25/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonaro tocou na ONU uma playlist das mentiras que conta no Brasil

Publicado em 25/09/2020 12:00 -

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Bolsonaro contou um combo de mentiras durante seu discurso, na abertura da Assembleia Geral da Nações Unidas, no último dia 22. Culpou "índios" e "caboclos" pelos incêndios na Amazônia, livrando a barra de grileiros e pecuaristas; isentou a si mesmo de responsabilidade pela desastrosa política contra a covid-19, terceirizando a culpa para governadores; disse que adotava uma política de tolerância zero contra crimes ambientais quando, na verdade, seu governo faz o contrário: ataca servidores públicos do Ibama e Instituto Chico Mendes que tentam cumprir a lei.

Nenhuma novidade. Cada uma das mentiras contada por Bolsonaro é velha conhecida dos brasileiros e tem sido repetida à exaustão.

Discursos nas Nações Unidas de chefes de Estado internacionalmente irrelevantes e que são vistos como tributários de outros governos, como é o caso de Jair, são pensado mais ao público interno. No caso dele, o falatório foi direcionado ao bolsonarismo-raiz, aquele naco de 12% a 16% que tem atuado como guardião de seu governo.

O fato é que da mesma forma que Bolsonaro usou mentiras em seus mandatos como deputado federal e na campanha à Presidência da República, também tem as utilizado como instrumento de sua administração. Ou seja, a mentira tem método e não serve apenas para se livrar de acusações. E o método tem funcionado.

Não importam fotos e vídeos da Amazônia e do Pantanal queimando, imagens de satélites com milhares pontos de calor comendo a região e relatos do inferno colhidos de indígenas, ribeirinhos e moradores de cidades. Bolsonaro aposta que a construção da realidade não brota de fatos, mas da narrativa que sai de sua boca. E, em sua narrativa, o salvo-conduto que ele entregou a quem depreda o meio ambiente não se traduz em destruição.

Com isso, o presidente afirma gostar da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (Evangelho de João capítulo 8, versículo 32), mas parece, de fato, se identificar com "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João, de novo, capítulo 14, versículo 6).

Há colegas jornalistas com pudor de dizer abertamente "o presidente mente", acreditando que isso extrapola o papel da imprensa. Mas quando a mentira é usada como instrumento de governo, evitar a expressão torna-se um desserviço.

Contadas à exaustão, as mentiras do presidente tornam-se farol e norte para milhões de fãs e seguidores. Ele não precisa que o Brasil inteiro acredite nelas, apenas que sejam repetidas por uma parcela de ingênuos e outra de pessoas de caráter duvidoso, fortalecendo o seu nicho ruidoso de apoiadores.

Todo governante mente, da esquerda à direita. A questão é quando isso se torna parte estrutural de uma gestão para refutar quaisquer fatos e dados comprovados que estejam na contramão dos desejos do presidente.

Quando a mentira é muito descarada e é pega no pulo, Bolsonaro adota a tática Donald Trump, afirmando que nunca disse o que efetivamente disse e chamando a imprensa de "fake news". Muitos de seus seguidores não se dão ao trabalho de checar em fontes confiáveis, preferindo acreditar em postagens anônimas de WhatsApp que confirmam sua visão de mundo, assumindo o comportamento "errado é quem discorda de mim".

Sobre esse assunto, gosto sempre de citar a filósofa alemã Hanna Arendt. "O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte". Para ela, a propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção.

Aliás, a fuga é, como diz a autora, um antídoto contra um mundo no qual o acaso é o senhor supremo e no qual os seres humanos precisam se adaptar constantemente. Diante da arbitrariedade da vida, muitos acabam por curvar-se à coerência fictícia da ideologia de um líder não porque são estúpidas ou perversas, mas porque essa fuga é uma questão de sobrevivência pessoal.

Qual a consequência de tudo isso hoje? Em um mundo ultrapolarizado, em que cada um acredita naquilo que seu líder apontar como verdade, estamos parando de compartilhar uma percepção comum de realidade, deixando de acreditar em um pacote comum de fatos. O que é premissa para a vida em sociedade.

Temos direito às nossas próprias opiniões, mas não aos nossos próprios fatos. Mas, convenhamos, devido à deficiência de educação para a mídia, temos mais pessoas que sabem diferenciar maminha de picanha, do que notícia de opinião.

Imagine viver em lugar em que não mais se distingue verdade e mentira? Nesse caso, perdemos a capacidade de cooperar por um bem comum, pois se torna impossível definir qual seria esse bem comum. As instituições perdem a credibilidade e são incapazes de resolver conflitos. A saída, invariavelmente, acaba sendo um autoritário que aparece para dar sentido às coisas e colocar ordem no caos.

Por mais críticas possamos ter ao jornalismo é ele quem, com todos os seus acertos e defeitos, nos últimos 200 anos, se desenvolveu para pautar e organizar debates da esfera pública. Se por um lado, as redes sociais trouxeram a possibilidade de mais pluralidade e democracia a esse processo de pauta, por outro abriram caminho para o envenenamento do debate público.

Como tirar a água suja do banho sem jogar a criança fora é a grande pergunta. Começa com Terra plana e movimento antivacinação, passa por remédios apresentados como elixires mágicos contra a covid e a defesa de que imagens de satélites mentem. A pedra foi solta e já rola ladeira abaixo.

"O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", disse o escritor Umberto Eco. O problema é que o idiota da aldeia quer sempre mais.

Envergonhados

Um manifesto assinado por 48 entidades de várias áreas fez duras críticas ao discurso do presidente. O texto diz que o pronunciamento foi "um ataque planejado e consciente, que tem a intenção falaciosa de mostrar ao mundo uma realidade que não corresponde ao que ocorre no Brasil, desde sua chegada ao governo."

Para as entidades como a CPT (Comissão Pastoral da Terra), que assinam a nota, Bolsonaro "envergonha brasileiras e brasileiros com uma fala de apenas 14 minutos, mas repleta de inverdades."

"São omitidos, propositalmente, números, dados e fatos em relação à destruição da Amazônia, como crimes ambientais. O discurso, desta vez em espaço internacional, não difere dos comumente dirigidos aos seus eleitores no Brasil, contudo, nesta ocasião Bolsonaro fez questão de destacar uma série de temas de extrema relevância ao Brasil e os apresentou com todos os requintes falaciosos possíveis, como forma de esconder as inúmeras denúncias contra ações e omissões danosas do seu governo", afirma o manifesto.

As entidades afirmam ainda que o discurso tenta esconder a "conivência de seu governo com o desmatamento e a grilagem de terras na Amazônia, principalmente em terras públicas."

"O presidente acusou de forma irresponsável os indígenas e outras populações tradicionais como responsáveis pelas queimadas na Amazônia. A fala reafirma sua negação de direitos e todo seu ódio aos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais", diz o texto, citando que o governo não tem feito "poucas ações concretas para punir os verdadeiros responsáveis pela maioria dos crimes ambientais ocorridos repetidamente na Amazônia."

Por fim, asseguram as entidades, a intenção do governo seria "desmontar a estrutura – já precária – dos órgãos ambientais, para atender os interesses daqueles que cometem crimes socioambientais contra a Amazônia e seu povo."

"Bolsonaro chegou a dizer que em seu governo os crimes ambientais 'são combatidos com rigor e determinação', no entanto, são notórias as notícias de que, no primeiro ano de seu mandato, o número de autuações ambientais diminuiu em 34%, considerado o menor índice de autuações nos últimos 24 anos", pontua.

"Para nós, o atual governo é indigno de ocupar tal cargo e por isto manifestamos nosso protesto contra seu governo", finaliza o texto.

O enredo de 2022

No primeiro parágrafo do pronunciamento que leu na tribuna virtual da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro disse estar honrado por abrir o encontro "num momento em que o mundo necessita da verdade para superar seus desafios." Pronunciou na sequência um amontado de meias verdades, privilegiando a parte que é mentirosa. O presidente reproduziu na vitrine internacional o enredo que ensaia internamente para usar na campanha de 2022. Nesse roteiro, a culpa pelas crises é sempre do outro. Bolsonaro frequenta os problemas na posição invariável de solução. Quando a coisa não funciona a contento é porque os outros atrapalham.

Na pandemia, acusou Bolsonaro, a imprensa politizou o vírus e disseminou o pânico do fique em casa. O Supremo amarrou as mãos do presidente. E os governadores, esses malvados, promoveram o isolamento e restringiram liberdades. Todo mundo culpado, exceto Bolsonaro, que avisou sobre o desemprego que estava por vir e providenciou, "de forma arrojada", as "medidas econômicas que evitaram o mal maior". Bolsonaro se jactou do auxilio emergencial. Achou desnecessário dar algum crédito ao Congresso, que elevou o valor mixuruca que seu governo oferecia para uma cifra mais vistosa, que, além de alimentar os humildes, vitaminou a popularidade do benfeitor do Planalto.

No Meio Ambiente, o que há não é uma elevação das queimadas e do desmatamento, mas uma "brutal campanha de desinformação". Coisa apoiada por "instituições internacionais" que desejam prejudicar o agronegócio brasileiro e "associações brasileiras" que tramam contra o país. Tudo culpa de interesses internacionais "escusos" e de "aproveitadoras e impatrióticas" entidades nacionais. Por sorte, há no Planalto um estadista disposto a manter o que Bolsonaro chamou de "política de tolerância zero com o crime ambiental."

Faltou ao pronunciamento de Bolsonaro um pé na realidade. Mas um mínimo de respeito aos fatos revelaria ao presidente que ele também está sujeito à condição humana. E isso o obrigaria a enxergar no reflexo do espelho pelo menos um corresponsável pelo mau gerenciamento das crises sanitária e ambiental. Há um ano, quando falou na ONU sobre "tolerância zero contra o crime", o presidente esclareceu que se referia aos crimes ambientais e à corrupção. Elogiou na época o "patriotismo", a "perseverança" e a "coragem" de Sergio Moro, a quem chamou de "símbolo do meu país." Ou seja: tudo muda no Brasil, exceto a inocência de Bolsonaro. Não há imagem rachadinha que resista a uma boa mistificação.


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