26/04/2024 - Edição 540

Poder

PF e PGR ‘sofrem ingerência política como há muito não se via’, diz Transparência Internacional

Publicado em 09/10/2020 12:00 -

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Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro protagonizou cenas que vão no sentido oposto à sua declaração de que não há mais corrupção no governo federal, e que por isso ele acabou com a Operação Lava Jato. Foram ao menos três atos: um jantar informal na casa do ministro Dias Toffoli, do STF (Supremo Tribunal Federal), com a presença do seu escolhido para assumir uma cadeira na corte e o presidente do Senado, que precisará confirmar a nomeação; a indicação de um amigo para o TCU (Tribunal de Contas da União); e a própria afirmação de que colocou fim em uma investigação que segue em andamento

Para a Transparência Internacional, no entanto, mais grave do que ter enterrado a Lava Jato é acabar com as condições que permitiram que ela surgisse no Brasil. “Ou seja, atacar a autonomia de órgãos como a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal, que o país levou décadas para fortalecer e que agora sofrem ingerência política como há muito não se via”, afirmou o diretor-executivo da entidade no Brasil, Bruno Brandão, em entrevista ao HuffPost. 

“Todo esse avanço que a gente viu, de grandes operações contra corrupção, casos como Mensalão, Lava Jato, Greenfield e ramificações da Lava Jato, não surgiram do vácuo, surgiram de um processo importantíssimo de amadurecimento institucional do país e também de progresso legislativo, mas principalmente do fortalecimento da capacidade técnica e autonomia das instituições de controle. E esse pilar fundamental começa a ruir a partir desse recrudescimento da influência indevida do poder político sobre os órgãos de controle”, explica. 

Entre os acontecimentos de ingerência indevida que foram minando essa autonomia dos órgãos estão a interferência no Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que levou à exoneração de Roberto Leonel da presidência. Na ocasião, Leonel fez uma crítica à decisão do então presidente do STF, ministro Dias Toffoli, de suspender investigações que se apoiem em dados obtidos pelo conselho.

“Nesse cenário, a efetividade do sistema brasileiro de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, que tanto evoluiu nos últimos anos, ficaria sensivelmente prejudicada”, alertou Leonel à época.  

Neste governo, o Coaf passou a ocupar lugar de destaque entre as preocupações do governo. Com isso, passou por transformações, como a mudança de nome, passou a se chamar Unidade de Inteligência Financeira, e também mudou de endereço, foi para o Ministério da Justiça, depois para o da Economia e agora está no Banco Central. Vale ressaltar que foram com os dados do Coaf que foi identificada a movimentação atípica nas contas de Fabrício Queiroz e que se deu início às investigações que envolvem o filho do presidente, senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

“Tivemos ainda interferência na Receita Federal, com exoneração de altos cargos, tanto por pressão do poder Executivo quanto do Judiciário. Houve também na Polícia Federal, que foi mais expressivo e escandaloso e levou à demissão do ministro denunciando ingerência gravíssima no Rio de Janeiro, onde estão os interesses da família Bolsonaro”, acrescenta Bruno Brandão. 

Mais recente, ele cita a indicação de Kassio Nunes Marques para o STF, pelo processo que envolve questionamentos em respeito à ligação do desembargador com o centrão, e a indicação de Jorge Oliveira, ministro da Secretaria Geral, para o TCU (Tribunal de Contas da União). “Alguém com 7 anos de experiência em advocacia e zero em contabilidade pública pode ser nomeado para ser ministro da corte mais importante de controle das contas públicas no País. É um desrespeito sistêmico sobre a independência das instituições e, em última medida, um descaso absoluto no combate à corrupção”, completa. 

O episódio que é tido como principal ataque a essa autonomia das instituições também foi uma nomeação, a de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República. Aras estava fora da lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) após eleição interna no Ministério Público.

“Foi o rompimento de uma tradição importantíssima do País que foi respeitada pelo governo Lula, Dilma e, em parte, rompida pelo Temer ao não nomear o primeiro lugar. Bolsonaro quebra uma tradição que foi das mais importantes para o avanço da independência do órgão mais importante do combate à corrupção. Esse foi um dos maiores – se não o maior – retrocesso até agora do governo Bolsonaro no que diz respeito à luta anticorrupção. Isso foi observado, foi criticado, colocou o Brasil em situação muito delicada”, diz Brandão. 

Imagem internacional 

Essa sequência pode ter impacto na imagem internacional do País e até impedir que o Brasil entre no seleto grupo de países que integram a OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), alerta Brandão. Na próxima semana, integrantes do Grupo de Trabalho Antissuborno, da organização, vão fazer uma espécie de vistoria sobre as ações que têm sido tomadas no País.

No fim do ano passado, integrantes do grupo já haviam conclamando o país a “cessar imediatamente as ameaças à independência e à capacidade das autoridades públicas para combater a corrupção” e a expectativa, de acordo com a Transparência Internacional, é que o Brasil seja novamente repreendido.  

“Esse tipo de posicionamento do governo afeta gravemente a inserção internacional do Brasil. A OCDE é o clube dos ricos e no clube dos ricos você tem que entrar para competir com condições justas, sem trapaças, e isso é extremamente prejudicial para a imagem do país, a condição política e também para as empresas, porque gera embaraços inclusive legais quando o país não está em conformidade com esses padrões internacionais que são compromissos assinados pelo Brasil.”

Embora não integre o grupo, o Brasil é signatário da Convenção Antissuborno da organização. 

Governabilidade X Influência indevida

Bolsonaro tem se defendido das acusações de tráfico de influência com o argumento de que precisa conversar com todos os Poderes para governar. O que ele tem feito, no entanto, é diferente de viabilizar a governabilidade. 

″É comum que exista um relacionamento político e negociação permanente entre Executivo e Legislativo, afinal você precisa negociar política públicas, agendas, processos legislativos, formação de governo. Isso é muito distinto de um relacionamento próximo, inclusive, com laços pessoais entre os Poderes e órgãos de controle. Essa influência indevida do poder Executivo junto aos órgãos de controle, poder Judiciário, Ministério Público, Tribunal de Contas, isso é algo considerado muito grave perante todas as principais convenções internacionais de combate à corrupção e crime organizado”, pontua Brandão. 

Para ele, a causa anticorrupção foi capturada por um projeto autoritário populista. “E sempre que é capturado por um projeto autoritário populista, a primeira coisa que acontece é destruir justamente os órgãos de controle e, com isso, pilares da própria democracia.”

Análise

"Eu não quero acabar com a Lava Jato. Eu acabei com a Lava Jato, porque não tem mais corrupção no governo", disse Jair Bolsonaro.

A declaração ocorre em meio aos frondosos laranjais do Ministério do Turismo, passando pela tempestade de emendas parlamentares que ajudou na aprovação da Reforma da Previdência até as caudalosas e inexplicadas "rachadinhas" envolvendo a primeira-família.

No contexto de pós-verdade, abraçada como instrumento de governo, os fatos objetivos são cada vez menos importantes do que os apelos às emoções. Principalmente para aqueles 12% a 16% de seguidores fanáticos do presidente. Foi assim durante toda pandemia de coronavírus, quando Bolsonaro criou uma realidade paralela e nela colocou seu povo escolhido. Seu naco mais radical acha que há uma conspiração chinesa junto com a elite global para implementar chips através de uma vacina falsa e controlar as mentes das pessoas pelas antenas de 5G.

Esse mesmo pessoal deve acreditar quando o governo diz que acabou a corrupção… no governo.

Formalmente, não é o presidente quem pode decretar o fim da operação Lava Jato, mas a Procuradoria-Geral da República. Vale lembrar, contudo, que Augusto Aras, chefe da instituição, foi indicado por Jair para o cargo fora da lista tríplice dos mais votados pela categoria. E tem atuado para o encerramento da operação como a conhecemos.

Em um país polarizado em que reina o maniqueísmo tosco, criticar o atropelamento de direitos constitucionais por parte da Lava Jato é ser visto como apoiador da corrupção. Ao mesmo tempo, criticar a maneira pela qual o combate à corrupção está sendo atropelado por alguns atores que são alvo de investigação é ser visto como apoiador dos comportamentos e métodos ilegais adotados pela força tarefa. O que é péssimo para o país.

Dito tudo isso, ressalte-se que a declaração de hoje do presidente da República ocorre em meio a um processo muito maior de emparedamento de instituições.

Bolsonaro interferiu na Polícia Federal, no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), na Receita Federal, no Ibama, no ICMBio, na Funai e na Procuradoria-Geral da República, como já dito acima. Desde que assumiu o cargo, vem atuando para engolir instituições de monitoramento e controle em nome de seu projeto de poder e da proteção dos interesses de sua família e de seus amigos. Deixou claro isso na famosa reunião ministerial de 22 de abril, cujo vídeo veio a público.

Diz que acabou com a corrupção, mas tenta nublar qualquer investigação que analise evidências de práticas irregulares por parte da primeira-família, como, por exemplo, os desvios de recursos públicos do gabinete do então deputado estadual e, hoje, senador Flávio Bolsonaro. Diz que acabou com a corrupção, mas ameaça de meter a porrada na boca de um jornalista que pergunta a razão de Queiroz ter depositado R$ 89 mil na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O projeto de país do clã é um governo populista autoritário apoiado por setores da extrema-direita e parte do empresariado. Nesse plano, as instituições que não podem ser domesticadas, são consideradas inimigas. Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal foram alvos de pedidos de fechamento por parte de seguidores fanáticos do presidente. Ele mesmo chegou ao despautério de discursar em um ato que exigia um novo Ato Institucional número 5 e um golpe militar no dia 19 de abril.

Após ações contra ele e seus aliados avançarem no STF, foi aconselhado a parar de esticar a corda. Abraçou o fisiológico centrão, de onde originalmente saiu, e tornou-se BFF de alguns ministros do Supremo, aceitando recomendações para baixar a fervura. Com isso, a menos que surja algo novo, o impeachment ficou tão complicado, hoje, quanto comprovar vida em Vênus.

Como já disse aqui, há um componente revolucionário no bolsonarismo, que vai derrubando barreiras e avançando aos poucos sobre as instituições. Bolsonaro percebeu que pode fazer muita coisa, pois está defendendo os interesses estratégicos de uma parte da elite – que aceita o diabo com covid-19, mas não a esquerda – e de setores políticos que, sob qualquer governo, pilharam e mandaram no Brasil. Precisa só equilibrar os interesses, ceder um pouco e afastar os lunáticos. Ao menos, por enquanto.

Parte da sociedade gosta do autoengano de que ele está sendo totalmente contido pelos freios e contrapesos da República porque uma suposta pauta reformista avança aos trancos. Dessa forma, rifam barato o país.

Vamos vendo, assim, instituições sendo dobradas às necessidades de uma família e seus aliados. E muita gente será cúmplice disso.

Planalto crê em aval do STF a depoimento escrito

Auxiliares de Jair Bolsonaro farejaram um aroma de vitória na postergação do veredicto do Supremo Tribunal Federal sobre o pedido do presidente para depor por escrito no inquérito que apura a suspeita de intervenção política na Polícia Federal. Apenas o relator Celso de Mello votou na sessão desta quinta-feira, a última antes de sua aposentadoria.

Avalia-se no Planalto que os demais votos não foram colhidos para evitar a indelicadeza de expor a divergência em relação à posição do decano no dia da sua despedida. Nessa versão, haveria em plenário maioria de votos a favor de estender a Bolsonaro a mesma prerrogativa concedida a Michel Temer. Ele foi autorizado pelos ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin a prestar depoimento por escrito em 2017, quando era investigado por corrupção.

Celso de Mello manteve-se irredutível ao analisar o recurso da Advocacia-Geral da União. "Ninguém, nem mesmo o chefe do Poder Executivo da União, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República", disse o ministro. "Nunca é demasiado reafirmar que a ideia de República traduz um valor essencial, exprime um dogma fundamental, o do primado da igualdade de todos perante as leis do estado."

Celso de Mello citou o artigo 221 do Código de Processo Penal, que prevê, no seu parágrafo primeiro, que os presidentes dos três Poderes podem optar pelas inquirições por escrito nos casos em que forem testemunhas ou vítimas. Bolsonaro é investigado.

"A previsão do Código de Processo Penal em que a pessoa possa depor por escrito, no caso de presidentes, é quando a pessoa comparece na condição de testemunha. Quando a pessoa está sendo investigada, a natureza jurídica é outra, com o depoimento de forma presencial", declarou Celso de Mello.

Para o ministro o Código de Processo Penal "não confere ao […] senhor presidente da República, o privilégio de eleger ele próprio a forma pela qual ele quer e pretende que seja efetivado o ato de sua inquirição policial, em completa subversão da finalidade e das características de tal ato." Estima-se no Planalto que pelo menos seis ministros divergirão de Celso de Mello. A ver.


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