20/04/2024 - Edição 540

Poder

Assessoras repassaram salários a advogado de Flávio Bolsonaro nas eleições

Publicado em 02/10/2020 12:00 -

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Duas assessoras repassaram um total de R$ 27 mil, após seus salários e auxílio-alimentação caírem em suas contas bancárias, ao advogado do atual senador Flávio Bolsonaro (hoje no Republicanos) durante o período da campanha eleitoral do ano de 2018.

As informações são resultantes da quebra de sigilo bancário das funcionárias, e mostram que a prática da rachadinha no gabinete na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) do então deputado estadual ia além dos depósitos realizados na conta do policial militar Fabrício Queiroz.

Foram 22 repasses realizados todos os meses entre junho e dezembro de 2018, período que abrangeu as eleições, ao advogado Luis Gustavo Botto Maia, responsável pela parte jurídica da candidatura de Flávio Bolsonaro ao Senado. Ele recebeu depósitos regulares de Alessandra Cristina Oliveira (15) e Valdenice Meliga (7), de acordo com os dados bancários analisados pela reportagem.

As duas eram assessoras parlamentares de Flávio na Alerj e, ao mesmo tempo, dirigentes do PSL, partido da família Bolsonaro naquele ano.

O advogado Botto Maia também foi contatado por e-mail, aplicativo de WhatsApp e ligações, mas também não respondeu. A reportagem esteve ontem em sua residência na zona oeste do Rio, mas não o encontrou. Deixou recado, por escrito, e não recebeu resposta.

Advogado sob suspeita

Em junho, o advogado Botto Maia foi alvo de um mandado de busca e apreensão pela suspeita de participar de uma tentativa de obstruir as investigações sobre o esquema da rachadinha.

O MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) afirma que Botto Maia participou da discussão de um plano de fuga de Queiroz e sua família. No final de 2019, o advogado viajou para a cidade de Astolfo Dutra (MG) para se reunir com a mulher de Queiroz, Márcia, e a mãe do chefe do Escritório do Crime Adriano Magalhães da Nóbrega. O miliciano foi morto em fevereiro deste ano, em confronto com a PM baiana. Já Queiroz cumpre prisão domiciliar.

Flávio Bolsonaro e ex-assessores na Alerj são investigados pelo MP-RJ pela repartição ilegal de salários, a chamada rachadinha. Segundo as investigações, Fabrício Queiroz seria o operador principal do esquema, tendo recebido pelo menos R$ 2 milhões por meio de depósitos feitos por assessores de Flávio.

Como parte da investigação, a Justiça Estadual do Rio de Janeiro autorizou a quebra de sigilo bancário de diversas pessoas ligadas a Flávio Bolsonaro. Os dados abrangem operações bancárias até dezembro de 2018.

Ciranda da rachadinha

Os dados bancários mostram ainda a ocorrência de outros repasses. Além de transferir para Botto Maia, Valdenice fazia repasses para Alessandra. Por sua vez, Valdenice recebia depósitos mensais de Lídia dos Santos Cunha, outra assessora parlamentar de Flávio Bolsonaro na Alerj.

Valdenice Meliga e Lídia dos Santos Cunha não responderam às mensagens enviadas aos seus respectivos e-mails. Lídia não atendeu os telefonemas da reportagem.

A maioria dos repasses ocorria no mesmo dia ou em até quatro dias depois dos depósitos da Alerj. Após receberem os salários, cada uma das três assessoras transferia o mesmo valor, de R$ 2.562,31. Já o auxílio-alimentação, depositado em separado, não tem valor fixo. Depois que o benefício caía na conta, as assessoras transferiam a metade.

Alessandra Cristina Oliveira foi contratada como assessora parlamentar no gabinete de Flávio Bolsonaro em junho de 2018. Na época, acumulava a função de primeira-tesoureira do PSL no Rio.

O primeiro depósito da Alerj na conta de Alessandra foi o auxílio-alimentação, no valor de R$ 1.740, em 25 de junho. Quatro dias depois, a funcionária transferiu R$ 870 para Botto Maia, exatamente metade do benefício. Na operação, feita pela internet, Alessandra anotou: "aux alim" (auxílio-alimentação).

Alessandra também transferia parte do salário na Alerj para a conta de Botto Maia. Em 31 de julho, por exemplo, Alessandra recebeu R$ 6.854,99 da Alerj. No mesmo dia, transferiu R$ 2.562,31 para Botto Maia pela internet, com a observação "sal julh" (salário julho). Depois de receber o contracheque de agosto, Alessandra novamente depositou R$ 2.562,31 para o advogado, dessa vez com a anotação "salário8" (salário mês 8, agosto).

Os depósitos mensais se repetiram até dezembro de 2018, quando se encerra a quebra de sigilo bancário. Ao todo, Alessandra transferiu para Botto Maia 45% do seu salário líquido na Alerj em 2018, mais 50% do auxílio-alimentação. A soma dá R$ 20,8 mil.

Já Valdenice Meliga assumiu cargo de assessora parlamentar de Flávio na Alerj em maio de 2018. No período, também foi tesoureira-geral do PSL no Rio. Em agosto daquele ano, passou a fazer repasses mensais tanto para Botto Maia como para Alessandra, em valores idênticos e sempre no mesmo dia.

Em 31 de agosto, por exemplo, Valdenice recebeu R$ 5.124,62 líquidos de salário da Alerj. Três dias depois, transferiu R$ 1.281,15 para Botto Maia e igual valor para Alessandra. Somados, os dois repasses dão os mesmos R$ 2.562,31 que Alessandra depositava para Botto Maia. Esse valor também corresponde à metade do contracheque de Valdenice na Alerj. Até dezembro de 2018, Valdenice pagou R$ 11,2 mil para Botto Maia e Alessandra.

Valdenice não ficou de fora da ciranda de transferências. Sua quebra de sigilo bancário mostra que também recebeu R$ 2.562,31 mensais, transferidos pela então assessora parlamentar Lídia Cunha. O valor, geralmente pago em duas parcelas, também equivale à metade do salário líquido de Lídia na Alerj.

Além disso, Valdenice recebia de Lídia um pagamento adicional de cerca de R$ 400. O valor é semelhante à divisão do auxílio-alimentação movimentada nas contas dos demais assessores. Até dezembro, as operações de Lídia para Valdenice somaram R$ 13,1 mil.

No coração da campanha do PSL em 2018

Botto Maia, Alessandra e Valdenice tiveram papel central nas campanhas do PSL no Rio em 2018, incluindo a de Flávio Bolsonaro para senador. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, Queiroz e Valdenice foram os principais operadores do partido no estado durante as eleições. Alessandra foi a responsável pela contabilidade de grande parte dos candidatos e Botto Maia, pelo jurídico.

Valdenice é irmã de dois policiais militares suspeitos de envolvimento em um esquema de corrupção descoberto pela Operação Quarto Elemento – um deles morreu, recentemente, de causas naturais. Na reta final da campanha, quando duas candidatas mulheres renunciaram, uma nora e uma irmã de Valdenice assumiram os postos vagos.

Já Botto Maia e Alessandra firmaram contratos com dezenas de candidatos do PSL no Rio. Esse tipo de contratação casada com postulantes de um único partido foi extremamente incomum nas eleições 2018, segundo análise de dados do UOL. Uma procuradora da República, com atuação na Justiça Eleitoral, considerou a movimentação financeira como "suspeita".

Botto Maia representou as prestações de contas de 37 candidatos, sendo 32 mulheres. Somando todos os contratos, recebeu R$ 37 mil. De modo semelhante, uma empresa de eventos de Alessandra foi contratada para fazer a contabilidade de 41 campanhas, sendo 33 de mulheres, por um total de R$ 54 mil. A maioria dos pagamentos foi realizada com dinheiro público, do Fundo Eleitoral.

Depois que Flávio Bolsonaro deixou a Alerj e assumiu vaga no Senado, Valdenice, Alessandra e Lídia assumiram outras vagas remuneradas com dinheiro público. Em março de 2019, as três passaram a exercer funções administrativas no PSL, com salários que chegavam a R$ 11,1 mil. A contratação das três ocorreu exatamente no mesmo dia, 19 de março. A sigla foi presidida por Flávio até o rompimento da família Bolsonaro com o partido, em novembro de 2019.

Já Botto Maia entrou na folha de pagamento da Alerj em julho de 2019, como chefe de gabinete da liderança do PSL, ocupada pelo deputado estadual Renato Zaca. Foi exonerado em junho deste ano, depois do mandado de busca e apreensão em seus endereços. O advogado também é alvo de um processo ético-disciplinar na OAB-RJ.

Análise

O repasse de R$ 27 mil de salários e auxílio-alimentação de duas assessoras do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro ao advogado que prestou serviços à sua campanha eleitoral em 2018 joga o escândalo do desvio de recursos públicos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro a outro patamar.

Isso indica que "rachadinha" – de natureza ilícita e, portanto, não contabilizada formalmente – pode ter sido usada para ajudar sua candidatura ao Senado. Ou seja, um caixa 2.

Em outras palavras, o Ministério Público precisa esclarecer se o primogênito do presidente da República criou um esquema para desviar dinheiro público da Alerj a fim de bancar sua eleição ao Congresso Nacional usando funcionárias-laranja que entregavam parte de seus rendimentos.

A informação veio a público com reportagem de Gabriela Sá Pessoa, Amanda Rossi, Igor Mello e Flávio Costa, do núcleo investigativo do UOL Notícias, lembrando que não era só o ex-assessor Fabrício Queiroz que realizava a transferência de recursos públicos. E que, além de chocolates, imóveis, mensalidades escolares e de plano de saúde, rachadinha também pode se transformar em trampolim para cargo público.

De acordo com a quebra de sigilo das servidoras públicas à qual a reportagem teve acesso, foram 22 repasses realizados todos os meses entre junho e dezembro de 2018, período que abrangeu as eleições, ao advogado Luis Gustavo Botto Maia – responsável pela parte jurídica da candidatura de Flávio Bolsonaro (então no PSL e, hoje, no Republicanos) ao Senado.

Botto Maia representou contas dezenas de candidatos do PSL, sendo a maioria mulheres. E recebeu pagamentos de dinheiro público do Fundo Eleitoral.

Vale lembrar que, em depoimento por escrito ao MP-RJ, em fevereiro do ano passado, Fabrício Queiroz já tinha citado a preocupação eleitoral, ainda que em meio a uma justificativa cuja credibilidade não parava em pé. Confirmando que recolhia parte dos salários dos funcionários do chefe, alegou que o destino era remunerar, de maneira informal, outros "assessores da base eleitoral". A isso, deu o nome de "desconcentração de remuneração". Ou seja, atestou que fazia algo ilegal para afastar denúncias de algo ainda mais ilegal.

No caso revelado nesta semana, as transferências dos salários das servidoras para o advogado que prestou serviços eleitorais a Flávio não passaram pela conta de Queiroz. Evidência de que o esquema era ainda maior e mais complexo. 

Os envolvidos foram procurados pelo UOL, mas não se manifestaram. Ou seja, a pergunta sobre os recursos vai entrar na mesma fila para explicações em que estão os R$ 89 mil em depósitos que a primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu de Fabrício Queiroz e de sua esposa Márcia de Aguiar.

A única resposta a essa pergunta veio do presidente da República, que ameaçou o repórter do jornal O Globo com uma porrada na sua boca.

MBL sabia de tudo

A cúpula do MBL olhava para o noticiário sobre a rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro, em janeiro de 2019, e se via num dilema: como apoiar o governo ao mesmo tempo que considerava que era “impossível defender” o senador? Como criticar abertamente a família e um amigo do presidente da República cuja eleição o grupo tinha apoiado e de cujo governo se tornara fiador?

Áudios inéditos enviados ao Intercept_Brasil mostram os bastidores do Movimento Brasil Livre, grupo que ganhou notoriedade a partir de 2014. Até ali, o MBL rebolava para se manter na base do presidente Jair Bolsonaro – uma ruptura que aconteceria meses depois. Nas gravações, os líderes do grupo revelam as estratégias para tentar aliviar a repercussão do caso das rachadinhas entre seus apoiadores. Enquanto isso, crescia a irritação dos líderes do movimento com os ataques coordenados pelo vereador Carlos Bolsonaro.

O material foi enviado pela mesma fonte do arquivo da Vaza Jato, no mesmo período, em um pacote separado, e não guarda relação com as conversas dos procuradores da República e do ex-juiz e ex-ministro bolsonarista Sergio Moro. A análise dos áudios demandou meses de trabalho e também envolveu apuração com fontes externas e cruzamento de informações e eventos citados nas próprias conversas.

As gravações foram trocadas por pessoas públicas como o deputado estadual e candidato à prefeitura de São Paulo Arthur do Val, conhecido como Mamãe Falei, e os irmãos Alexandre e Renan Santos, fundadores e coordenadores nacionais do MBL. Todos os áudios usados na reportagem são reproduzidos na íntegra, com o mesmo conteúdo dos enviados ao Intercept, sem cortes ou edição.

A ruptura com o bolsonarismo, exposta em detalhes (e em termos nada sutis) nas mensagens de áudio, cria um mal-estar para Mamãe Falei, que disputa a prefeitura de São Paulo pelo Patriota. Em fevereiro passado, quase toda a cúpula do MBL se filiou à legenda. Mas o partido, ainda um dos nanicos da política brasileira, é presidido por um bolsonarista de carteirinha, Adilson Barroso.

‘É corrupção, mas não escândalo’

A relação entre MBL e Bolsonaro se tornou visível logo após o resultado do primeiro turno das eleições de 2018. Naquele momento, já eleito deputado federal por São Paulo, Kim Kataguiri afirmou que daria um “voto útil” ao candidato da extrema direita. “Não é o cenário ideal, existem pessoas mais preparadas [para a presidência], mas infelizmente é o que a gente tem”, ele justificou ao UOL.

Para Kataguiri, eleger Fernando Haddad, do PT, seria uma “ameaça à democracia”. Alguns dias depois, lideranças do movimento e deputados eleitos pelo partido Novo, o mais alinhado ao MBL, se reuniram com Bolsonaro para declarar apoio a ele.

Logo após o segundo turno, emergiram as primeiras denúncias sobre o esquema de desvio de dinheiro público via “rachadinhas” nos salários de servidores do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro. Arthur do Val, em dezembro, ainda estava cético: “eu não sei [se Flávio é corrupto], mas eu torço para que ele seja inocente”, disse ele em um vídeo que tinha como título “Flávio Bolsonaro é corrupto?”.

Mas, segundo as conversas trocadas por aplicativo de mensagens, o apoio alegadamente pragmático ao presidente começou a ruir em janeiro de 2019, nos primeiros dias do novo governo, quando um novo relatório do Coaf apontou as movimentações financeiras suspeitas de Flávio Bolsonaro, e o ministro Luiz Fux mandou suspender as investigações a pedido do filho do presidente.

À época, o MBL debateu internamente, em áudios, como se posicionar em relação às denúncias sobre rachadinhas no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O grupo de líderes do movimento buscava uma saída para não ter de condenar com veemência o filho do presidente cuja eleição havia apoiado. Era uma situação constrangedora: foram afirmações duras e pregando intolerância absoluta com desvios éticos que fizeram a fama do movimento durante os protestos de rua contra escândalos de corrupção nos governos do PT.

Em dois áudios, Renan Santos, coordenador nacional do MBL.

Naquele momento, portanto, o MBL estava disposto a minimizar o caso das rachadinhas – que meses depois teria desdobramentos como a prisão de um homem de confiança do presidente da República, Fabrício Queiroz, pivô do caso, na casa do ex-advogado da família Bolsonaro.

Assim foi feito. Em vídeos e posts públicos, o grupo manteve a retórica de que seguiria com o governo e sua agenda de reformas econômicas. Na mira do MBL, naquele momento, estava apenas o comportamento de confronto que Bolsonaro manifestava em relação ao Congresso.

‘É impossível você defender o Flávio’

Mas a reação da família Bolsonaro às denúncias contra Flávio, replicadas pelo exército de robôs e perfis em redes criados pelo “gabinete do ódio”, espantou o MBL. Mesmo após o senador e filho 01 assumir que os depósitos revelados pela imprensa eram verdadeiros, a narrativa preponderante no bolsonarismo era de que se tratava de uma armação para prejudicar o presidente.

Fazer barulho para emplacar uma narrativa mentirosa é algo que o MBL sabe fazer bem. Um caso notório é o da exposição Queermuseu, num espaço cultural que pertence ao banco Santander, em Porto Alegre, fechada depois de o grupo fazer acusações mentirosas de que nela havia incentivo à pedofilia. Agora, porém, a mentira do presidente que ajudara a eleger passou a incomodar o MBL:

Em janeiro de 2019, Flávio havia feito uma série de posts no Instagram para se defender das acusações envolvendo o esquema de rachadinha. Em um deles, de 22 de janeiro, ele confirmava o recebimento de depósitos parcelados em valores pequenos pela venda de um imóvel.

Em outro áudio, Renan Santos conta aos colegas ter sido procurado pelo jornalista Cláudio Dantas, do site O Antagonista, que lhe trazia uma dica para ironizar Carlos Bolsonaro:

Carlos de fato seria investigado por manter funcionários fantasmas. Naquele momento, porém, o confronto direto com o furioso filho 02 não parecia estar nos planos do MBL. Em vez disso, Renan repassa uma sugestão de Luciano Ayan (pseudônimo de Carlos Augusto de Moraes Afonso, preso em julho de 2020 numa investigação que mirou o MBL):

Mamãe Falei retrucou que aquele não era o momento para comprar briga com o bolsonarismo. Para ele, isso não deveria ocorrer antes de o governo “afundar um pouco mais”:

Mas já havia ressentimentos aflorando. Renan Santos lembrou aos amigos que estava cansado de ouvir “indiretinhas desse bosta”, fazendo referência a Carlos Bolsonaro:

‘Eu tô com o Bolsonaro, mas ele que se cagou’

Alexandre Santos, o Salsicha, deu razão a Mamãe Falei, ainda que projetasse novos desgastes para o MBL por causa das suspeitas de que desviar dinheiro público era rotina nos gabinetes do clã presidencial.

Salsicha ainda sugeriu uma saída para que o MBL não entrasse em confronto aberto com o bolsonarismo: franquear as redes sociais do movimento para que Flávio pudesse se defender “sem risco da imprensa manipular”.

Salsicha ainda trouxe mais um motivo para que Flávio fosse poupado da ira com que o grupo presenteia seus adversários:

Mesmo assim, se manteve aberto à ideia da ruptura:

Salsicha continua, respondendo a colegas:

Mas havia riscos em fazer isso, avaliou Mamãe Falei:

O problema era que Kim Kataguiri e Fernando Holiday, dois dos três líderes do MBL com mandato parlamentar, já haviam criticado Flávio em suas redes sociais. Kataguiri disse que a história “cheirava mal”. Para um dos líderes do MBL, que não conseguimos identificar, o colega se precipitara:

Kim Kataguiri e Mamãe Falei então gravaram vídeos colocando em prática as estratégias debatidas no grupo de mensagens. Como combinado, o tom usado foi cauteloso, sem críticas duras ou cobranças públicas ao senador. Foi como se Flávio fosse tema de um comentário da TV Record, principal aliada do bolsonarismo na mídia.

Com isso, ao menos àquela altura o MBL conseguiu evitar se tornar um alvo preferencial do bolsonarismo. Salsicha já tinha percebido qual seria o custo da ruptura com o clã presidencial e seu exército virtual:

Mas mesmo Salsicha mostrou perceber que a ruptura seria inevitável:

‘É uma galera asquerosa’

A desconfiança quanto a Carlos Bolsonaro e seu exército virtual, porém, não se dissipou. De outro lado, as suspeitas de desvio de dinheiro no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro se avolumavam.

As duas coisas parecem ter reforçado a impressão do MBL de que se distanciar do presidente seria inevitável.

Em meio à tensão, o MBL buscou um encontro discreto com Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria-Geral da Presidência, que logo se tornaria pivô da primeira crise política do governo. A intenção, segundo os diálogos, era coletar informações que pudessem ser usadas contra Bolsonaro. Bebianno era visto por muitos – e, aparentemente, também pelo MBL – como detentor de segredos que poderiam ferir a imagem pública de Bolsonaro e de seus filhos (ele morreu em 20 de março de 2020, aos 56 anos, de infarto).

Um dos coordenadores da campanha que levou Bolsonaro ao Planalto, Bebianno trabalhava ao lado do presidente em Brasília. Mas a relação começou a azedar quando a Folha de S.Paulo publicou reportagem mostrando que o PSL entregara R$ 400 mil a uma candidata laranja em Pernambuco na época em que era presidido por Bebianno.

A crise do “laranjal do PSL” estremeceu a confiança do presidente em Bebianno. Bolsonaro fez de tudo para se descolar da crise, e isso incluía queimar o aliado fiel. Tentando apaziguar os ânimos, o então ministro sem querer aprofundou a crise ao afirmar ao jornal O Globo que conversara três vezes num único dia com Bolsonaro – à época internado no hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma cirurgia decorrente do atentado à faca que sofreu. Carlos Bolsonaro, que acompanhava o pai, disse que a afirmação de Bebianno era mentira.

Foi em meio a esses acontecimentos que Renan Santos informou os colegas que procurara o humorista André Marinho para chegar a Bebianno. André é filho de Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro no Senado e atualmente desafeto do clã presidencial. Marinho e Bebianno também eram muito próximos.

Em outro momento da troca de áudios sobre Bebianno, Renan Santos não poupou críticas aos Bolsonaro:

O encontro com Bebianno de fato ocorreu, como apurou o Intercept. Um ex-integrante do MBL que tinha acesso à cúpula do grupo nos confirmou que Renan Santos viajou a Brasília poucos dias depois de dizer aos outros integrantes que iria se reunir com Bebianno. Isso aconteceu nos últimos dias de Bebianno no governo – ele foi demitido em 18 de fevereiro de 2019.

Segundo esse ex-integrante, que pediu para não ser identificado por temer represálias, o objetivo do encontro era buscar a “pacificação pela violência” – ou seja, encontrar formas de conter Bolsonaro por meio de informações privilegiadas que poderiam chantageá-lo ou, em último caso, endossar um pedido de impeachment. Procuramos o MBL com perguntas sobre esse e outros áudios. O movimento, porém, disse apenas que “não comenta material especulativo e supostas conversas privadas entre seus integrantes ou deles com jornalistas e políticos”.

Depois do encontro, Renan publicou um vídeo no qual critica a forma com que Bolsonaro tratou Bebianno. Ele foi gravado em 17 de fevereiro, véspera da demissão do ministro. No vídeo, Renan afirma que “não acha Bebianno bacana” e que “não trabalharia para ele”, mas diz que o ex-aliado foi traído de maneira desonesta por Carlos e Jair Bolsonaro, o que seria atitude de “terrorista”.

De acordo com mais de um ex-integrantes do MBL com quem conversamos e que pediram anonimato, a mesma abordagem foi usada numa reunião entre Salsicha e Kim Kataguiri com Hamilton Mourão, ocorrida em 7 de maio do ano passado e registrada na agenda oficial do vice-presidente.

O objetivo do MBL era buscar alinhamento com pessoas vistas como “mais razoáveis” dentro do governo e que pudessem levar a cabo pautas do movimento como a reforma da Previdência. Àquela época, a reforma patinava por causa dos embates do presidente com o Congresso.

Enviamos a transcrição de alguns dos áudios dessa conversa à Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto, a Secom, pedindo comentários do presidente Jair Bolsonaro. A Secom respondeu que não haveria comentários. Também fizemos perguntas a Flávio e Carlos Bolsonaro, além do jornalista Cláudio Dantas, d’O Antagonista. Nenhum deles respondeu.

Em fins de maio de 2019, acuados por crises sucessivas do governo, apoiadores de Bolsonaro convocaram manifestações contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso. O MBL não embarcou.

Os líderes do movimento olhavam para os números de seguidores em suas redes sociais e viam algo inédito: eles caíam vertiginosamente. Alvo de ataques e mentiras, o movimento encarava, mais uma vez, o ódio da militância de extrema direita de Jair Bolsonaro. O grupo optou por boicotar as manifestações antidemocráticas. E o divórcio com o bolsonarismo foi assinado.


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