29/03/2024 - Edição 540

Especial

Fé e política

Publicado em 05/10/2020 12:00 -

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O que ameaça o Estado laico, e deve ser questionado e enfrentado, é que um grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, crentes (com toda pluralidade que vivenciam) e não-crentes. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que são colocados em risco. Da mesma forma, o Estado laico está em perigo quando princípios religiosos são instrumentalizados por líderes e grupos políticos com vistas à busca de votos ou de apoio a implementação de necropolíticas.

Magali Cunha

Mais de 8,7 mil candidatos nestas eleições adotaram títulos religiosos nos nomes que serão apresentados nas urnas. São esses nomes que, na maioria das vezes, eles utilizam para fazer campanha e conquistar votos. Os dados fazem parte de um levantamento realizado com base nos registros de candidaturas apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e que ainda serão julgados nas próximas semanas.

Entre os títulos, o mais utilizado é o de pastor/pastora, com mais de 51% dos casos (4.426), seguido por irmão/irmã, com 41% (3.561). Como concentram a maior parte das candidaturas, os postulantes ao cargo de vereador apresentam também o maior número de títulos religiosos. Na sequência, aparecem os candidatos a vice-prefeito e, por último, os candidatos a prefeito.

Para realizar o levantamento, consideramos os títulos que aparecem como o primeiro nome de urna dos candidatos. Por conta disso, não consideramos situações em que os candidatos usam em outra parte do nome da urna alguma referência religiosa. Após o primeiro levantamento na base, foi feita uma revisão para evitar situações que não remetiam a títulos religiosos.

Por lei, há poucas restrições para o uso de nomes nas urnas. De acordo com o TSE, o nome pode ter no máximo 30 caracteres. O candidato pode usar nome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou o nome pelo qual é mais conhecido. Mas é proibido usar nomes que gerem dúvidas sobre a identidade do candidato, que atente contra o pudor ou “seja ridículo ou irreverente”. Outra proibição, segundo o TSE, é o uso de expressões ou siglas de órgãos da administração pública de qualquer nível (federal, estadual ou municipal).

Na avaliação do professor e cientista político da Universidade Federal de Goias (UFG) Pedro Mundim, o uso de títulos ou expressões religiosas nos nomes dos candidatos segue uma tendência de aumento da participação de lideranças religiosas ou de políticos ligados a igrejas nos processos eleitorais do Brasil.

“As instituições e seus membros, como é o caso das instituições religiosas, procuram meios de influenciar políticas públicas, leis, decisões de governo. Eles têm uma visão de mundo e querem refletir isso nas políticas. Desde os anos 2000, temos visto um aumento da participação de candidatos vinculados a grupos religiosos ou a igrejas”, explica Mundim.

Segundo o professor da UFG, especialista em comportamento eleitoral, os eleitores guiam suas decisões, muitas vezes, por sistemas de crenças. O uso de termos ou títulos religiosos pelos candidatos busca justamente oferecer um atalho para os eleitores, isto é, uma forma de processar a informação e tomada de decisão baseada na identificação religiosa.

“Em comportamento eleitoral, dizemos que, quando você tem mapeado o sistema de crenças, sejam elas de natureza política, religiosa ou moral de uma pessoa, você consegue razoavelmente prever como ela votará. Se uma pessoa tem alto nível de engajamento com uma crença religiosa, é mais fácil saber como ela votará. Então, se você tem um candidato apoiado por uma igreja ou um candidato que procura se identificar com esta ou aquela igreja ou denominação religiosa, maiores são as chances de ele mobilizar eleitores que se identificam com essa crença. O uso dos títulos religiosos nos nomes das urnas está dentro dessa lógica. Ou seja, de uma busca pelo candidato para que o eleitor o identifique rapidamente”, afirma Mundim.

De acordo com o cientista político Rodrigo Prando, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, usar referências religiosas no nome da urna é uma tentativa de se diferenciar e trazer certa legitimidade ligada à religião.

"[O nome com referência religiosa] chama a atenção porque, de certa maneira, é portador de um discurso que dá legitimidade moral, por conta do valor da religião. Ele tem um elemento que se diferencia dos outros", afirma Prando.

"Da mesma forma que colocar 'major' tem uma força de alguém que vai prezar pela segurança. Na eleição passada, muitos usaram 'professor'. No final das contas, não faz sentido você usar um nome ao qual você não visa se relacionar", concluiu.

Republicanos é o partido com mais candidatos com títulos evangélicos

O Republicanos tornou-se a principal escolha dos postulantes evangélicos que usam algum título ligado à religião nas urnas. São 419. Representam 8% dos registros de candidatos que usam alguma denominação evangélica na Justiça Eleitoral.

O PSC (Partido Social Cristão) é o 2º, com 369 candidatos (7% do total geral). Liderou em 2012 (com 231, mesmo número do Republicanos) e em 2016 (com 405).

Os 2 partidos são historicamente alinhados ao segmento evangélico. O Republicanos tem vários integrantes egressos da Igreja Universal do Reino de Deus. O PSC é comandado pelo pastor Everaldo, recentemente preso no Rio por conta de suspeitas de corrupção no governo fluminense –o que ele nega.

O Republicanos, inclusive, está alinhado à base do governo desde 2006. Foi 1 dos partidos que apoiaram o então presidente Lula, sobretudo na aproximação com os evangélicos.

A sigla conseguiu o Ministério do Esporte a gestão da presidente Dilma Rousseff. Foi o 1° partido a deixar a base aliada do governo no Congresso durante o impeachment da petista.

A legenda voltou à base aliada do governo quando Michel Temer assumiu. Ganhou o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços. A pasta foi comandada por Marcos Pereira (SP), evangélico da Igreja Universal e atual 1º vice-presidente da Câmara.

“Eles sempre foram muito hábeis em estar próximo do poder. Foi assim com Lula, Dilma, Temer e, atualmente, com Bolsonaro. Isso também ajudou no crescimento da sigla”, avaliou Renan William dos Santos, doutorando em sociologia pela USP.

Candidatos que possuem títulos religiosos evangélicos

Embora “bispo” exista nas igrejas evangélicas e católicas, o título foi usado apenas para as denominações evangélicas. É incomum um bispo católico se candidatar, até porque o Código de Direito Canônico, que rege a igreja católica, traz orientações contra a candidatura de membros da igreja. Os bispos são responsáveis por fazer cumprir as regras.

“A igreja católica não permite ter cargo político enquanto clérigo. Apesar de poucos, ainda saem padres candidatos”, declarou Santos.

Candidatos que usam títulos religiosos no nome de urna

Nas eleições anteriores, os candidatos evangélicos tinham a predominância dos nomes nas urnas. Foram 3.929 postulantes desse segmento contra 331 católicos nas eleições de 2016.

Os números de 2016 são maiores que da eleição de 2012. Naquele ano, foram mapeados 3050 candidatos que tinham título evangélico nas urnas contra 319 católicos.

Renan afirma que esses títulos são usados para tentar atrair votos de 1 nicho específico de pessoas. “No entanto, o que está sendo perceptível, com base nas últimas eleições, é a redução do número de pessoas que foram eleitas usando essa estratégia”, disse.

Gerson de Moraes, professor e filósofo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, acredita também que colocar qualquer título na urna tenha o propósito de atrair votos de um determinado público.

O professor analisa que, independente se possuem ou não o título durante a votação, os grupos religiosos na política estão cada vez mais presentes. Como exemplo, cita a bancada evangélica, que representa ao menos 20% dos deputados federais na Câmara.

“Esses grupos acabam sendo muito mais representantes das igrejas que do corpo politico republicano. Não possuem grandes projetos, são mais relacionados a valores, moralizantes”, destacou.

Evangélicos progressistas ensaiam avanço na política

Em setembro, o clã de um dos mais tradicionais templos evangélicos do país, fundado em Belo Horizonte, foi exposto por discursos públicos de intolerância a LGBTs. Primeiro, o pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, afirmou em uma postagem que igreja não é lugar para gays, porque “a prática homossexual é considerada pecado”. Depois, sua irmã mais velha, Ana Paula Valadão, teve um vídeo resgatado nas redes sociais, de 2016, em que aparece pregando que a Aids “mostra que a união sexual entre dois homens causa uma enfermidade que leva à morte”. Diante de reiteradas manifestações homofóbicas proferidas por líderes religiosos, correntes de evangélicos progressistas se mobilizam para defender a igualdade de gênero e se contrapor à mercantilização da fé nas grandes igrejas.

Em manifesto, a Aliança Nacional LGBTI+, movimento que reúne entidades políticas e religiosas, informou que acionou Ana Paula Valadão na Justiça por homofobia, comparando a fala da pastora aos discursos de Adolf Hitler. “Ana Paula atinge toda a coletividade da comunidade LGBTI+ e, principalmente, a dignidade das pessoas que vivem com HIV/AIDS, colocando-as como responsáveis pela proliferação de um vírus e equiparando de maneira vergonhosa, antiquada e criminosa uma expressão legítima de amor e afeto a um ato criminoso como ceifar a vida de um ser humano”, diz a organização.

Coordenador da Aliança em Minas Gerais, o pastor Gregory Rodrigues, 29 anos, observa que a discriminação de gênero é conduta predominante entre a comunidade protestante no Brasil. Por outro lado, ele diz acreditar que há uma crescente resistência por parte de setores progressistas de diferentes correntes da igreja. “Em meio à onda de conservadorismo, esse tipo de pensamento [como o dos irmãos Valadão] tem sido revelado sem constrangimentos. Por fora, vemos um discurso de amor e aceitação. Mas, na primeira oportunidade, os pastores não hesitam em tachar integrantes da comunidade LGBT como seres impuros e pecadores.”

Formado em teologia e história, Gregory descobriu-se gay por volta dos 16 anos. Enfrentou rejeição da família e da igreja que frequentava na época. Depois de levar uma surra do pai, chegou a tentar suicídio, mas acabou acolhido em uma igreja inclusiva de Belo Horizonte. “Fui atacado ao defender a tese de que Deus não faz distinção de pessoas, independentemente de orientação sexual”, conta o pastor, salientando que grupos de fiéis progressistas não são exclusividade dos templos inclusivos. “O medo do inferno é uma forma de manipular pessoas. Dentro das igrejas tradicionais de cunho conservador, também temos gente com pensamento mais aberto. Mas há repressão por parte da alta cúpula a essas ideias. Ou, em alguns lugares, a defesa do que chamamos de inclusão de cabresto”, afirma.

Segundo o religioso progressista, inclusão de cabresto, no que diz respeito à diversidade de gênero, se refere a movimentos que aceitam fieis declarados LGBTs, desde que se proponham a abrir mão da sexualidade e cumprir voto de castidade. A Igreja Batista da Lagoinha, por exemplo, embora negue impor a condição a seus seguidores, mantém o Movimento Cores, destinado ao público LGBT, que, nos cultos, emite orientações sobre como “se transformar” e afastar o “pecado da homossexualidade”. Outras igrejas operam ministérios mais explícitos, que propõem tratamentos espirituais e processos de conversão conhecidos como “cura gay”. Um deles, o Movimento de Ex-Gays do Brasil, apoiado pela ministra dos Direitos Humanos e da Família, Damares Alves, busca estreitar laços com políticos, sobretudo ligados ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), para legitimar a prática.

Em contrapartida, movimentos de evangélicos progressistas, como Cristãos Contra o Fascismo e Evangélicxs pela Diversidade, articulam candidaturas coletivas em várias cidades na tentativa de fazer oposição ao fundamentalismo religioso. É o caso do grupo de esquerda que concorrerá à Câmara Municipal de Belo Horizonte pelo Unidade Popular (UP). Os quatro integrantes dizem que o objetivo da candidatura é representar evangélicos que não se sentem contemplados pela “bancada da bíblia” e ressignificar a ideia de como a religião se manifesta nas esferas de poder. “Somos uma minoria [na igreja] que não dá pra ser ignorada. Os movimentos de evangélicos progressistas já estão em praticamente todas as capitais do país”, diz Jonatas Aredes, um dos membros do coletivo, lembrando que a frente do progressismo protestante começou a ganhar corpo em 2016, após a bancada evangélica apoiar o impeachment de Dilma Rousseff.

De acordo com pesquisa Datafolha, de abril, 41% dos evangélicos aprovam o Governo de Jair Bolsonaro, enquanto 30% defendiam a renúncia do presidente, que, em um culto na Câmara dos Deputados, já afirmou que pretende indicar um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal. Aredes pondera que, além dos que rejeitam Bolsonaro, a comunidade evangélica é majoritariamente composta por mulheres, negros e pobres, que estariam à margem da representação pela bancada religiosa. “Nossa percepção é de que os evangélicos não são, de fato, representados, porque os coronéis da fé perseguem as minorias. Não podemos mais aceitar que nossa fé seja associada ao fundamentalismo e à intolerância.”

Para o teólogo LGBT, as falas dos irmãos Valadão —que moram nos Estados Unidos, declararam apoio a Bolsonaro na última eleição presidencial e não se retrataram pelas ofensas homofóbicas— sintetizam a pregação de outras lideranças religiosas que ainda tacham a diversidade sexual como comportamento pecaminoso. “Os fundamentalistas jogam a Bíblia na cara da pessoa LGBT, selecionando de maneira irresponsável meia dúzia de trechos isolados do contexto”, diz Aredes. “Assim a concepção de pecado se perpetua no que sempre foi: uma categoria de juízo, sem base alguma, que visa justificar discriminação por um determinado grupo de pessoas que acham estar fazendo a vontade de Deus, quando o pecado, na verdade, é a igreja ser preconceituosa.”

Religião e política, mais do que nunca, se discutem

A relação entre religião e política, presente no Brasil desde que a Igreja Católica aportou nestas terras com os colonizadores portugueses, ganhou seu lugar em discussões populares. Um ponto destacado é o que alguns chamam de “ameaça” evangélica, outros de “bênção de Deus sobre os evangélicos”, e diz respeito à intensificação da presença de cristãos na política, estimulada pela aliança do governo Bolsonaro com lideranças deste segmento religioso.

Este processo tem resultado em cargos no poder executivo, composições com o Poder Legislativo, fortalecimento de ocupações (e promessas de outras) do Poder Judiciário e interferência em políticas e ações públicas.

A ênfase no poder que tem sido alcançado pela parcela ultraconservadora do segmento evangélico é necessária nesta discussão sobre religião e política. No entanto, quando quem discute se fixa apenas nela, esconde o debate sobre a hegemonia católica neste campo e a emergência da presença dos grupos religiosos de matriz afro e suas demandas por democracia, respeito e liberdade religiosa.

De fato, é preciso afirmar que há uma força evangélica na política. Não é surpresa que candidatos e profissionais de marketing tenham detectado há algum tempo a tendência e, a cada eleição, seja frequente a prática de “pedir a bênção” a líderes evangélicos, seja da parte da direita seja da esquerda.

Também são recorrentes as pressões sobre candidatos e seus partidos, que nada têm de religiosos, a assumirem compromissos com a defesa de pautas da moralidade religiosa, em clara instrumentalização da religião cristã para conquista de corações e mentes de fiéis.

Temos assistido, ainda, a uma presença mais intensa de grupos religiosos atuando como ativistas políticos nos mais diversos movimentos e nas mídias sociais. Com base neste contexto, religião é, certamente, um tema de fundo, alimentador de campanhas e debates contundentes nestas eleições municipais de 2020.

“Nunca na história deste país” uma eleição teve tantos candidatos com identidade religiosa no motor da campanha.

Nos debates sobre este tema, uma pergunta que sempre emerge diz respeito a este processo representar uma ameaça ao Estado laico. É muito importante que a presença de grupos religiosos na política não seja vista como ameaça à democracia ou à laicidade do Estado. Ao contrário, ela reflete a dinâmica da democracia, dá lugar à representação diversa no espaço público, e da cultura brasileira, em que as religiões têm importante papel na ordenação e na organização da vida.

A laicidade do Estado sempre foi um processo com avanços e retrocessos por conta da presença católico-romana na política há mais de 500 anos. Um exemplo destacado é o Acordo Brasil-Vaticano de 2010, com a concessão de vários privilégios à Igreja Católica pelo governo brasileiro. Outro, é o fato de a campanha pela retirada da noção de “gênero” do Plano Nacional de Educação, em 2014, ter sido liderada por católicos, bem como a criação do termo enganoso “ideologia de gênero”, ter ocorrido por estímulo do Papa Bento XVI, em discurso proferido em 2012.

Portanto, não se pode levantar o tema da “ameaça ao Estado laico” apenas quando se cria consciência da presença mais intensa de evangélicos na política. O Estado laico sempre foi frágil em nossas terras a começar com o poder da hegemonia católica, passando pela intolerância em relação às religiões de matriz afro (resultante do racismo estrutural), chegando à força dos fundamentalismos evangélicos no tempo presente.

A presença mais intensa de grupos religiosos no espaço público deve ser vista como indício do próprio avanço da democracia (com ambiguidades, é claro) e da pluralidade religiosa.

O que ameaça o Estado laico, e deve ser questionado e enfrentado, é que um grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, crentes (com toda pluralidade que vivenciam) e não-crentes. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que são colocados em risco.

Da mesma forma, o Estado laico está em perigo quando princípios religiosos são instrumentalizados por líderes e grupos políticos com vistas à busca de votos ou de apoio a implementação de necropolíticas.

Estas ameaças são evidentes no governo de Jair Bolsonaro (como já tratado em artigos desta coluna), que faz o jogo político para alcançar não apenas evangélicos, mas católicos e espíritas que têm identidade com sua postura autoritária, violenta, corruptora do poder público e aliançada com grupos econômicos exploradores da vida em todas as dimensões.

É por isso que religião e política devem ser discutidas, sim. E deve ser feito, crítica e coletivamente, sobretudo, em espaços em que a fé religiosa é praticada e pelos mais diferentes grupos e forças sociais que formam e informam sobre política.


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