28/03/2024 - Edição 540

Saúde

Uma vacina para a humanidade

Publicado em 25/09/2020 12:00 -

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A ciência não dá saltos. Essa frase, usada originalmente para se referir aos processos evolutivos na natureza, também é útil para explicar o longo caminho do desenvolvimento de uma vacina. Desde o início da pandemia, a descoberta de um produto eficaz e seguro para prevenir infecções pelo novo coronavírus tem sido aguardada como uma esperança capaz de deter o avanço da doença que já matou mais de 800 mil pessoas no mundo, cerca de 120 mil delas somente no Brasil, até o fim de agosto. No entanto, a torcida para que cientistas de todo o mundo encontrem, em tempo recorde, uma vacina contra a covid-19 não pode esquecer que a ciência tem etapas a cumprir. Dos primeiros testes em laboratório até o produto chegar às mais de 36 mil salas de imunização existentes no SUS, por exemplo, é preciso tempo, investimento e esforço humano — e ainda garantir que a vacina seja ofertada como um bem público à toda a população.

Tentativas e erros são comuns nas etapas de pesquisa em laboratório e nos testes em modelos celulares e animais até chegar às três fases dos ensaios clínicos — quando a vacina finalmente é aplicada em seres humanos, para verificar segurança e eficácia. O tempo médio de desenvolvimento de um novo produto é de cerca de 10 anos. Ainda há o risco de décadas de pesquisa não resultarem em nenhum imunizante eficaz, como acontece até o momento com o HIV, ou que as vacinas descobertas possam apresentar alguns problemas de segurança em longo prazo, ainda que raros, como ocorreu com a da dengue. Depois de toda a pesquisa científica, ainda há o desafio de produzir doses em quantidade suficiente para garantir o acesso à população em larga escala.

A corrida pela vacina contra a covid-19 envolve, atualmente, 30 projetos já em pesquisa clínica (em humanos) e outros 139 em avaliação pré-clínica (em estudos de laboratório ou com animais), de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). O esforço da ciência para acelerar a descoberta de uma vacina, sem abrir mão de segurança e eficácia, colocou nove dessas candidatas já na última fase de testes em humanos (a chamada fase 3, dos ensaios clínicos), em que o produto é aplicado em milhares de pessoas. Duas dessas contam com acordos para serem produzidas no Brasil pelos dois maiores produtores de imunobiológicos do país, caso se comprovem eficazes. De um lado, está a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela empresa AstraZeneca, no Reino Unido, que será produzida pela Fiocruz. De outro, aquela que está em estudo pela empresa Sinovac, na China, que tem acordo de produção com o Instituto Butantan.

Diante do desafio de encontrar soluções em tempo recorde para o avanço da covid-19, Radis conta como é montar o quebra-cabeça de uma vacina. Chegamos a cinco perguntas que precisam ser respondidas antes que a população seja imunizada. Mais do que sanar a dúvida de “quando” chegará a vacina, é preciso resolver outra equação: Como garantir o acesso a ela como bem público?

Como é a pesquisa?

Há pouco mais de quatro anos, Rodrigo Stabeli estava envolvido na coordenação das ações da Fiocruz para o enfrentamento ao vírus zika e suas consequências — a doença havia sido declarada pela OMS, em fevereiro de 2016, como emergência de saúde pública de importância internacional. A ciência brasileira buscava então decifrar alguns enigmas, como a relação do vírus com a síndrome congênita que acomete recém-nascidos. Pesquisador da Fiocruz na área de biotecnologia, Rodrigo não poderia imaginar que, poucos anos depois, os cientistas estariam diante daquela que ele define como “a maior crise da humanidade contemporânea”: a pandemia do novo coronavírus. A busca por uma vacina é uma corrida contra o tempo, o que não significa abrir mão de requisitos que garantam a segurança de quem vai ser imunizado. “Não existe bala mágica quando a gente trabalha com medicamentos humanos. Precisamos primeiro pensar na segurança e na vida da pessoa que vai receber o produto”, explica.

Atualmente ele integra o grupo de enfrentamento à covid-19 na mesorregião norte de São Paulo, em Ribeirão Preto, e coordena a plataforma de Medicina Translacional da Fiocruz São Paulo, em parceria com a USP. O pesquisador ressalta que cada uma das fases para o desenvolvimento de uma vacina tem um percurso que não pode ser quebrado. “Queremos chegar a um produto que cause nenhum ou o mínimo efeito adverso necessário para que se consiga ter o efeito protetivo. Não podemos mudar de fase e temos que ter muito bem documentados os ensaios clínicos, para garantir a segurança e a idoneidade do produto”, pontua. O nascimento de uma vacina é como uma escada em que cada degrau é importante para se chegar ao destino.

A primeira etapa começa em laboratório, com pesquisas exploratórias para encontrar candidatas à vacina. “É o momento em que se analisam os famosos princípios antigênicos, ou seja, procuramos quais substâncias, moléculas ou partes do ser vivo causador da moléstia poderão servir de peças para montar o quebra-cabeça do desenvolvimento de uma vacina”, conta o pesquisador. Montadas as peças, ainda vem outro degrau antes de se iniciarem os testes em seres humanos: a chamada fase pré-clínica. Nessa etapa, o produto com potencial vacinal é testado em modelos celulares (como células de rins de macaco) ou em animais, como camundongos, coelhos e macacos. São os chamados testes in vitro e in vivo, respectivamente.

Testes em humanos

Se aprovada nas etapas iniciais, começa a bateria de testes em seres humanos, que acontecem nas três fases dos chamados ensaios clínicos [veja no Infográfico nas páginas 18 e 19]. “A primeira fase busca testar apenas a segurança do produto. Será que é tóxico para seres humanos? Será que vai causar muitos efeitos adversos?”, descreve Rodrigo. Esse primeiro round envolve cerca de 20 a 100 pessoas, geralmente adultos saudáveis. Em seguida vem a segunda fase, que é o momento de verificar a imunogenicidade, ou seja, a capacidade que uma vacina tem de estimular o sistema imunológico a produzir anticorpos; geralmente o produto é aplicado em centenas de participantes. Porém, ainda falta a terceira e última etapa, quando a eficácia da vacina é testada em milhares de pessoas.

É hora de fazer o chamado teste “duplo-cego”: uma parte dos participantes recebe o novo imunizante e outra recebe um produto sem eficácia (um placebo), mas nem os pesquisadores nem os voluntários sabem o que cada um recebeu. Ao final, os dados são avaliados para responder se a vacina é realmente eficaz e segura. Só assim ela poderá receber o registro para ser aplicada na população — no Brasil, quem dá a palavra final é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Geralmente essas fases levam mais de 10 anos. Primeiro, para se ter um produto bom; e segundo (e o mais importante), para se ter segurança”, esclarece Rodrigo. Segundo ele, é importante que em todas as etapas haja monitoramento e avaliação por pares, para que seja garantido que o produto é seguro para os humanos.

Duas das nove candidatas à vacina que estão na fase 3 têm acordos para iniciar a produção no Brasil ainda em 2020, caso sejam aprovadas. A primeira delas foi formulada pela Universidade de Oxford e pelo laboratório AstraZeneca e está em teste em vários países do mundo, incluindo cinco mil voluntários brasileiros, sob coordenação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto D’Or. Ela utiliza o adenovírus de chimpanzé modificado para transportar o gene que codifica a proteína S do vírus Sars-Cov-2 (causador da covid-19) e, assim, neutralizar a sua ação nas células — a tecnologia é chamada de vacina por vírus não replicante. A Fiocruz será a responsável pela produção. Em 10/8, a Anvisa autorizou uma mudança no protocolo de testes para a aplicação de uma segunda dose de reforço, totalizando duas doses em vez de uma, como proposto originalmente.

Outra vacina nessa rota é a desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac, que está em testes clínicos de fase 3, sob coordenação do Instituto Butantan, em nove mil voluntários selecionados em 12 centros de pesquisa no Brasil. A preparação utiliza uma tecnologia já bastante conhecida pela ciência: o vírus é inativado por meio de substâncias químicas para que não seja capaz de infectar. O esquema vacinal abrange duas doses no intervalo de 14 dias. Também a vacina da BioNTech/Pfizer, fruto de uma parceria americana e alemã, está em testes em mil voluntários brasileiros, em Salvador e São Paulo. Ela é baseada em uma tecnologia que utiliza ácido ribonucleico (RNA). Mas não há acordo para produção no país até o momento. Outras vacinas estão em desenvolvimento no Brasil, mas ainda não chegaram aos ensaios clínicos.

Para Rodrigo, a crise provocada pelo novo coronavírus não foi apenas de saúde, mas social, e as soluções — incluindo a vacina — devem ser pensadas para toda a população. “Ela estampou a desigualdade social no Brasil e no mundo”, pontua. Segundo ele, a vacina deve ser parte de uma política pública consistente de mitigação da doença e não de “protelação de mortes”. “Não podemos aceitar políticas que façam com que o vírus se torne endêmico, como dengue, zika e chikungunya. Não podemos aceitar a convivência da sociedade brasileira com o novo coronavírus”, completa. A vacina é apenas um passo no enfrentamento à pandemia, porque o mundo precisa se adaptar aos desafios colocados pela covid-19. “Primeiro, porque nós não sabemos qual é a capacidade de cobertura vacinal, quanto tempo ela vai se manter. Segundo, as doses são limitadas, a gente não consegue produzir doses para garantir a cobertura de toda a população”, reflete.

É segura? É eficaz?

Os efeitos da pandemia de covid-19 têm gerado expectativas em torno de soluções rápidas capazes de garantir o retorno à normalidade — mas os cientistas insistem que não existem “fórmulas mágicas”. “Não é simples o processo de desenvolver uma vacina. É mais complicado do que desenvolver um medicamento. Com o medicamento, temos uma pessoa doente que precisa ser tratada. Já com uma vacina, estamos ministrando um produto em pessoas saudáveis, para prevenir que elas venham a adoecer”, afirma Expedito Luna, professor de epidemiologia da Faculdade de Medicina da USP. A constatação serve de alerta para que a vacina contra a covid-19 não seja vista como a única “tábua de salvação” na pandemia.

Segundo o pesquisador, em circunstâncias normais, nunca se viu ser publicado e ter grande espaço na mídia resultados de estudos de fase 1 e 2. “Isso é uma coisa de interesse científico, no máximo de quem está envolvido com a vacinologia”, afirma. Ele considera que as circunstâncias são realmente especiais e exigem respostas rápidas, pois “as últimas pandemias que o mundo passou não tiveram tamanha gravidade”. Porém, ele ressalta que pode haver graves consequências se o processo de desenvolvimento de uma vacina seguir por “atalhos”.

Mas por que é preciso cautela? “Primeiro, a gente pode estar diante de um produto que não tenha alta eficácia”, explica. Ainda que as vacinas sejam capazes de gerar anticorpos, não significa que elas protegerão totalmente no mundo real. “A imunogenicidade não se traduz necessariamente em proteção e eficácia. Podemos citar os exemplos das duas vacinas de dengue: ambas foram altamente imunogênicas, mas nem todo mundo que havia desenvolvido anticorpos obteve imunidade protetora”, constata. Também não há respostas até o momento sobre quanto tempo durará a proteção, ou se será necessário revacinar a população depois de um período, como acontece anualmente com a gripe.

É nesse momento que entra a decisão da política de saúde se vale a pena ou não usar o produto, principalmente para evitar os casos mais graves e as mortes. “As vacinas contra a influenza têm uma efetividade — uma proteção na vida real — em torno de 40 a 50%. Dado o volume da influenza, a quantidade de casos que têm todo o ano e o potencial de causar doença grave em determinados grupos mais vulneráveis, é considerado útil e socialmente aceitável que os recursos da saúde pública sejam investidos num programa desse tipo”, afirma Expedito. Outra questão são os cuidados com a segurança. “Será que esse produto é realmente seguro? Será que não vai trazer um evento adverso ou talvez um agravamento da doença se falhar e as pessoas adoecerem?”, pontua, ao destacar que somente testes que respeitem os protocolos científicos podem chegar a essas respostas.

Vigilância sobre a vacina

O monitoramento de uma vacina não acaba depois de aprovada para uso em grande escala na população. É aí que começa a chamada farmacovigilância, que observa a duração da proteção em longo prazo e a ocorrência de eventos adversos muito raros. Segundo Expedito, os estudos clínicos — ponto em que as candidatas à vacina estão atualmente — permitem observar não só a eficácia, mas também algum efeito indesejado que ocorra em frequência relativamente grande. “Isso é completamente diferente de quando a gente passar para a fase seguinte, do uso em população, em que a gente vai usar em milhões de pessoas”, afirma.

Mudanças no perfil de indicação de uma vacina podem acontecer mesmo depois de aprovada para uso na população, ao serem constatados eventos adversos. Foi o que aconteceu com a vacina contra a dengue desenvolvida pelo laboratório Sanofi Pasteur, licenciada no Brasil em dezembro de 2015. Com o tempo, percebeu-se que havia riscos de segurança envolvendo hospitalização e desenvolvimento de dengue severa em crianças de 2 a 5 anos de idade, no terceiro ano após o recebimento da primeira dose. Conclusão: a Anvisa alterou a indicação da vacina, que passou a ser restrita a pacientes entre 9 e 45 anos de idade, moradores de áreas endêmicas. Segundo o Grupo Consultivo de Especialistas sobre Imunização, da OMS, a vacina contra a dengue não pode descartar outras ações de contenção das infecções, como o controle do vetor (o mosquito Aedes aegypti).

Para o professor da USP, é preciso fortalecer uma rede de vigilância capaz de detectar ocorrências adversas, ainda que muito raras, e investigar se existe ligação com a imunização. “Não basta você ter uma associação temporal de um evento adverso com a vacina. Esses eventos têm que ser investigados para que a gente realmente se aproxime de um nexo causal”, considera. Integrante de uma pesquisa que avalia a efetividade da vacina contra a dengue, ele considera que nossa rede de vigilância é “precária”. “Além de toda a logística para viabilizar uma campanha de vacinação, é preciso implementar uma rede de farmacovigilância para acompanhar o que vai acontecer depois com os vacinados, não só em termos de proteção à doença, mas dos eventos adversos”, explica.

Ok, aprovada.
Como produzir?

Produzir, envasar, rotular e embalar as milhões de doses da vacina, além de garantir o suprimento de insumos como frascos, rolhas, seringas e agulhas são etapas que virão depois de descoberto um imunizante eficaz — antes que ele possa estar disponível para a população. O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos) da Fiocruz planeja produzir 15 milhões de doses em dezembro e outras 15 milhões em janeiro de 2021 da vacina de Oxford. Porém, ainda serão necessárias etapas de registro e validação antes da distribuição. Outras 70 milhões de doses devem ser produzidas após a aprovação.

De acordo com o diretor de Bio-Manguinhos, Maurício Zuma, uma segunda fase do acordo entre Fiocruz e AstraZeneca prevê a transferência de tecnologia para a produção do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) no país — ou seja, a fórmula da vacina —, o que tem previsão de início até o fim do primeiro semestre de 2021. Em entrevista à Radis, ele destaca que o primeiro grande desafio ainda é a própria aprovação da vacina. “Em que pese os resultados preliminares serem positivos, em situação normal não se estariam fazendo tantos planos antes da finalização destes processos de escalonamento, aprovação dos estudos clínicos e registro da vacina”, pondera.

Ainda há pela frente o desafio de produzir tantas doses em um curto espaço de tempo. “Para que haja o efeito de bloqueio da circulação do vírus, há necessidade de vacinação de um grande contingente da população mundial”, pontua. Também é preciso vencer outros obstáculos, como a garantia do suprimento de insumos. “A corrida global para a produção mundial pode acarretar gargalos em alguns fornecedores mais concentradores de mercado. Por exemplo, o Brasil produz frascos de vidro, mas a vara de vidro, insumo básico para a produção desses frascos, é importada”, afirma.

Cada etapa tem um custo e o preço pode dificultar o acesso à população. Em julho, o governo dos Estados Unidos firmou um acordo com as empresas Pfizer e BioNTech que sugere que a vacina desenvolvida por elas tenha o custo de 40 dólares (mais de 200 reais) e prevê ainda que seja garantido o fornecimento de 100 milhões de doses para os norte-americanos. Porém, uma resolução da Assembleia Mundial da Saúde, em maio, aponta que vacinas e medicamentos para a covid-19, durante a pandemia, não devem ser objeto de lucro. Até mesmo o papa Francisco afirmou, em agosto, que “seria triste se a prioridade da vacina fosse dada aos mais ricos”. Em relação ao preço da vacina a ser produzida pela Fiocruz, a boa notícia é que o acordo com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca prevê que ela seja fornecida a preço de custo — cerca de 3 dólares.

Vacina é bem público

Para a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, a vacina contra a covid-19 deve ser encarada como um “bem público”. “É fundamental a promoção de políticas públicas que permitam ao nosso país ter a vacina e garantir através do SUS o acesso a toda a nossa população”, ressaltou durante debate online promovido pela Ágora Abrasco (23/7). Ela reconheceu que as vacinas se tornaram um bem de alto valor e a corrida pela descoberta de um imunizante eficaz tem envolvido grandes indústrias farmacêuticas na disputa, mas o Brasil não pode perder de vista a missão de garantir o acesso à população com equidade. Nísia reforçou ainda que o acordo de incorporação de tecnologia firmado pela Fiocruz pode ajudar na pesquisa de outras vacinas no futuro. “Estamos diante de uma doença de grande complexidade, o que reforça a necessidade de continuidade das pesquisas”, afirmou.

Não é novidade para o Brasil a oferta de vacinas gratuitamente para a população, pois o país tem um Programa Nacional de Imunizações (PNI) reconhecido mundialmente. “A grande experiência consolidada do programa e das unidades estaduais e municipais é um fator positivo para facilitar o acesso”, aponta Maurício Zuma à Radis. Atualmente, Bio-Manguinhos fornece sete vacinas para o PNI, que imunizam contra oito doenças — febre amarela, pneumonia, poliomielite, rotavírus, sarampo, caxumba, rubéola e varicela. Para Expedito Luna, a experiência brasileira na produção de imunobiológicos é um fator positivo na corrida pela vacina. “Nós temos os dois produtores públicos de vacina [Fiocruz e Butantan] com capacidade de produção e escalonamento já demonstrados para prover o país”, afirma.

Outra aposta contra a covid-19 é a vacina da Sinovac, que pode ser produzida pelo Instituto Butantan. De acordo com Dimas Covas, diretor da instituição, caso seja aprovada, serão disponibilizadas 60 milhões de doses ainda em 2020 e outras 60 milhões no primeiro semestre de 2021. “A proposta do Butantan é incorporar soluções que possam aproveitar a cadeia produtiva que já existe”, afirmou no mesmo debate promovido pela Abrasco (23/7). Segundo ele, diante do custo social da pandemia, seria recomendado o uso de uma vacina, ainda que não tivesse alta efetividade, para prevenir casos graves e mortes. “Mesmo que a eficácia não seja elevada, mas que tivesse um impacto na redução da mortalidade, ela já seria justificável desde que demonstrado o perfil de segurança”, avaliou.

Como chega à população?

O personagem Zé Gotinha tornou-se um símbolo de sucesso do PNI e do êxito na prevenção de doenças como a poliomielite (paralisia infantil), erradicada do país em 1989. Mesmo com as quedas nas coberturas vacinais nos últimos anos (Radis 196), que preocupam especialistas em relação à volta de doenças comuns no passado, como o sarampo, o programa pode ser um trunfo para tornar uma possível vacina anticovid-19 disponível para a população. “O Brasil tem a vantagem de ter um programa com muita capilaridade, com capacidade de distribuir vacinas para o país inteiro”, avalia Expedito.

Para a ex-coordenadora do PNI e epidemiologista pela Universidade de Brasília (UnB), Carla Domingues, uma comunicação adequada será imprescindível para levar as pessoas até as mais de 36 mil salas de vacinação do SUS para se imunizarem contra o novo coronavírus. “As sociedades científicas deverão atuar em conjunto com o Ministério da Saúde para esclarecer os fatos, de modo que não haja divergência, evitando que a população fique confusa durante a vacinação”, explica à Radis. Ela esclarece que a adoção de uma vacina no PNI exige estratégias de armazenamento e distribuição em um país continental como o Brasil. “Temos populações indígenas e ribeirinhas em que muitas vezes demoramos três dias para chegar com a vacina”, lembra.

Segundo Carla, é preciso fazer com que a população entenda que num primeiro momento não vai ser possível vacinar todo mundo: o PNI terá que definir grupos prioritários, possivelmente profissionais de saúde e aqueles que têm maior risco de adoecer e ter complicações. “O ideal seria vacinar a população brasileira como um todo. Mas estamos falando de mais 200 milhões de pessoas. Isso não é factível nem pelo número de doses que serão disponibilizadas nem pela capacidade de operacionalizar uma campanha em curto prazo de tempo para esse contingente populacional”, ressaltou durante a Ágora Abrasco (23/7). Ela pontuou que o Ministério da Saúde apenas define a política de vacinação e faz a aquisição dos produtos — quem executa são estados e municípios, por isso será preciso articulação entre todas as esferas de governo. “O papel da sociedade científica é fundamental nessa discussão, para ter a confiança da população e o respeito às decisões do Ministério da Saúde.”

Para Carla, o maior desafio será organizar um esquema vacinal com duas doses em curto espaço de tempo. “Na campanha de influenza, nós demoramos três meses para atingir a cobertura vacinal de 80 milhões de pessoas. Imaginem ter que convocar 50 milhões de pessoas para tomar vacina e, 15 dias depois, chamar este mesmo grupo para tomar uma segunda dose”, constatou. Outro problema, segundo ela, é que as salas de vacina estão sobrecarregadas, sem equipes suficientes para cumprir o calendário. Atualmente, o PNI oferece 19 vacinas no SUS, em calendários que abrangem crianças, adolescentes, adultos e idosos.

Já na avaliação de Expedito, embora tenha sua história de sucesso, o PNI tem sofrido com a queda recente nas coberturas vacinais, o que levou o país a perder o certificado de área livre do sarampo, recebido em 2016. “Infelizmente, o nosso país deu passos para trás em relação à saúde pública e o programa de imunizações foi um deles”, aponta. De acordo com o pesquisador, existe uma recomendação mundial para que os programas de imunizações atuem em parceria com a comunidade científica do país, mas o Comitê Técnico Assessor de Imunizações (CTAI) foi descontinuado na atual gestão do governo federal. “Isso fragiliza nosso programa e nos torna mais vulneráveis às fake news, porque esse canal de diálogo com a comunidade científica deixou de existir”, avalia.

Como lidar com informações falsas?

Mesmo que os cientistas ainda estejam na corrida por uma vacina eficaz contra a covid-19, mensagens que circulam no Whatsapp e outras redes sociais já têm “certeza” que a “vacina vai implantar um chip criado pelo Bill Gates” ou que “a China vai inocular um novo vírus na população mundial”. O negacionismo em relação à ciência e a circulação de notícias falsas, as chamadas fake news [assunto abordado na Radis 190], podem ser obstáculos para o acesso da população à vacina anticovid-19, como aponta Natália Pasternak, doutora em microbiologia pela USP e presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC). Para ela, transparência e cuidado na comunicação podem ajudar as pessoas a entenderem a importância real das vacinas em suas vidas. “É preciso manter os pés no chão em relação às vacinas. Certamente teremos algumas aprovadas até o final do ano, mas não sabemos se serão igualmente eficazes para jovens, crianças e idosos”, avalia [Leia entrevista completa na página 20].

A vacina não pode ser uma pauta política, defende o pesquisador da Fiocruz, Rodrigo Stabeli. “É importante que a gente não enxergue como preconceito ou pauta política um país que também tem tecnologia para a produção de insumos farmacológicos”, ressalta. Em 11/8, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, anunciou que o país havia registrado a primeira vacina do mundo — mas a notícia despertou dúvidas na comunidade científica por ainda não terem sido divulgados os dados sobre eficácia e segurança. Para Rodrigo, é preciso superar essa tendência de tratar “o novo coronavírus como uma nova Guerra Fria”, e a vacina russa pode sim ser uma candidata, desde que apresente a comprovação de todos os requisitos. “É importante ressaltar que se sigam com bastante rigor as fases de experimentação para se colocar uma vacina no mercado, porque são essas fases que garantem a segurança na aplicação de uma vacina em ser humano”, reforça.

Enfrentar uma crise global como a do novo coronavírus exige respostas em nível mundial, na avaliação do pesquisador. “Se a gente está falando de uma doença que é infectocontagiosa, não podemos pensar em país, temos que pensar em humanidade. Vírus não respeita cerca, Estado ou município. A gente tem que pensar em todos”, considera. Quando a vacina chegar — ou as vacinas, no plural —, serão necessárias estratégias multilaterais, envolvendo diversos países, para fazer o manejo da crise e garantir que toda a humanidade seja preservada. “Não precisamos imunizar a população mundial inteira, mas precisamos ter uma política mundial de erradicação do vírus”, destaca.

Para garantir a oferta de uma vacina como bem público global, de acordo com Rodrigo, é preciso “sensibilidade política” capaz de entender a crise humanitária provocada pela pandemia. “O maior desafio para que se desenvolva uma vacina universal é vencer as barreiras políticas da última década, com um mundo cada vez mais polarizado e que pensa em resolver um problema para voltar ao consumismo e não para o bem-estar social da humanidade e do meio ambiente”, considera. A chamada infodemia — ou a pandemia de informações falsas — atrapalha a ciência, porque confunde a população, ressalta. “Problemas complexos exigem respostas complexas. E respostas complexas precisam de tempo. Toda vez que você receber uma notícia em que está muito simples combater essa crise, desconfie dela”, esclarece.

Para aderir a uma campanha de vacinação, é preciso que a população esteja bem informada, pontua Carla. “A vacina disponível nos postos de saúde não é suficiente para mantermos a população protegida. Por mais que a gente saiba que ela traz benefício do ponto de vista coletivo, quando vou ser vacinado quero saber o que significa essa vacina para mim, para os meus filhos e minha família”, ressalta. Ela enfatiza que só há um caminho para enfrentar as notícias falsas sobre saúde: “Um bom plano de comunicação, esclarecendo a importância, para quem ela vai estar disponível e qual será o objetivo da vacinação”.

Na avaliação do diretor de Bio-Manguinhos, “o grande estresse que a pandemia vem causando nos planos social e econômico parece estar contribuindo para elevar a consciência da população para a necessidade de se vacinar”. Pesquisa do Datafolha (15/8) aponta que 89% dos brasileiros querem se vacinar contra a covid-19. Para Maurício Zuma, o fato de grande parte das pessoas atualmente não terem tido contato com vítimas de doenças como sarampo e pólio contribui para a população não se interessar pela vacinação. Carla também pondera que a estratégia de imunização só vai funcionar com envolvimento de todos. “É fundamental a responsabilidade de toda a sociedade em garantir elevada cobertura vacinal em todo o país, em curto prazo de tempo, para que a gente possa garantir a equidade da vacinação em toda a população brasileira”, afirmou durante a Ágora Abrasco.

E o que podemos esperar das vacinas que estão na corrida? Para Expedito, talvez não tenhamos apenas um produto para usar no país inteiro: serão vacinas, e não uma única vacina para a covid-19. “Suponhamos que os dois projetos que têm envolvimento de instituições brasileiras deem certo e que tenhamos uma vacina com uma eficácia razoável ou boa, vamos ter duas vacinas diferentes e o país vai ter que lidar com essa situação”, aponta. Depois de aprovadas para uso na população, Rodrigo destaca também o papel da farmacovigilância para acompanhar eventos que podem surgir quando passamos de milhares para milhões de pessoas. “As vacinas que estão na fase 3 no mundo são vacinas boas. Os mecanismos de construção dessas vacinas são confiáveis”, avalia.

Se há algo que a pandemia nos ensina é sobre o papel da ciência para proporcionar bem-estar e qualidade de vida às pessoas. “A pandemia causada pela covid-19 veio mostrar quão importante é a ciência para o mundo, pois muitas vezes ela é negligenciada”, aponta. Segundo ele, investir em ciência, tecnologia e inovação é o único caminho para produzir transformações sociais. “Mas a gente precisa lutar para que a nossa ciência não morra, porque ela também está na UTI, assim como vários brasileiros estão”, reflete. Se é verdade que a ciência não dá saltos nem pode pegar atalhos, ela precisa ser valorizada caso tenha que acelerar o passo.


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