangue tem a capacidade de absorver parte da matéria orgânica, dos efluentes domésticos. E incorporar na biomassa. Então quando a gente vê florestas (de mangue) enormes nas cidades, na verdade eles estão funcionando como bombas de sucção dessa matéria orgânica", diz Coelho, cuja pesquisa gira em torno do bioma.

"O manguezal também é o ecossistema, dentre todos, que mais absorve e sequestra carbono da atmosfera. É uma floresta que absorve o carbono por meio da fotossíntese e mete todo esse carbono no solo. Então a taxa (de sequestro de carbono) é muito alta, inclusive se comparado com a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica", diz ele.

Segundo Coelho, a resolução nº 303 de 2002, revogada na reunião do Conama, era "extremamente importante" para a preservação dos manguezais e restingas.

"Apesar do discurso do governo federal e do Ricardo Salles, de que o Código Florestal já protege esse ecossistema, isso não é verdade. O Código de 2012 realmente estabelece os dois biomas como áreas de preservação permanente. Mas não regulamenta, não dá as regras dessa conservação. Não restringe o espaço, não mostra como isso se dá na prática. É por isso que a resolução nº 303 era extremamente importante", diz o especialista.

Orçamento para combate a queimadas em 2021 será menor que nos últimos anos

Uma nota técnica elaborada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) aponta que as três principais fontes de recursos do orçamento para combate a queimadas terão menos verba em 2021 que tiveram nos últimos anos. Na comparação imediata entre 2020 e 2021, percebe-se um leve aumento de R$ 2 milhões. Entretanto, na comparação com anos anteriores a queda é significativa. No ano que vem, o governo terá R$ 44 milhões a menos para combater incêndios do que teve em 2017.

As fontes apontadas no estudo são Fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais (ICMBio); Monitoramento ambiental, prevenção e controle de incêndios florestais (Ibama); e Controle e fiscalização ambiental (Ibama) .

Além do Inesc, outras 18 instituições ligadas à defesa do meio ambiente assinam o documento.

A análise vem a público no mesmo momento em que o ICMBio informa só restarem 5% do orçamento da instituição para combate a incêndios.

Os dados foram apresentados pelo próprio instituto, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, ao Supremo Tribunal Federal (STF), que analisa ação do governo contra as queimadas.


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