04/05/2024 - Edição 540

Poder

Política externa desastrosa

Publicado em 25/09/2020 12:00 -

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Causaram justa indignação a extemporânea visita do secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, a Roraima no último dia 18 e a recepção a ele dada pelo governo brasileiro. Tratou-se, como bem qualificou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, de uma “afronta” às “tradições de autonomia e altivez de nossas políticas externa e de defesa”. A Rodrigo Maia juntaram-se os ex-chanceleres de todos os governos desde a redemocratização, que, em nota, salientaram a obrigação brasileira de “zelar pela estabilidade das fronteiras e o convívio pacífico e respeitoso com os vizinhos, pilares da soberania e da defesa”.

A visita do sr. Pompeo não tinha nenhum outro objetivo além de usar o Brasil na campanha do presidente dos EUA, Donald Trump, à reeleição. A intenção era explorar a crise na Venezuela para reafirmar o desejo do governo Trump de derrubar o regime do ditador Nicolás Maduro, algo que certamente agradaria ao eleitorado venezuelano exilado na Flórida, um dos Estados-chave na eleição de 3 de novembro.

Nem a diplomacia dos governos do regime militar, que Bolsonaro tanto diz admirar, se permitiria tamanha submissão a um presidente norte-americano. Os generais da ditadura, supostos modelos de Bolsonaro, não admitiam alinhamento automático com os EUA e jamais rebaixaram os interesses nacionais, muito menos a esse ponto.

Sob o governo de Jair Bolsonaro, contudo, o Brasil aceitou emprestar seu peso como a maior potência da região para os propósitos pessoais do sr. Trump, sem que ficasse claro o que o País ganharia com isso. Era o que antigamente se chamava de “entreguismo”, mas num nível poucas vezes visto na história: o Brasil governado por Bolsonaro ajoelha-se não diante dos EUA, o que já seria vergonhoso, mas diante de Trump em pessoa, considerado pelo chanceler Ernesto Araújo, em já antológico texto, como o salvador da civilização ocidental.

Ademais, e talvez isso seja o mais importante, o Brasil alinhou-se aos EUA na campanha para promover uma mudança de regime em um país vizinho, o que contraria totalmente não apenas a boa prática diplomática de países civilizados, como também a Constituição brasileira – que determina, em seu artigo 4.º, que as relações internacionais do Brasil devem se pautar pelos princípios da independência nacional, da autodeterminação dos povos, da não intervenção e da solução pacífica dos conflitos.

Nenhum desses princípios foi respeitado pelo governo de Jair Bolsonaro no episódio da visita eleitoreira do secretário de Estado norte-americano. Na ocasião, ladeado pelo chanceler Ernesto Araújo, o secretário Mike Pompeo, depois de falar com imigrantes venezuelanos, qualificou o ditador venezuelano, Nicolás Maduro, de “narcotraficante” e disse que o chavista “destruiu seu país”.

Em linhas gerais, esses são os pretextos do governo Trump para promover a mudança de regime na Venezuela, objetivo compartilhado pelo governo Bolsonaro, a despeito de violar a Constituição. “Parabenizo o presidente Donald Trump pela determinação de seguir trabalhando junto com o Brasil e outros países para restaurar a democracia na Venezuela”, disse o presidente Bolsonaro a propósito da visita de Mike Pompeo.

A tarefa do Brasil não é “restaurar a democracia” em parte alguma, e sim trabalhar incessantemente para preservar o interesse nacional. Desde sempre nossa diplomacia se pautou pelo cultivo de boas relações com os vizinhos, independentemente do regime de governo de cada um deles. Não é por outro motivo que esse espírito está no texto constitucional.

É evidente que o Brasil deve criticar vizinhos cujos governos violem sistematicamente os direitos humanos de seus governados, como é o caso do regime chavista na Venezuela – duramente denunciado em recente relatório produzido por uma missão da ONU. Mas isso não significa que o País deva embarcar em aventuras golpistas na Venezuela, seja qual for o pretexto, nem muito menos permitir-se servir de palanque da eleição norte-americana, como se aqui fosse uma republiqueta bananeira.

Clima quente

O clima esquentou entre a oposição e o chanceler Ernesto Araújo em audiência pública da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado Federal, na quinta (24).

"Se for falar de corrupção, vamos falar da família do presidente", afirmou Rogério Carvalho, líder do PT no Senado Federal. O ministro das Relações Exteriores havia dito que, em governos anteriores, "algumas pessoas gostariam que negociássemos acordos pró-corrupção e estamos negociando acordos anticorrupção".

Araújo foi "convidado" para esclarecer a visita do secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo. Caso não aparecesse, os senadores iriam barrar 33 indicações de Jair Bolsonaro a embaixadas brasileiras. A visita de Pompeo levou o governo Bolsonaro a ser acusado de usar a política internacional brasileira para provocar o vizinho, criando um factoide para a campanha de Donald Trump à reeleição.

O chanceler defendeu seu colega norte-americano, dizendo que declarações de caráter golpista que circularam na imprensa originaram-se de um erro de tradução, segundo a Embaixada dos EUA. Mas chamou o governo venezuelano de "bando de facínoras", "narcotraficante", entre outros adjetivos desabonadores.

Randolfe Rodrigues (Rede-AP) afirmou que o "depoimento não respondeu nada do que foi indagado e só marca o triste fim da nossa política de relações exteriores". Na audiência, o senador disse ao chanceler que espera que esses acordos anticorrupção incluam "cláusulas de combate à prática das 'rachadinhas' nos gabinetes de parlamentares".

O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) é acusado pelo Ministério Público de ter usado esse expediente para desviar recursos públicos com a ajuda de seu ex-assessor Fabrício Queiroz. "Bolsonaro se inspira muitos nos mandamentos de Maduro", avalia Randolfe.

Jaques Wagner (PT-BA) criticou Araújo por afirmar que a visita de Pompeo não teve a ver com a eleição nos EUA, marcada para novembro. "O senhor não está numa classe de primário com muitos ingênuos", disse.

"Pária internacional" e "classe de primário"

Após o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmar que o atual governo faz uma administração de "subserviência" e que lamentava que o país tenha passado de uma política externa ativa para se tornar um "pária", o chanceler disse que o Brasil virou um pária global, mas foi por causa dos governos do PT.

"O tempo todo ele passa a ideia de que está tudo muito bem e que o país tem uma excelente imagem no mundo. Fora de qualquer senso de realidade", afirmou Rogério Carvalho (PT-SE) à coluna. "É um governo despreparado para poder se relacionar com a comunidade internacional, além de demonstrar uma posição belicosa contra países vizinhos", disse.

Ernesto Araújo rebateu as acusações de estar servindo de escada eleitoral para o aliado do Norte: "se não pudermos defender os direitos humanos em época de campanha em outros países, em que mundo nos estamos?".

O senador Humberto Costa criticou a declaração à coluna. "A participação do ministro deixa claro que o objetivo da vinda do secretário de Estado norte-americano foi de fazer uma provocação, usando a questão dos direitos humanos na Venezuela para uma ação eleitoral a fim de fortalecer Trump."

O senador Telmário Mota (Pros-RR), responsável pelo requerimento que convidou o chanceler, trouxe duas bandeiras, a do Brasil e a dos Estados Unidos, dizendo que o ministro deveria proteger os interesses da primeira. Ao final, deu uma bandeira de presente a Araújo.

Chanceler defende a pressão contra a Venezuela

Ernesto comparou a mobilização da comunidade internacional contra o regime racista do apartheid da África do Sul (1948-1994) com a situação política e social na Venezuela. Defendeu a pressão do Brasil e dos Estados Unidos por mudanças no governo de Nicolás Maduro. E disse que, na África do Sul, as pressões e sanções levaram a transformações.

Ironicamente, o Brasil começa a enfrentar a saída de investidores estrangeiros por conta do comportamento do governo Jair Bolsonaro em relação às queimadas e ao desmatamento na Amazônia.

A ideia do uso de pressão internacional, defendida por Ernesto Araújo, é rechaçada por seu colega Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, para o Brasil. Tanto que, no dia 22 de setembro, Heleno não descartou a possibilidade de retaliar países europeus que boicotem produtos brasileiros devido a questões ambientais.

Na mesma linha foi o próprio Jair Bolsonaro. Em seu discurso de abertura na Assembleia Geral das Nações Unidas, na última terça (22), ele que o Brasil é vítima de "uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal". A mentira foi criticada no Brasil e entre investidores internacionais.


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