19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Relatório mostra disparada na violência contra indígenas

Publicado em 01/10/2020 12:00 -

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José Maria Guajajara, de 61 anos, está com medo. Nos últimos 15 anos, 50 representantes de seu povo foram assassinados – uma média superior a três por ano. O ancião teme que a morte de seu filho Paulo Paulino Guajajara, em novembro do ano passado, no Maranhão, torne-se apenas um número.

"Eu só quero a justiça, porque não estão contando a história certa pra mim”, diz ao telefone, da cidade de Amarante (MA). Em janeiro deste ano, o Ministério Público Federal devolveu o inquérito sobre a execução de Paulino à Polícia Federal, que havia descartado a hipótese de emboscada, bem como qualquer relação com conflito étnico.

Assim como o pai, Paulino integrava o grupo dos "Guardiões da Floresta", indígenas legitimados pela Funai e o Ibama para realizar ações de proteção do seu território em diferentes áreas do Maranhão. Ele faz parte das estatísticas do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, publicado anualmente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

No último dia 30, foram divulgados os dados referentes a 2019, primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro. O estudo revela um agravamento generalizado dos indicadores.

Apesar de ligeira queda do número de homicídios na comparação com 2018, os casos de violência mais que dobraram, de 110 para 276 ocorrências. A publicação elenca 19 categorias de violência, incluindo ameaças, racismo e desassistência de saúde. No ano passado, 16 delas registraram aumento.

Vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Cimi destaca no sumário executivo do relatório a intensificação e diversificação das formas de expropriação do território indígena. Como exemplo, a organização cita a onda de incêndios na Amazônia e no Pantanalno ano passado, que se repetem em 2020 mesmo após ampla repercussão internacional.

"Muitas vezes, as queimadas são parte essencial de um esquema criminoso de grilagem, em que a ‘limpeza' de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários", diz o estudo. O indicador que mede "invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio" saltou de 109 casos em 2018 para 256 no ano passado, um aumento de 134,9%.

Reflexos de Brasília

Roberto Liebgott, coordenador do Cimi e um dos organizadores do relatório, explica que os queimadas levam a uma migração forçada de povos indígenas, o que intensifica a vulnerabilidade dessas populações. Na avaliação de Liebgott, a deterioração da proteção territorial tem relação com a política e o discurso adotados pelo governo desde seu início.

"Com Bolsonaro, houve uma espécie de sinalização para que todas as áreas fossem invadidas por quem tivesse algum tipo de interesse de exploração econômica. Antes, havia um processo de invasão sistemático, mas que nos parecia mais cuidadoso com relação a um impacto tão ostensivo como o visto agora, quando se incendeia tudo”, diz Liebgott.

As 256 invasões observadas no ano passado se desmembram em 544 ocorrências, pois registram mais de um dano ou conflito. Desse total, 208 tinham no ato de invadir a motivação central. Outras 89 diziam respeito à exploração ilegal de madeira e desmatamento, enquanto 39 estavam relacionadas ao garimpo e à exploração mineral nas terras indígenas.

Suicídio volta a aumentar

Embora não seja possível elencar o estado ou região de maior vulnerabilidade para os povos originários, o relatório chama atenção para a situação de Mato Grosso do Sul, que abriga a segunda maior população indígena do país. Há registro de prática de tortura no estado, inclusive de crianças.

Os guarani-kaiowá constituem o grupo mais vulnerável da região. Além de conflitos históricos com outras etnias vizinhas, agravados pela distribuição dos indígenas em reservas ao longo do último século, há uma forte tensão entre indígenas que buscam recuperar terras expropriadas e fazendeiros do estado.

São vários os impactos socioculturais desse contexto, como a ida de indígenas para as periferias das zonas urbanas, onde são vítimas de preconceito generalizado. O mais impactante, porém, é a alta incidência de suicídio entre os povos de Mato Grosso do Sul — notadamente o povo Guarani-Kaiowá.

O estado contabilizou 34 das 267 notificações nessa categoria em 2019, atrás apenas do Amazonas, com 59. No panorama nacional, houve um avanço de 31,7% no número de casos em relação ao ano anterior, após queda de 21,1% registrada em 2018.

Para o líder guarani-kaiowá Otoniel Ricardo, que é vereador em Caarapó (MS), a questão do suicídio entre indígenas exige uma análise cuidadosa. Mas, em sua leitura, está intrinsecamente ligada à perda dos territórios e ao preconceito racial no caso de seu povo.

"Nossa juventude hoje não tem alegria de ser Guarani-Kaiowá. Para nós, a ligação espiritual com a natureza é tudo. Eles não vivem mais os rituais e festas que são da nossa tradição, correm risco de morrer se passarem no meio da fazenda e sofrem bullying se vão para a universidade. Falta liberdade e respeito.”, afirma.

Alta na mortalidade infantil

O indicador que mede os suicídios integra um capítulo do relatório que trata dos casos de violência por omissão do poder público. Outro fenômeno que se destaca nesse segmento é a escalada da mortalidade infantil, que teve um aumento de 39,6% no número de casos entre 2018 e 2019.

Dos 825 registros em 2019, 248 se concentram no Amazonas, seguido por Roraima (133) e Mato Grosso (100). Os três estados abrigam comunidades que vivem a longas distâncias dos centros urbanos e, portanto, dependem exclusivamente da assistência prestada pelo subsistema de atenção á saúde indígena.

O coordenador do Cimi recorda que o governo federal deixou de financiar os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) por quase cinco meses em 2019. Para Roberto Liebgott, o fim do programa Mais Médicos em um contexto de fragilização da estrutura de assistência à saúde indígena teve um peso decisivo para o aumento da mortalidade infantil.

"O subsistema sempre teve carência de médicos, a qual foi suprida em grande medida pelo programa. Eles tinham o olhar muito importante da medicina preventiva. Quando Bolsonaro rompeu com o programa, só restaram agentes de saúde indígena na ponta”, lembra.

Plano de mineração ameaça indígenas e fragiliza leis

Mais espaço para o capital estrangeiro, flexibilização das leis ambientais, destruição do meio ambiente e ofensivas contra direitos dos povos indígenas. Segundo análise do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), essas serão as consequências do Programa de Mineração e Desenvolvimento (PMD) anunciado no último dia 28 pelo governo federal.

O programa define a agenda da gestão Bolsonaro para a mineração no período de 2020 a 2023 e inclui um total de 110 metas divididas em dez eixos de concentração temática. Entre elas o avanço da mineração em novas áreas, segurança jurídica às empresas, a ampliação do conhecimento geológico do setor, investimentos e financiamentos, inovação e sustentabilidade.

O PMD vem sendo trabalhado desde 2019 com discussões que estimularam também a apresentação do Projeto de Lei 191, que propõe a regulamentação da atividade minerária em terras indígenas assim como a construção de hidrelétricas. A proposta, amplamente criticada pela sociedade civil, foi barrada pela oposição e está parada no Congresso Nacional.

Jarbas Vieira, da coordenação nacional do MAM, afirma que, caso o PL seja aprovado, os impactos socioambientais serão extremamente negativos. A começar pelo ataque ao modo de vida e direito dos povos originários. 

"Os territórios indígenas são locais onde há a preservação da biodiversidade, um equilíbrio que no resto do país já se foi. Assim como está indo no Pantanal, no território amazônico, no pampa do RS e o próprio Cerrado que corre risco de desaparecer. Essa política de desenvolvimento desenfreado para cima dos territórios é acéfala, é uma política destruição. Querer dizimar os povos originários do nosso país é um crime. É uma política genocida e colonizadora”, critica Vieira.

Um estudo feito pela Universidade Federal de Minhas Gerais (UFMG), em parceria com a Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Queensland, na Austrália e com o Instituto Socioambiental (ISA), revelou que a liberação da mineração nesses novos territórios pode aumentar em mais de 20% o impacto da atividade na região amazônica e gerar perdas de até US$ 5 bilhões em serviços ecossistêmicos, como regulação de chuvas e produção de alimentos.

Para Heider Bazo, da coordenação nacional do MAB, o plano integra o pacote de iniciativas negativas que tem sido aprovadas com Ricardo Salles no ministério do Meio Ambiente. 

“Vemos como mais uma forma de passar a boiada, como o ministro falou, e aproveitar o contexto para aprovar coisas que em outras conjunturas não seriam aprovadas de forma tão fácil.”

Além da mineração das terras indígenas, segundo ele, o PMD prevê o aumento da mineração sobre zona de amortecimento, a agilização dos processos de outorgas e abre brecha para que haja financiamento público voltado à atuação da iniciativa privada no setor. 

Bazo destaca que o plano e as declarações de integrantes do governo deixam claro a cobiça sobre a Amazônia.
  
“Assim como o o agronegócio avança na região em busca de melhores terras para expandir a soja e o milho, a mineração também avança sobre o subsolo. Sabemos que lá há grandes quantidades de minerais raros e o governo descreve alguns com especial interesse, como o nióbio”, comenta.

Mercado internacional

Atrair empreendedores do mercado interno e – principalmente – externo é uma das prioridades do Programa de Mineração. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), por exemplo, participou do lançamento do plano ao lado de Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia e declarou que “o Brasil tem muito potencial para explorar o setor junto com países estrangeiros”.

Na avaliação de Jarbas Vieira, a negociação dos títulos minerários na Bolsa de Valores e a consequente intensificação da especulação no setor é um aspecto grave da política de Bolsonaro, que, de acordo com ele, foi iniciada no governo Temer.  

Ele afirma que Agência Nacional de Mineração (ANM) se articula para se adequar aos interesses dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e União Europeia desde o ano passado. Grupos que demandam, justamente, a facilitação do processo de exploração mineral. 

“O que teremos é uma flexibilização e aceleração na emissão do título minerário e instalação do empreendimento. Isso quer dizer que licenciamento ambientais, que são trâmites essenciais para identificação do impacto e responsabilização das empresas, serão fragilizados. Perdemos a qualidade do estudo”, diz, acrescentando que o processo é uma grave ameaça à soberania brasileira.

“O capital financeirizado não pode vir dizer onde vai explorar e as condições para isso. No fundo é isso que está colocado”. 

Em conseguinte à fragilização do processo de licenciamento, a flexibilização da fiscalização das barragens, para Vieira, é certa. “Isso significa que outros rompimentos acontecerão com toda certeza”, lamenta.

Modelo predatório

Outro ponto do PMD considerado sensível é o incentivo à mineração em regiões mais pobres, com o argumento de que elas se desenvolverão com a chegada da exploração mineral.

No entanto, Heider, representante do MAB, enfatiza que os impactos sociais da mineração para as cidades estão longe de ser o desenvolvimento vendido pelo governo. 

“As comunidades carentes historicamente se tornam mais carentes com o exercício da mineração, que deixam impactos sociais, econômicos e ambientais no decorrer dos anos de forma crônica quando não deixam de forma aguda, que é o caso de rompimento de barragens”, declara.

Como exemplo, ele cita o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, ambas em Minas Gerais, e a insuficiente reparação por parte da Vale e da BHP Billiton, responsáveis pelas minas.

O coordenador do MAB sublinha que a atividade minerária traz consequências cotidianas à saúde física e mentais das populações locais de ribeirinhos, pescadores e agricultores, seja pela contaminação pelos minérios e desenvolvimento de doenças físicas ou pelo sofrimento psicológico dos atingidos à espera da reparação. A chamada elevação do grau de sustentabilidade do setor é referida diversas vezes pelo Plano. Mas, diante da destruição ambiental em curso, os ativistas têm certeza que as propostas não sairão do papel.

“Chega a ser ridículo um governo como esse colocar que ele terá responsabilidade com os impactos ambientais e sociais causados pela mineração. A prática do governo não é de preocupação com os povos ou com meio ambiente, vide o que acontece agora com as queimadas e o que o governo tem feito com os garimpos ilegais nas florestas nacionais. Praticamente o perdão do que eles têm feito”, critica Vieira.


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